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3.2 URBANO E AMBIENTAL: A LEI EM QUESTÃO

3.2.2 Legislação Urbana e Ambiental: Uma Colisão de Direitos

3.2.2.1 Legislação ambiental

Coutinho e Rocco (2004, pg. 11-16) situam na década de 1980, com a constituição do Partido Verde e o crescimento dos movimentos ambientalistas, o incremento dos debates acerca do meio ambiente. Ao mesmo tempo, os interesses do grande capital representado pelas corporações transnacionais também já se faziam presentes. Em 1981, foi aprovada a lei nº 6.938 destinada a pautar a Política Nacional de Meio Ambiente (BRASIL, 1981), que instituiu, no âmbito político-administrativo o Sistema Nacional do Meio Ambiente (SISNAMA)88 e o Conselho Nacional do Meio Ambiente89, bem como os instrumentos da política nacional do meio ambiente.

Diversos estudiosos do direito ambiental consideram que a formulação da legislação, orientada para as questões ambientais constantes na Constituição Federal de 1988, apresenta diversos avanços. Nela, o meio ambiente é entendido como um bem de uso comum e considerado como direito difuso, ou seja, consistiria um dever de toda a coletividade defendê-lo e preservá-lo, sendo um direito de terceira geração. Coutinho e Rocco (2004, pg. 11-16) salientam a ênfase sobre a concepção municipalista, que pauta a orientação geral das leis. Os autores entendem que as leis apontam para a constituição da autonomia para que os municípios determinem a gestão de políticas públicas no âmbito do seu território, contando, inclusive, com amplitude legal e financeira em termos de possibilidade de ação.

A partir de 1989 e a lei nº 7.804, que altera a lei de nº 6.938 de 1981 (BRASIL, 1989), foi elaborada proposta para unificar as disposições acerca da proteção ambiental. Na seqüência, a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento (Eco-92), como já visto, popularizou o debate ambiental em âmbito nacional, bem como forneceu visibilidade e oportunidades de articulação para os movimentos sociais. Ao longo da década de 1990, novas organizações voltadas aos interesses ambientais surgiram, oportunizando também a participação desses movimentos em debates mais amplos.

No conjunto, as leis nº 6.938 de 1981 e nº 7.804 de 1989 nos parecem consolidar três aspectos marcantes, a saber: (i) o reforço a estruturas de organização burocrática; (ii) a

88 Composição de entidades e órgãos públicos com competências na área de meio ambiente, nos três níveis administrativos (federal, estadual e municipal).

89 O Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais (IBAMA) também foram criados através da mesma lei.

coexistência de orientações de cunho instrumental/regulatório com outras de caráter participativo e de co-gestão; e (iii) a adoção do princípio punitivo de base econômica.

Quanto ao primeiro aspecto, apesar de haver um esforço de articulação nas três esferas administrativas, bem como a institucionalização de órgãos voltados a conduzir as matérias ambientais, nos parece que essa estrutura organizacional padece dos vícios de um burocratismo excessivo. Tal percepção encontra ressonância na avaliação realizada pelo Ministério do Meio Ambiente, por ocasião da Conferência Nacional do Meio Ambiente, ocorrida no final de 2003, e cujo principal objetivo centrou-se na implementação do SISNAMA.

Coutinho e Rocco (2004, pg. 15-16) citam os principais problemas apontados na conferência: (i) a falta de capilaridade do sistema nacional do meio ambiente; (ii) a fraca interação entre federação, estados e municípios; (iii) a escassez de recursos financeiros e de pessoal qualificado; (iv) a pouca autonomia das instâncias municipais; e (v) a falta de base legal - revisada, consolidada e implementada -, a qual possa dar suporte ao sistema. Os mesmos autores defendem, então, que devem ser fomentados: (i) o fortalecimento da gestão ambiental municipal, já que o município encontra-se no centro das atenções políticas do Ministério do Meio Ambiente (M.M.A).; (ii) os pactos federativos entre órgãos das três instâncias, bem como comissões tripartites entre os entes federados, para que haja uma atuação articulada.

No tocante aos instrumentos de política e de gestão ambiental pública previstos na legislação ambiental brasileira, Magrini (2007) relaciona aqueles principais. São eles: (i) os padrões de qualidade ambiental; (ii) o zoneamento ambiental; (iii) o sistema de unidades de conservação90; (iv) o licenciamento ambiental; (v) a avaliação de impacto ambiental; (vi) a auditoria ambiental; (vii) o gerenciamento costeiro e (viii) o gerenciamento de recursos hídricos. Nossa avaliação, baseada nos estudos já desenvolvidos, aponta para uma clara influência da experiência norte-americana91, calcada na inclusão dos pareceres de caráter técnico-científico aos trâmites legais – através da elaboração de padrões, indicadores, parâmetros de uso e ocupação, auditoria, estudos e relatórios - como forma de legitimação de ações. Outro aspecto similar reside na determinação de áreas de caráter distintivo, sob o ponto de vista ambiental, às quais são associadas restrições de uso e

90 Em 2000, o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC) foi aprovado como lei (BRASIL, 2000). Esse sistema é constituído por um conjunto de unidades de conservação federais, estaduais e municipais.

