• Nenhum resultado encontrado

Escrever a trajetória biográfica da “mais brasileira das bailarinas” é, também, registrar um pouco da história, ainda pouco explorada, da dança cênica nos palcos nacionais. Igualmente é defender a sua legitimidade e relevância enquanto objeto dos estudos históricos. Arte que ainda recebe pouca atenção dos historiadores brasileiros quando se trata da análise do corpo enquanto instrumento fundador da experiência de vida. E é nesse sentido, em parte, que proponho a análise da vida e obra de Eros Volúsia, recorrendo, igualmente, aos seus escritos sobre si e as apreensões de contemporâneos seus. Eros era uma artista-intelectual que com o próprio corpo e por meio de estudos produziu gestos que pretendiam forjar a bra-

silidade em seu estado bruto e primitivo, projetando o futuro da moderna nação brasileira. 1

A bailarina é uma daquelas personagens na qual a arte e a vida se fundem de uma maneira na qual o público e o privado dificilmente po- derão ser distinguidos de forma clara e objetiva. Nas narrativas sobre si, a própria Eros selecionou elementos que justificariam a sua predisposição para desvendar e estilizar as danças nacionais desde a tenra idade. É assim que ela gostaria de ser vista e é assim que muitos a interpretaram. O sen- timento de missão dá coerência à sua narrativa pública. Ter a consciência desta operação talvez me ajude a enfrentar o desafio de produzir uma escrita que não reforce a mitologia e, ao mesmo tempo, não torne estéril a identidade da personagem. É uma boa oportunidade para fazer uma viagem na qual a paisagem histórica pode ser observada por outros olhos e novos ângulos (GOMES, 2004).

1. Eros é pouco conhecida fora dos meios dedicados ao estudo da dança acadêmica. Destacam-se as obras: Pereira (2004); Silva (2007); EROS Volúsia: dança mestiça. Direção: Dimas Oliveira Junior e Luis Felipe Harazim. Coprodução da We Do Comunicação em realização da Rede STVS-SESC-SENAC, 2004. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=qlxgwmm_kHE>. Atualmente, o diretório de pesquisa em Artes Cênicas da UnB recebe o nome de Coletivo de Documentação e Pesquisa e Dança Eros Volúsia (CDPDan)..

Diante de uma trajetória um tanto densa, foi preciso fazer escolhas. Entre as opções mais significativas para os objetivos do texto, destaco quatro: a relação com o movimento estético modernista nacional e inter- nacional; os laços de sociabilidade estabelecidos com artistas e intelectuais cariocas engajados com proposta de renovação da arte; as relações com o governo Vargas, destacadamente na época do Estado Novo (1937-1945); e, por fim, a representação da brasilidade no corpo e nos movimentos de Eros em terras estrangeiras. Seguindo recortes temáticos, quando possível, foi obedecida a sequência cronológica dos fatos. Recorremos a fontes documentais diversas, como os periódicos; as memórias deixadas pela própria bailarina; o acervo do Fundo Gustavo Capanema/CPDOC; e o acervo do CEDOC/Funarte.

O contexto histórico no qual a arte da bailarina emergiu, entre as dé- cadas de 1930 e 1940, foi caracterizado pela interseção entre os anseios de intelectuais e artistas modernistas e a política nacionalista do governo Vargas. Cultura e política se mesclaram dando origem a uma rica experiên- cia estética. Mas se partimos do princípio do caráter histórico do estatuto artístico, como medir a relação entre o espírito criativo, a subjetividade e os condicionantes do contexto, sem recorrer a excessos, nem para um lado, nem para outro? A trajetória artística de Eros, ao longo do texto, é revelada sem haver a pretensão de resolver a problemática em si e, por- tanto, estabelecer diagnósticos rígidos e indiscutíveis que determinem as fronteiras e as interações entre arte, artista, público e momento histórico.

As origens

Os poetas Gilka Machado, famosa por sua escrita erótica, e Rodolpho Machado, morto precocemente, prenunciaram o futuro da filha ao lhe registrar como Heros Volúsia Machado. Com a carreira artística, a bailarina suprimiu a primeira letra do nome, passando a se chamar Eros, deus do amor na mitologia grega. Nada poderia ser tão revelador. A sonoridade das palavras provocava as imaginações e parece expressar, com exatidão, a personalidade da jovem bailarina.

