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Quinto Período (1964-1988): Explosão do Brasil Urbano

1.2 FENÔMENO DA URBANIZAÇÃO

1.2.2 Quinto Período (1964-1988): Explosão do Brasil Urbano

O quinto período corresponde ao crescimento mais expressivo das cidades no país e à crescente preparação da economia e do território nacional rumo à abertura macro- econômica e aos interesses corporativos das grandes firmas. A explosão demográfica conhecida depois da Segunda Guerra Mundial foi resultado da alta natalidade, da baixa mortalidade, dos progressos sanitários e melhoria relativa dos padrões de vida e da própria urbanização. Junto ao crescimento das capitais, as cidades médias também se multiplicaram. As diferenças entre os índices regionais de urbanização, os quais eram inexpressivos na década de 40, tornaram-se marcantes com a modernização do território nacional, sobretudo a partir de 1970. Foi neste momento que um diferente patamar foi atingido, caracterizado por uma urbanização concentrada e pelo fenômeno de metropolização (SANTOS, 2005, pg. 91-98).

A modernização da economia nacional foi fomentada em preparação para o desempenho das grandes corporações e para a expansão econômica que ocorreu entre 1968 e 1974, calcada na dinâmica da produção, ditada pela unificação do capital industrial e financeiro; a integração dos setores - agrícola, industrial e de serviços – e as esferas econômicas e sociais - produção, distribuição e consumo - (LEITE, 2006, pg. 123-125). No âmbito regional, na segunda metade de 1970, houve a reciclagem do setor energético, o distanciamento da fronteira agrícola e a descentralização das atividades econômicas, oportunizando maiores investimentos estatais em infra-estrutura. Naquela fase, o Estado buscava reforçar o papel de promotor da modernização e do crescimento econômico,

através da adoção de programas de gestão e de assentamentos regionais, promovendo a unificação do território nacional e organizando-o em regiões diversificadas.

Para Ribeiro e Cardoso (1996), a partir do final da década de 1970, começava a ser delineada uma nova conjuntura teórico-política. Por um lado, houve certo esvaziamento do discurso nacional-desenvolvimentista. A partir da falência do projeto de modernização conservadora, empreendido entre 1964 e fins da década de 70, buscou-se implantar um modelo de desenvolvimento nos moldes do fordismo europeu ou americano, sob a argumentação de que ganhos crescentes de produtividade permitiriam a extensão das benesses do crescimento econômico a parcelas significativas da população. Tal acontecimento seria proporcionado pelo aumento real dos salários e pelas garantias e suportes oferecidos por um Estado de Bem-Estar. Entretanto, a modernização efetuada gerou um quadro de tensões sociais significativo no campo da organização sindical e da mobilização em torno das condições de vida, provocando uma acirrada disputa pelos benefícios gerados pela ação do Estado.

A crítica ao ideário nacional-desenvolvimentista se afirmou, tendo como fundamento a emergência da questão social: no âmbito da produção, como questão operária; e no âmbito do consumo coletivo, como questão urbana. O tratamento da questão social passou, então, a ser entendido em sua especificidade e não como decorrência necessária do crescimento econômico. A partir da década de 1980, a cidade começou a ser tematizada, inicialmente, como um problema econômico, ou seja, como um dos aspectos a ser enfrentado na política desenvolvimentista. Os temas da nação e da modernização submetiam o social, levando os reformadores a colocarem a questão urbana, como uma questão do desenvolvimento. Todavia, a partir da emergência de movimentos sociais na cidade, a dimensão social passou a predominar na tematização da questão urbana (RIBEIRO; CARDOSO, 1996).

A partir de então, várias concepções surgiram, tendo em vista o estabelecimento de parâmetros possíveis para a intervenção sobre o urbano. Na medida em que o processo de urbanização passou a ser um dos elementos fundamentais da modernização - seja ele considerado como fator positivo ou como origem de efeitos perversos -, o planejamento urbano passou a ser acionado como instrumento importante para a formulação de diagnósticos sobre os problemas urbanos. Concomitante ao padrão higiênico-funcional, que se requalificou mediante a adoção dos princípios da Carta de Atenas e um funcionalismo pautado na concepção da cidade-máquina, observou-se a emergência de

outros modelos, configurando uma disputa em torno da hegemonia intelectual no campo do debate urbano.

