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Até onde pode ir um negro na “democracia racial” brasileira?

Desde pelo menos 1945 o nome de Raymundo esteve com regula- ridade ligado à Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e à Associação Brasileira de Escritores (ABDE), 56 como eventualmente associado a mo-

vimentos políticos ligados ao chamado movimento negro que abrigava membros oriundos de diversas correntes ideológicas. Embora não tenha sido um ativista dos mais atuantes, Souza Dantas apareceu ao longo dos anos em diferentes grupos e eventos, junto e associado com Abdias do Nascimento e outros importantes líderes negros. 57 Por exemplo, os dois

acompanhados de outros colaboradores, como Solano Trindade, Aladir Custório e Corsino de Brito, fundaram o “Comitê Democrático Afro-Brasi- leiro”, em março de 1945 (SOTERO, 2015, p. 131). O Comitê reuniu-se em 22 de março de 1945 e exarou uma “Declaração de Princípios” contendo 27 itens. 58 Nos interessa especialmente o 18º item que reivindicava a

“Abolição das seleções raciais e de cor na diplomacia”, uma vez que essa é a primeira denúncia pública dando conta das restrições à entrada de negros no Itamaraty que pudemos identificar logo após o fim do Estado Novo. A segunda ocorreu um ano depois, em de março de 1946, durante os trabalhos da Assembleia Constituinte, contida em discurso pronuncia- do pelo senador Hamilton de Lacerda Nogueira. 59

Desde então, e nos anos seguintes até 1961, especialmente a expe- riência e o relato do professor José Pompílio da Hora que tentou seguir

54. Anais da Biblioteca Nacional, 1876-2009, p. 225-226; O Jornal, Rio de Janeiro, 2ª seção, 7.7.1959, p. 3.

55. O Globo, Rio de Janeiro, 5.11.1960, p. 11.

56. Entre outros, Diário da Noite, Rio de Janeiro, 31.3.1946, p. 4; Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 8.11.1947, p. 2.

57. Entre outras, Raymundo colaborou com Abdias nas aulas de alfabetização e iniciação cultural do Teatro Experimental Negro, ao longo dos anos.

58. O Jornal, Rio de Janeiro, 23.3.1945, p. 3.

59. Entre outros, Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 15.3.1946, p. 3, Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 15.3.1946, p. 2.

carreira na diplomacia brasileira mas esbarrou nas restrições ao ingresso de negros no Itamaraty, foi mencionada conjuntamente com diversas rei- vindicações por parte de ativistas no sentido do combate ao preconceito e do estabelecimento de uma sociedade sem racismo. 60

Entre os militantes negros que denunciavam pública e sistematica- mente a discriminação nesse período, além de Pompílio da Hora, Joviano Severino de Mello e João Cabral Alves foram alguns dos que mais vezes obtiveram espaço nos jornais para denunciar o racismo e aproveitaram algumas oportunidades para apontar a ausência de afro-brasileiros nos quadros do Ministério das Relações Exteriores (MRE). 61

O embaixador Lafayette de Carvalho e Silva foi diretor do Instituto Rio Branco entre 1947 e 1956, tendo sido um dos mais longevos no posto (MOURA, 2007, p. 31). Ainda como diretor, o embaixador concedeu uma longa entrevista a Carlos Rocha Mafra de Laet do Última Hora e publicada em setembro de 1951. Na oportunidade, o diplomata desenvolveu argu- mento que buscava justificar a ausência de negros entre os diplomatas brasileiros. Carvalho e Silva reiterou a atribuída “democracia racial” no país ao mesmo tempo em que “exportou” o racismo – assim como a responsa- bilidade pelo preconceito – para as nações racistas do exterior. A prática ou estratégia seria reutilizada 10 anos depois quando da nomeação de Raymundo para o posto de embaixador. A entrevista se deu no contexto em que candidatos negros reprovados na seleção do Instituto Rio Bran- co alegaram racismo no processo seletivo. 62 Em seu discurso, o diretor

deixou claro que o inconveniente e o mal-estar em relação a entrada de negros na diplomacia brasileira relacionava-se não a problemas da cultura ou da sociedade brasileira, mas a preconceito dos povos estrangeiros. Impedindo ou desmotivando-se a entrada de não brancos na carreira, se estaria evitando o constrangimento, entre outros problemas (COSTA, 1982, p. 84-88).

É fato que muitos países, naquele momento, seguiam racistas e es- tabelecendo restrições de toda ordem naquelas sociedades. Mesmo os

60. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 27.4.1946, p. 11.

61. Redenção, Rio de Janeiro, 9.12.1950, p. 4. Entre outros, A Noite, Rio de Janeiro, 5.7.1951, p.1; Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 12.12.1955, p. 4; O Globo, Rio de Janeiro, 5.7.1956, p. 5; Luta De- mocrática, Rio de Janeiro, 7.9.1958, p. 2.

representantes negros de países Africanos nas Nações Unidas, não raro, encontraram dificuldades para acomodação e outras. O que de modo algum, na perspectiva do universo diplomático, respaldariam os argumen- tos de Carvalho e Silva.

A ausência de afrodescendentes em postos de prestígio no Brasil, entre os quais, os diplomáticos, já vinha sendo denunciada desde o fim do Estado Novo. A sugestão de Raymundo Souza Dantas representar o go- verno brasileiro no exterior também não era sugestão nova. Localizamos pelo menos um registro publicado quase quatro anos antes da nomea- ção de Raymundo para Gana. Com o título “Racismo Frio do Catete e do Itamaraty. Não Querem Negro na Representação Brasileira na ONU” um jornal do Rio de Janeiro anunciou em janeiro de 1957, reproduzindo en- trevista com Joviano Severino de Melo, fundador da “União dos Homens de Cor” que declarou ao jornal: “Dizem que o Brasil é uma democracia racial, isenta do preconceito de cor. Puro engano” e registrou que havia enviado à presidência da República e ao Itamaraty demanda pela desig- nação também de representantes brasileiros negros no exterior e, entre os nomes sugeridos, estava o de Raymundo Souza Dantas. 63 Como Joviano

nunca obtive qualquer retorno por parte das autoridades, asseverou: “[...] responderam-nos com a maior indiferença, o que nos leva à proposição inicial: há preconceito de cor no Brasil!”.