Nascida em 1º de junho de 1914, Eros ensaiou os seus primeiros passos no antigo bairro de São Cristóvão, na cidade do Rio de Janeiro. Era determinada e, segundo os seus contemporâneos, dotada de uma be-

leza morena encantadora. A bailarina se definia como mestiça. A mistura de elementos indígenas, negros e brancos em seu sangue indicariam a predisposição para a dança brasileira, de acordo com a sua própria inter- pretação. Era como se o determinismo biológico e do meio, associados a uma transcendência espiritual, definissem o seu caminho:

Eu não danço por informação, em meu corpo de mestiça orgu- lhosa da ancestralidade, bem cedo acordaram manifestações atávicas. Comecei a dançar naquele terreiro, lá dei os meus pri- meiros recitais. O velho ‘babalaô’ atribuía as minhas danças a um enviado de Yemanjá [...] (VOLÚSIA, 1939).

A arte da bailarina selecionava e representava o que considerava como as mais legítimas e originais manifestações da cultura brasileira. Em busca da síntese da nação, forjava estilizações compreendidas como capazes de representarem a unidade entre o presente, o passado e o povo brasileiro. Uma aspiração que intelectuais de gerações anteriores já havia manifestado. 2

A memória operacionalizada por Eros, em sua autobiografia, apre- senta uma infância ligada precocemente à dança e à cultura popular brasileira, criando, assim, os primeiros fundamentos legitimadores do seu papel no cenário artístico. Os anos iniciais de vida teriam sido marcados por apresentações em sua casa e pelo contato direto com os ritmos das ruas da cidade do Rio de Janeiro. Destacadamente o samba e as danças dos terreiros de candomblé. (VOLÚSIA, 1983, p. 38)

Mestiça e popular foram duas categorias frequentemente acionadas por Eros ao construir a sua imagem pública como representante da “raça brasileira”. Para a bailarina, o balé clássico europeu não daria conta de expressar a identidade de seu povo. Haveria um sentido, quase metafísico, para a sua arte: “Seria absurdo cultivar uma arte de expressão internacio- nal, quando toda uma raça esperava de meu corpo a realização de sua alma” (VOLÚSIA, 1983). Seja como for, o primeiro contato de Eros com a dança acadêmica se deu na escola de bailados do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, fundada em 1927, sob a direção da russa Maria Olenewa. A mestra, junto com outros bailarinos do leste europeu, havia cruzado o Atlântico fugindo das dificuldades advindas do processo revolucionário

em curso na Rússia. Posteriormente, outros profissionais também se es- tabeleceram no novo continente por conta da devastação da Segunda Guerra Mundial. Esses artistas e suas companhias foram, em grande parte, responsáveis pela divulgação do balé clássico e pela criação de escolas ligadas à tradição russa em vários países do novo continente, como Cuba, Argentina, México, Brasil e Estados Unidos (PAVLOVA, 2001).

A dança de Eros esteve mergulhada no processo de renovação da dança acadêmica que ocorria na Europa e nos Estados Unidos desde a virada do século XIX para o XX. Por meio de experimentações e inovações bailarinos de origens e escolas variadas buscavam uma nova forma de expressar o homem e seus sentimentos. Estavam conectados ao espírito modernista que atravessa as artes. Já no início do século XX, as experiên- cias das norte-americanas Loie Furler e Isodora Duncan e do russo Vaslav Nijinky trouxeram grandes impactos. Para Huesca (2012) e Suquet (2012), os três podem ser considerados pioneiros da dança moderna. Expressio- nistas ou inspirados pelo primitivismo e/ou futurismo tinham propostas bastante distintas que rompiam com os padrões estéticos do século XIX e suas linhas retas cartesianas.

Estes bailarinos apresentaram as suas artes revolucionárias na ci- dade do Rio de Janeiro no começo do século XX. Loie Fuller, em 1904; Nijinsky, junto ao Ballets Russes, em 1913; e Isadora Duncan, em 1916 (HUESCA, 2012; SUQUET, 2012). Eros Volúsia nasceu em 1914, não assistiu as apresentações, mas certamente entrou em contato com a atmosfera de inovações trazida pelos percussores da dança moderna, sobretudo o ex- pressionismo de Duncan, por quem nutria particular admiração. Inspirada nas observações de imagens retratadas nos antigos vasos greco-romanos e da própria natureza, a bailarina norte-americana dançava descalça com túnicas esvoaçantes e translúcidas, libertando o corpo feminino. Buscava movimentos compreendidos como naturais. A dança deveria ter a função de expressar as emoções, a alma (DUNCAN, 1940).