Ribeiro e Cardoso (1996) elegem os principais padrões que surgiram e se fazem presentes até o momento, segundo análise que discrimina seu contexto de origem, concepções, objeto de intervenção e alguns desdobramentos posteriores. São eles: (i) o tecnoburocratismo desenvolvimentista; (ii) o humanismo lebretiano; (iii) a reforma urbana modernizadora; e (iv) a reforma urbana redistributiva.

O tecnoburocratismo desenvolvimentista também se construiu pela importação de idéias, nesse caso não mais de princípios organicistas e funcionalistas, mas de propostas de racionalização administrativa decorrentes, principalmente, do planning americano, e idéias desenvolvidas no âmbito da geografia humana, principalmente em sua vertente francesa.

Este padrão se caracteriza, segundo os autores, por assumir o urbano como um problema do desenvolvimento econômico, objeto de um tratamento racionalizador e administrativo. Trata-se não mais de criar a cidade ideal, mas de gerir com eficiência a cidade existente22, eliminando-se os focos de distorção, oriundos de disfuncionalidades do crescimento econômico.

Pode-se apontar como características fundamentais:

(i) Concepção desenvolvimentista na formulação do diagnóstico. A utilização de uma noção de racionalidade organiza o discurso, que explica a produção dos problemas urbanos. Ou seja, indica a transformação tecnocrática da questão social como disfunção do crescimento e organiza um conjunto de medidas que se pretende consistente, traduzido na idéia de plano. O entendimento de cidade é ultrapassado pela idéia de urbano e de urbanização, onde os problemas urbanos são pensados numa escala regional ou nacional. São adotados e formulados, então, os conceitos de rede urbana, hierarquias urbanas e sistemas de cidades.

(ii) O objeto da intervenção passa a ser a própria estrutura de poder, na medida em que as causas dos problemas urbanos são: (a) os entraves políticos da gestão pública da cidade e (b) as insuficiências do desenvolvimento econômico.

A modernização e a centralização administrativas passaram a ser, então, os objetivos fundamentais da ação das políticas urbanas. O plano e o processo de planejamento cumprem o papel de ordenadores e racionalizadores da ação pública sobre as

cidades. A política urbana passou a ser centralizada, construindo-se a idéia de um sistema nacional do planejamento.

Tais idéias ganharam abrangência no período do pós-guerra por uma atuação sistemática de órgãos federais, como o Serviço Federal de Habitação e Urbanismo (SERFHAU) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano (CNDU). Todavia, tais abordagens já vinham sendo discutidas anteriormente no âmbito de algumas instituições como o Instituto Brasileiro de Administração Municipal (IBAM), o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o Instituto de Arquitetos do Brasil (lAB) (RIBEIRO; CARDOSO, 1996).

Este padrão ganhou hegemonia num momento em que as contradições urbanas já apareciam em toda a sua clareza, configurando um conflito de interesses em torno da apropriação dos benefícios da urbanização e da ação do Estado. No quadro de uma conjuntura política marcadamente autoritária, como a que se seguiu ao golpe militar de 1964, esse padrão produziu uma tecnificação dos problemas urbanos, com sua conseqüente despolitização, segundo os autores.

O humanismo lebretiano foi desenvolvido a partir da influência significativa exercida no país pelo Padre Lebret, tal como mencionado anteriormente. Possui como característica fundamental trazer para o centro do debate a questão social, de uma forma bastante semelhante aos reformadores sociais europeus do início do século XIX.

Pode-se apontar como características fundamentais desse padrão:

(i) A concepção humana na formulação do diagnóstico. Filiação à corrente filosófica e política “Economia e Humanismo”. Afirmava-se a necessidade de se conhecer as condições de vida da população, a fim de contrabalançar a racionalidade técnica.

(ii) O objeto da intervenção passava a ser a própria sociedade, através de sua conscientização e da humanização. Uma das características do pensamento lebretiano é a melhoria das condições de vida associada à promoção humana, que permita a remoção de obstáculos ao desenvolvimento social. As formas de organização urbana são apontadas como um desses obstáculos, sendo o planejamento um instrumento privilegiado de intervenção.