91 Machado (2005) aponta que o estudo de impacto ambiental, por exemplo, tem origem no Direito Norte- americano que, a partir de 1969 passou a exigir a elaboração de um relatório apresentado juntamente com projetos de obras do governo federal, que pudessem causar algum impacto ao meio ambiente.

ocupação92. Nesse último caso, o princípio regulador é o mesmo do zoneamento modernista. Dessa maneira, há o desenrolar da mesma dinâmica que pressiona as áreas ambientalmente frágeis nas cidades, atraindo as populações mais carentes, tal como discutimos na seção anterior93.

Em um país como o Brasil, aonde não há uma ampla apropriação da lei, nem uma participação efetiva dos diversos atores sociais na defesa de seus interesses, nos parece que esta ênfase legal-instrumental restringe a utilização dos meios legais à atuação de atores privilegiados. Essa ênfase também contribuiria para a inércia burocrática já citada anteriormente. O conhecimento técnico-científico, tido como saber neutro - quando na verdade não o é - serviria usualmente como legitimador de interesses particulares. Percebe- se que muitos desses estudos são elaborados às expensas da parte interventora, restando ao poder público ou à sociedade civil organizada pouco espaço de manobra a fim de defender interesses outros e/ou coletivos94.

No caso Americano, a mobilização da sociedade, evidenciada através das ações ganhas nos tribunais, abriu amplos precedentes, o que fomentou os processos de tecnificação dos riscos tecnológicos e ambientais, como já visto anteriormente. Essa distinção explicita um aspecto fundamental entre os sistemas jurídicos e sociais americano e brasileiro. O ordenamento calcado na jurisprudência permite que uma sociedade mais atuante escreva suas leis, à medida que as demandas provenientes dela sejam reconhecidas através do conflito de interesses.

Cunha e Coelho (2001, pg. 75) avaliam que mais recentemente no âmbito das políticas ambientais há o predomínio de duas posturas: (i) uma de caráter predominantemente regulatório, calcada numa visão instrumental e reformista dos mecanismos de regulação e uso dos recursos naturais; e (ii) outra fundamentalmente estruturadora, baseadas em princípios conservacionistas de proteção da natureza, que adotam noções de co-manejo e gestão participativa.

92 Gostaríamos de salientar que, no caso deste trabalho, o foco não recai na discussão acerca dos parâmetros de restrição que foram estabelecidos para as unidades de conservação, mas no questionamento acerca de certas implicações sócio-espaciais quando da adoção dessa prática.

93 Para uma discussão sobre ocupações humanas em unidades de conservação, ver Anderson e Moreira (1996)

94 Um caso bastante ilustrativo é a normatização que rege as atribuições do estudo e do relatório de impacto ambiental por ocasião do pedido de licenciamento ambiental (Resolução CONAMA n. 237/97). O EIA- RIMA fica à cargo da parte proponente, não havendo impedimento para que a mesma equipe técnica que realiza determinado projeto, programa, plano ou política, também seja executora do EIA-RIMA. Caso o parecer do processo seja favorável, fica condicionada a aprovação da proposta por parte do poder público. Caso o parecer seja desfavorável, ainda assim, há a possibilidade de aprovação da proposta.

O caráter simplesmente regulatório nos parece problemático, pois obscurece os atores sociais envolvidos na vivência cotidiana do meio ambiente, bem como o processo político existente nos conflitos ambientais.

Alguns autores, como Moraes (2004), defendem que mesmo as áreas de proteção ambiental oferecem oportunidades para o desenvolvimento de experiências de gestão participativa, as quais possam, pelo fortalecimento de mecanismos de participação e envolvimento das populações quer dentro quer no entorno dessas unidades, promover a proteção à biodiversidade e o desenvolvimento não predatório. Essas possibilidades nos parecem interessantes, desde que nos lembremos que uma questão essencial reside na qualidade do processo sócio-político que ocorre na gestão das propostas territoriais. Consideramos de extrema relevância o fortalecimento de práticas de participação e gestão territorial de base local que sejam capazes de articulação e ação em diferentes escalas, meios e esferas, bem como a compreensão das possibilidades de conjugação dos interesses sociais com os ambientais.

Finalmente, há a assunção do princípio punitivo, cujo caráter se dá pelo estabelecimento de cobrança econômica, o chamado “poluidor pagador”. Esse aspecto, por um lado, rendeu menções positivas quando foi incorporado à lei. Por outro lado, explicita a noção da natureza como mercadoria, agora não mais considerada como uma externalidade do modo de produção. Alguns estudos no campo da economia ecológica têm procurado estabelecer o quanto vale o meio ambiente, a fim de estipular valores compensatórios nos processos legais.