Em 6 de setembro de 1929 Eros já aparece na imprensa como inte- grante do elenco da opereta A montaria, do espanhol Jacintho Guerrero, encenada no Teatro Apollo, em São Paulo. 3 Mas o que tudo indica é que

a estreia da bailarina, como representante da dança nacional, foi em 28

de setembro de 1929, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro (PEREIRA, 2004).

Era a “Festa da Primavera”, organizada pela Mocidade Feminina Ca- rioca com o objetivo de celebrar a nova estação do ano e homenagear o presidente da República, Washington Luiz. O público era composto por representantes do governo federal e destacados nomes da elite da capital. Como noticiado à época, o evento foi marcado por “fortes sentimentos patrióticos”, característica de uma geração que desejava construir as bases da modernidade a partir do que era então compreendido como legitima- mente popular. Assim, na ocasião, foram apresentados músicas, danças e versos que se destacavam pelo “caráter de acentuada brasilidade”. Tipos populares idealizados, como o matuto, o caipira, o sertanejo e a morena brejeira, foram apresentados ao público. 4

Jovens intérpretes, como a cantora e violonista Olga Praguer, em- prestaram as suas vozes para composições marcadas pelo regionalismo e pelos ritmos considerados populares. Entre as composições apresentadas naquela noite estiveram obras de destacados representantes do universo musical brasileiro, como: J. Imberê, Catulo da Paixão Cearense, Ernesto Nazareth, Luiz Peixoto, Heckel Tavares e Olegário Marianno. 5

No evento destacou-se a apresentação da composição inédita “Oia a fóia no a”, de Aníbal Duarte de Oliveira e identificada como “samba típico baiano”. De acordo com Ruy Castro, Oliveira se dedicava, dentre outras atividades, a organizar shows beneficentes. Em janeiro do mesmo ano, 1929, ele havia lançado Carmem Miranda em seu primeiro musical, tam- bém dirigido pelo compositor Josué de Barros, em um festival organizado no Instituto Nacional de Música (CASTRO, 2005, p. 38-44).

Eros, então aos 15 anos de idade, fez parte da apresentação de “Oia fóia no a”. Número contava com o canto e a dança de um grande gru- po de jovens. Ainda identificada pelos jornais como Heros Machado, a bailarina parece ter despertado a atenção do seleto público ao dançar descalça acompanhada por violões e batucadas (PEREIRA, 2004, p. 27) 6.

4. A Manhã, Rio de Janeiro, 28 de setembro de 1929. p. 1. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 28 de setembro de 1929. p. 5.

5. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 28 de setembro de 1929. p. 5. 6. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 28 de setembro de 1929. p. 5.

Surgia, assim, o mito de criação da bailarina. Segundo as memórias de Eros, ao fim da apresentação teria ocorrido um silêncio absoluto do pú- blico só rompido pelos aplausos entusiasmados do próprio presidente da República, que teria feito questão de visitá-la no camarim. Nada mais poderia reforçar tão bem a ideia de predestinação da bailarina do que o reconhecimento do próprio chefe da nação (VOLÚSIA, 1983, p. 37). 7

No final do ano seguinte, a jovem, já identificada com o seu nome profissional, aparece nos jornais como integrante da Companhia Regional Brasileira. Em 1º de janeiro de 1931, estreava no teatro Cassino (RJ) as peças “A voz do violão” e “O disco no sertão”. Ambas do compositor e músico Freire Júnior, um dos maiores autores de revistas musicais da épo- ca. As revistas, espetáculos importantes na vida cultural da então capital federal, se multiplicavam pelos teatros e cassinos, empregando muitos profissionais. Constituíam lugares de criação e sociabilidade nos quais circulavam artistas variados e se desenvolvia uma estética tipicamente carioca, exportada como representante da brasilidade. (LOPES, 2000; BAR- ROS, 2005).

O primeiro recital de danças apresentado exclusivamente por Eros ocorreu em 10 de abril do mesmo ano, no teatro João Caetano. Tratava-se de uma homenagem ao então interventor da capital do país, Adolpho Ber- gamini, designado pelo governo provisório instituído após a Revolução de 1930. O evento foi patrocinado pela Associação dos Artistas Brasileiros e contava com composições estrangeiras e nacionais.