O movimento em torno das idéias de Lebret no Brasil se corporificou na constituição do SAGMACS. Segundo Leme (1999, pg. 32-35), a inserção política do movimento ocorreu progressivamente, à medida que as pesquisas foram sendo oportunizadas por contatos que abrangiam diversos grupos sociais. Seu reconhecimento político deu-se no retorno de Getúlio Vargas ao poder. Entre os trabalhos no âmbito do

planejamento e desenvolvimento regional elaborados por ela estão: estudos para a bacia Paraná-Uruguai e as áreas conurbadas em São Paulo e Belo Horizonte, para as quais se propôs diferentes escalas de intervenção e planejamento regional. Também foram realizadas pesquisas sobre condições de vida, dentre as quais se destaca um diagnóstico sobre a cidade de São Paulo, cujas conclusões deveriam orientar o plano diretor para aquela cidade. Os instrumentos de intervenção propostos por Lebret não diferiam muito da proposta dos urbanistas europeus. Porém, o que distingue a emergência desse padrão, no Brasil, é a ênfase na questão social, incorporada aos debates sobre o desenvolvimento.

A reforma urbana modernizadora, de acordo com Ribeiro e Cardoso (1996), traduziu a expressão dos movimentos de esquerda no que se refere ao padrão desenvolvimentista. Um abrangente diagnóstico sobre os problemas urbanos e habitacionais, com ênfase nos últimos, consubstanciou-se no Seminário sobre Habitação e Reforma Urbana. Realizado em 1963, reuniu técnicos ligados às correntes progressistas e, aparentemente, influenciadas pelo Partido Comunista.

Pretendia-se estabelecer um diagnóstico e uma terapêutica que permitisse incluir a habitação e a cidade como temas para reformas de base. Suas características básicas são:

(i) Politização do diagnóstico desenvolvimentista. Os problemas urbanos estariam na essência do ideário das reformas de base.

(ii) O objeto de intervenção passava a ser o espaço nacional, por intermédio de políticas públicas centralizadas, racionalizadoras e redistributivas, com ênfase na questão habitacional.

O tema do planejamento urbano aparece, neste padrão, como forma privilegiada de enfrentamento dos problemas sociais, caracterizados como frutos da dependência do país em relação ao imperialismo estrangeiro. Trata-se, segundo Ribeiro e Cardoso (1996), de uma proposta calcada ainda e, principalmente, no papel voluntarista a ser exercido pelo Estado e pelas vanguardas políticas. A adoção de um padrão planejado de intervenção pública sobre a questão social aparece associada a uma forte ênfase redistributiva, o que diferencia este padrão do tecnoburocratismo desenvolvimentista.

A reforma urbana redistributiva emergiu a partir do desenvolvimento de formas de mobilização pela apropriação dos benefícios da urbanização e da ação do Estado. Sua principal expressão ocorreu no âmbito das discussões da Constituinte, em meados da década de 1980, quando se procurava resgatar o caráter redistributivo presente na proposta de Reforma Urbana de 1963. Suas características básicas são:

(i) Diagnóstico centrado nas desigualdades e nos direitos sociais, a partir do qual se estabelece uma distinção entre ganhos lícitos e ilícitos na produção da cidade. O eixo discursivo deste padrão centra-se na abordagem da exclusão social como fundamento para a elaboração de políticas voltadas às camadas populares.

(ii) O objeto de intervenção é a propriedade privada da terra, o uso do solo urbano e a participação direta das camadas populares e/ou sociedade civil na gestão da cidade.

Esse padrão se constitui por meio de associações tecnocorporativistas, como os sindicatos de engenheiros e arquitetos, entidades de assessoria a movimentos populares, como a Federação dos Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE), a Associação Nacional do Solo Urbano (ANSUR), ou o Instituto PÓLlS (Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais), bem como entidades representativas de movimentos populares, além de representantes das alas progressistas da Igreja.

Segundo a avaliação de Ribeiro e Cardoso (1996), pode-se apontar certa contradição nestas propostas, pois ao mesmo tempo que as mesmas são marcadas pelo autonomismo dos movimentos sociais, também postulam uma presença protetora do Estado, o que poderia indicar, neste movimento, certos traços do populismo. O campo de atuação desse padrão é essencialmente o jurídico, eleito como eixo para a produção de novos direitos sociais. Daí que o seu ponto culminante tenha sido a luta em torno da Constituição Federal. Esse momento marca a transição para o período final, por nós abordado, o qual lança mais questionamentos e reflexões do que afirmações, devido à sua proximidade.