Todavia, pensamos que a tarefa de quantificar algo que tem interpretações tão amplas não pode ser encarada como objeto de uma ciência exata, pois as interpretações e recortes de análise serão sempre arbitrários. A incorporação de variáveis qualitativas exige um debate mais complexo, profundo e democrático. Uma avaliação atual nos aponta para o questionamento da efetividade desse princípio, já que não há no país uma prática consistente de fiscalização, mobilização e cobrança da sociedade e dos órgãos competentes contra os prejuízos sócio-ambientais causados pelas elites locais e as grandes corporações. Ao nosso ver, a pressão provocada pela ação conjunta desses grupos privilegiados, direta ou indiretamente, consiste num dos principais geradores dos impactos sócio-ambientais que tanto desafiam as reflexões no campo do planejamento urbano e regional no país.

Para as grandes corporações, quando e se uma penalidade é eventualmente imposta, o valor a ser pago lhes é irrisório, tornando-se uma permissão para que as mesmas práticas predatórias continuem sendo realizadas95.

O efeito desejável que o princípio do poluidor pagador deveria exercer seria a mudança dos padrões de ação por parte de agentes interventores que causam impactos sócio-ambientais, de maneira a tornar-se um vetor de força no restabelecimento das relações de poder. Ou seja, a aplicação do principio punitivo deveria provocar uma mudança pró-ativa no sentido de orientar práticas menos predatórias, minimizar impactos sócio-ambientais, além de ser mais uma “arma” da sociedade na defesa dos direitos coletivos e difusos. Todavia, não é essa situação que presenciamos atualmente. Ações em defesa dos direitos coletivos e difusos ficam restritas aos Ministérios Públicos, que têm exercido importante papel na defesa dos interesses coletivos, embora o volume de demandas exceda os esforços dos envolvidos.

Ademais, há estudos como o de Fuks (1996) que apontam para o número inexpressivo de ações judiciais em prol do meio ambiente movidas por setores da sociedade civil. O autor (FUKS, 1996, pg. 210) conclui que o sentido universal, ao qual os interesses difusos se associam na teoria, não se realiza na prática judicial, pois ele avalia que a sociedade civil ainda encontra-se passiva diante dos interesses coletivos. Segundo ele, quando há mobilização, em geral, a participação revela a existência de interesses particulares, além do fato dessas manifestações não estarem distribuídas de forma homogênea pelos diversos grupos sociais, pois surge em número mais expressivo nas camadas médias e altas.

Apesar do estudo do autor ter sido realizado há mais de uma década atrás e ter se restringido ao estado do Rio de Janeiro e de não dispormos de outra avaliação mais recente, o que gostaríamos de salientar é que num país como o Brasil, que ainda não conseguiu atingir a condição de satisfazer as necessidades básicas da maioria de sua população, é compreensível que as iniciativas de mobilização em prol de interesses difusos - tal como o meio ambiente – não surjam como uma prioridade para essa maioria excluída. Com isso não queremos dizer que defendemos que as ações em prol do meio ambiente devam ocorrer somente depois que aspectos como moradia, saúde, educação, saneamento dentre outros tenham sido providenciados de modo generalizado. Essa visão que

95 Quando nos referimos as práticas predatórias queremos dizer ações que causam impacto social e ambiental, já que temos visto que no Brasil, essas duas questões estão imbricadas, devido à maneira como o modo de produção capitalista tem sido incorporado historicamente pela sociedade e o território, bem como pelo papel que o país tem exercido na dinâmica econômica global.

hierarquiza a necessidade de provisão de melhorias às camadas mais pobres afirma a dicotomia no tratamento das questões urbanas e ambientais, além de induzir à elitização do meio ambiente. Devido às condições que encontramos no país acreditamos que a articulação das questões sociais, urbanas e ambientais seja imperativa96.

Tendo em conta os argumentos dispostos e o panorama que se descortina, atualmente, pensamos que a legislação ambiental brasileira acaba por não se efetivar como política, de fato, tal como preconiza. A análise dos princípios e dos conteúdos que perfazem as leis ambientais federais também nos leva à consideração de que há neles elementos que sugerem um momento de transição de paradigmas. Reconhecemos nesse conjunto de leis tanto posturas mais tradicionais, características de formas de regulação mais centralizadoras e instrumentais, assim como novas orientações calcadas nas noções de descentralização, participação e co-gestão.

A exigência e o cumprimento de aspectos instrumentais nas leis de caráter reformista – como a preparação de relatórios técnicos de impacto ambiental, por exemplo – têm na melhor das hipóteses oportunizado algumas compensações, que no cômputo geral acabam sendo paliativas, pois seus efeitos operam de modo fragmentado ainda pouco contribuindo para a elaboração de propostas sinérgicas.

Por outro lado, as iniciativas que se orientam aos novos paradigmas, apesar de ainda ocorrerem de modo pontual, descontínuo e não sistemático, são extremamente importantes para que haja o acúmulo de experiências que aos poucos contribuirão para transformações estruturais. Atualmente, como a mobilização, a articulação e a atuação pró- ativa de organizações representativas da sociedade civil ainda não ocorrem de modo efetivo, mudanças mais significativas no tocante à reorientação de propostas de desenvolvimento estruturadas sob bases sócio-ambientais ainda não surgem de modo evidente.