Foram apresentadas danças expressionistas, como “Ânsia Azul”, com música de Debussy, e números que seriam inspirados na cultura popular, como lundu, jongo e samba. Destacou-se o número “Amor de Iracema” que, baseado no romance de José de Alencar, contava com composição de Antônio Peixoto Velho realizada exclusivamente para a bailarina. “Ser- taneja” também foi outro sucesso da noite.

Este último número era encenado junto à composição homônima de Basílio Itiberê da Cunha. Produzida em 1869, a peça musical é conside- rada a mais antiga e significativa obra pianística de concerto brasileira e, igualmente, destaca-se por fazer uso de melodias folclóricas nacionais. 8

7. Documentário Eros Volúsia: a dança mestiça (2004).

“Sertaneja” era entendida por Eros como um dos seus trabalhos de maior importância, por retratar “a mais interessante mulher brasileira”. A baila- rina trazia para o palco o regionalismo e a idealização do tipo sertanejo, presentes na literatura brasileira desde o final do século XIX. Fruto do isolamento geográfico e da mistura entre bandeirantes e indígenas, de acordo com a definição mítica de Euclides da Cunha, a sertaneja era repre- sentada pela bailarina por meio de movimentos do corpo que remeteriam à sua natureza. Mais do que isso, Eros, que trazia em seu figurino uma cruz nas costas, parecia apresentar nos palcos a idealização da mulher nordestina, arredia e de grande força-física, eternizada na personagem Luzia, da obra Domingos Olimpio, “Luzia-Homem”, publicada em 1903 (VOLÚSIA, 1983, p. 45).

O espetáculo foi amplamente comentado pela imprensa carioca. A moderníssima revista Fon-Fon! destacou “o máximo da beleza choreo- graphica” da jovem bailarina em “Sertaneja”. 9 Já o Diário de Notícias, de

Assis Chateubriand, um dos principais apoiadores da Aliança Liberal e de Getúlio Vargas na imprensa, exalta a originalidade do requinte primitivista de Eros: “[...] dentro da melodia brasileira todo o seu ser vibra desse arras- tado e arrebatamento que vive no nosso samba, no nosso jongo, no nosso maxixe de salão”. 10

Eros tinha grande plasticidade. Seu corpo com movimentos intensos, livres e espontâneos foram registrados por vários periódicos e um grande número de fotos está no seu livro de memória. Percebemos um corpo pequeno que se agiganta com movimentos que rompiam profundamente com as linhas retas da estética clássica. Muitas vezes aparece descalça com longos cabelos soltos e esvoaçantes, usando vestimentas sempre ornadas com muitos adereços ou, no caso das danças expressionistas, com túnicas, tal como Duncan e Loie Fuller. Os figurinos eram temáticos, em “Caboclinho”, por exemplo, usava um cocar, uma saia com penas e um pequeno arco e flecha. Em “Macumba” usava um bustiê feito de contas e uma tanga toda enfeitada com franjas que acentuavam os movimentos de seus quadris. Pernas e barrigas a mostra davam um ar, às vezes, de sen-

larusso. ‘A Sertaneja’ de Basílio Itiberê: a primeira obra de concerto pianística brasileira. Falando de Música, Gazeta do Povo. 30 ago. 2017. Disponível em: <https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/ falando-de-musica/a-sertaneja-de-brasilio-itibere/>. Acesso em: 04 de jul de 2018.

9. Fon Fon!, Rio de Janeiro, 18 de abril de 1931, p. 51.

sualidade, e, outras, de primitivo. Características que apareciam mescladas no corpo da jovem bailarina. Em “Dança Selvagem”, Eros fazia movimen- tos embrutecidos e primários que foram registrados no documentário da década de 1940, “As Rainhas do Bailado”. 11

Outro importante figurino usado por Eros era o de baiana. De forma estilizada a bailarina representava as quituteiras de Salvador que, ideali- zadas, já estavam presentes nos palcos dos teatros cariocas desde o final do século XIX. Sensual e matreira, o ícone da representação da brasileira no imaginário ocidental foi eternizado por Carmem Miranda nos cassinos e, principalmente, em Hollywood. Curiosamente, os famosos movimentos ondulantes das mãos da pequena notável, segundo as memórias Eros, te- riam sido criados pela própria bailarina na coreografia “Cascavelando”, na qual imitava os movimentos de uma serpente. E, posteriormente, “teriam sido emprestados” a it-girl brasileira. 12