Nesse período a acusação de racismo contra o Itamaraty seguiu sur- gindo mais algumas vezes na imprensa quando o tema se relacionava às situações nas quais se abordava o tema do preconceito aos afrodes- cendentes na sociedade brasileira. 64 Em maio de 1959 o Última Hora

estampou em sua capa a chamada “Racismo no Itamaraty”. O pequeno texto dava conta de que “[...] circulam rumores de que D. Vera [Regina do Amaral] Sauer, 1ª secretária do Itamaraty, incumbida de coordenar os exa- mes de seleção ao Instituto Rio Branco está imprimindo a esses exames orientação destinada a impedir o ingresso de pretos na ‘carriere’. Atitude, aliás, que o próprio sobrenome de D. Vera sugere, fazendo reeditar, no Brasil, processos nazistas”. 65

63. Luta Democrática, Rio de Janeiro, 10.1.1957, p. 1 e 2.

64. Entre outros, O Semanário, Rio de Janeiro, 10 a 17.10.1957, p. 3; Última Hora, Rio de Janeiro, 11.3.1958, p.3; Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 14.4.1959, p. 7 e 13; Última Hora, Rio de Janeiro, 17.4.1959, p. 1; Luta Democrática, Rio de Janeiro, 18.4.1959, p.1 e 2.

A capa do Jornal do Brasil de 7 de agosto de 1959 trouxe a seguinte chamada: “Lott leva a Kubitschek queixa contra Lafer: preto não pode ser diplomata”. O então Ministro da Guerra recebeu ativistas negros que o pro- curaram para “reclamar contra irregularidades no ministério do Exterior”. 66

O grupo solicitou que o ministro intervisse já que “[...] pessoas de cor estavam sendo sistematicamente recusadas (sob diversas desculpas) ou sumariamente reprovadas, quando se apresentavam como candidatas ao vestibular do Curso Rio Branco, no Itamaraty, destinado a formar diplo- matas de carreira”. A notícia repercutiu em outros jornais 67 e produziu

resposta pública com esclarecimentos de Horácio Lafer, que tinha assu- mido o ministério dias antes, negando categoricamente a existência de “preconceito racial no Itamaraty”, mas que no entanto, iria realizar “uma sindicância mais rigorosa do assunto.” 68

Em 25 de setembro de 1959 a revista Mundo Ilustrado na chamada de capa estampou a acusação: “Racismo no Itamaraty”. A reportagem de cinco páginas, trouxe como título: “Negro não entra no Itamaraty”, escrevendo no alto da página “Democracia brasileira, 1959” e anunciando que “[...] pela primeira vez a velha denúncia de que há preconceito racial no Itamaraty é comprovada numa reportagem”, reproduzindo fotografias dos jardins, do cisne do palácio do Itamaraty e de José Pompilio da Hora. Em destaque, registrou que “negro pode ocupar uma cátedra na universi- dade: ser diplomata, não” e que

[...] é verdade que existe preconceito racial no ministério das Relações Exteriores e, por esta afirmação, Mundo Ilustrado res- ponsabiliza-se inteiramente, apresentando um negro brasileiro, professor de direito e homem de vasta cultura, cujo ingresso foi barrado, de modo inexplicável, no Itamaraty, quando se apresen- tou para a carreira diplomática. 69

66. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 7.8.1959, p. 1.

67. Entre outros, Diário Carioca, Rio de Janeiro, 7.8.1959, p. 3.

68. Diário do Paraná, Paraná, 2.8.1959, p. 3; 4.8.1959, p. 1; O Jornal, Rio de Janeiro, 8.8.1959, p. 3; Última Hora, Rio de Janeiro, 8.8.1959, p. 4; Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 8.8.1959, p. 3; Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 8.8.1959, p. 6; Diário da Noite, Rio Janeiro, 8.8.1959, p. 6; Jornal do Commercio, Rio de Janeiro, 8.8.1959, p. 3; Diário do Paraná, Paraná, 8.8.1951, p. 2; Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 8.8.1959, p. 5.

A reportagem repercutiu em outros periódicos. 70 Em depoimento que

concedeu anos mais tarde, o professor José Pompilio da Hora relatou que tentou duas vezes o concurso para o Instituto Rio Branco, a primeira em 1948, ocasião que teria ouvido do então ministro das Relações Exteriores João Neves da Fontoura que “[...] no Cais do Porto estamos precisando de muitos trabalhadores, você é forte, você dá”. Na segunda tentativa, contou que um professor do próprio Instituto, pai de dois alunos seus, teria dito: “Professor, pela segunda vez o senhor está tentando a carreira diplomática. Lembre-se de uma coisa: o senhor é negro, jamais vai trans- por os umbrais do Rio Branco [...]. Desista, professor. O senhor nem pense em entrar na carreira diplomática do qual eu sou o coordenador cultural” (COSTA, 1989, p. 84-88).

Compreensivelmente, o Itamaraty representava para os ativistas negros, simbolicamente, um importante e sensível local de persistente ex- clusão. Os esforços de denúncia e mobilização dos anos anteriores seriam reiterados e ganhariam mais espaços e repercussão a partir daí.