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Entre o passado primitivo e o futuro moderno: o corpo mestiço

Na imprensa o termo folclore era frequentemente associado à dança de Eros. O interesse pelos aspectos culturais, considerados legitimamente populares, 13 era corrente desde a geração de intelectuais de 1870 (ABREU,

2016; CARLONI, 2018). Em 1940, uma edição da Pranove, revista ilustra- da da rádio Marink Veiga e dedicada a notícias sobre cultura, publicou um texto da folclorista Mariza Lira sobre a arte de Eros Volúsia. Segundo Moraes (2006), a historiadora da música fazia parte de um grupo de pes- quisadores dedicados ao estudo da música brasileira moderna urbana. Ela pertencia à chamada segunda geração de folcloristas e reafirmava a con- dição científica do folclore, definindo que a produção musical brasileira estaria diretamente relacionada com as condições raciais e mesológicas.

Discurso que se aproximava ao de Eros, que definia quase um deter- minismo biológico e geográfico para justificar a sua a predisposição para

11. As Rainhas do Bailado. Produção de: Flamma Filmes, [194?]. Disponível em: https://www.youtube. com/watch?v=zexvP_k3MiA. Acesso em: 04 de jul. 2018.

12. A respeito da construção da imagem da baiana, ver: Garcia (2004) e Barros (2005). O depoimento de Eros sobre o “empréstimo” à Carmem Miranda encontra-se no documentário Eros Volúsia: dança mestiça (2004).

a dança brasileira. Raça e meio seriam, assim, determinantes na música e na dança retomando teorias científicas do século XIX. Para Mariza Lira, a bailarina era justamente o elo entre o passado primitivo brasileiro e o presente. 14

A proposta de Eros não era isolada. A busca de homogeneidade étni- ca e cultural por meio da música e da dança foi uma característica comum aos países latino-americanos. Ao longo da formação dos seus modernos Estados Nacionais, a realidade de uma sociedade multiétnica aparecia muitas vezes como um entrave. Neste sentido, houve a construção de um paradigma de história nacional caracterizado pelo ideal de uma so- ciedade com formação multiétnica harmônica na qual, porém, frequente e contraditoriamente, sobressaia a imagem e a cultura do homem branco como fundadoras da civilidade. No caso brasileiro, devido à peculiaridade de seu processo histórico, esse movimento teve início mais tardiamente (QUIJAD, 2000).

Chasteen (2004) identifica que as danças e as músicas, tidas como representações do “gênio nacional” de cada país, foram resultado de um processo de seleção e enquadramento atrelado à independência e ao sen- timento nacionalista. Desde a segunda metade do século XIX, em países como Argentina, Brasil e Uruguai, foram realizadas operações de memória que tenderam a congelar no tempo e no espaço as danças e seus ritmos como representações fechadas e concretas da identidade coletiva (KA- RUSH, 2012).

No contexto da Revolução de 1930 e do governo provisório de Getú- lio Vargas, essas reflexões se renovaram e ganharam contornos políticos, tornando-se assunto a ser tratado pelo próprio Estado. A arte de Eros recebeu incentivos daqueles que se sentiam compromissados com a construção de novas bases políticas, sociais e culturais da nação. Relação que iria se aprofundar nos anos subsequentes, sobretudo a partir de 1937, com a instauração do Estado Novo. O corpo moreno da bailarina represen- tava, por um lado, o desejo de valorização da mescla étnica e cultural que daria origem a brasilidade. Por outro, e não contraditoriamente, indicava a possibilidade de construção de um passado e de um presente calcados na ideia de unidade. A arte de Eros carregava em si um propósito estético que ganhava nuances e sofria apropriações diferenciadas de acordo com

as aspirações da própria artista, do movimento modernista e do novo espírito político do governo Vargas.

Em 1931, o Diário de Notícias, um dos principais jornais que apoiou a Revolução de 1930 e caracterizado por uma perspectiva liberal-democráti- ca, apresentou Eros como a única bailarina brasileira com formação clássica que executava, estilizando, as “danças populares e bailados regionaes”. 15

Já em novembro de 1933, o jornal O Radical fez menções elogiosas a arte nacionalista de Eros. O periódico trazia em seu cabeçalho o subtítulo “A voz da Revolução” e definia-se como um órgão destinado a defender e a propagar os princípios revolucionários do tenentismo entre os trabalha- dores (FERREIRA, 2010). Na reportagem “A Salomé Moderna”, Eros recebia louvores por seu compromisso de representar “as danças da raça, e o ritmo bárbaro do povo”. Associada à sedutora figura bíblica, a nossa “Sa- lomé dos trópicos” estaria envolta pelas danças das macumbas, tal como a dos sete véus. O mesmo jornal, durante a sua existência entre 1932 e 1954, prosseguiu fazendo análises positivas do trabalho da bailarina, destacando sua importante contribuição para a construção do espírito nacionalista. 16

Ainda em agosto de 1931, na Escola Nacional de Bellas Artes, Eros ilustrou a conferência “Dansas do Brasil Antigo”, ministrada pelo literato e historiador Luiz Edmundo Mello Pereira da Costa. O intelectual era conhe- cido por sua dedicação ao estudo da história do Rio de Janeiro e definia a dança como verdadeira expressão da cultura e, consequentemente, do estado civilizatório de um povo. 17

O ponto alto da reflexão abordava as “Dansas portuguezas”, os “Baila- dos Mediúnicos dos Índios” e apontava para o “Fator Negro”. Esse último tema constituía uma importante problemática enfrentada por gerações de intelectuais desde o final do século XIX. Com Gilberto Freyre, em Casa

Grande e Senzala, publicado em 1933, consagrava-se uma percepção

positiva, não sem contradições, que valorizava a contribuição da cultura negra para a formação da sociedade brasileira. A problemática da mesti- çagem, da unidade das raças e do “fator negro”, todos mergulhados em uma natureza, ao mesmo tempo exuberante e selvagem, eram compreen-

15. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 27 de dezembro de 1930, p. 14; Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 27 de dezembro de 1930, p. 8.

16. O Radical, Rio de Janeiro, 12 de novembro de 1933, p. 4. 17. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 06 de Agosto de 1931, p. 10.

didos, ainda, como elementos básicos para pensar a nossa civilidade. Renovavam-se, ganhando novos contornos e ritos. 18

Outro intelectual que igualmente admirava Eros foi um dos mais importantes representantes do modernismo brasileiro, Mario de Andra- de. O literato considerava que a bailarina dava vida e, ao mesmo tempo, atualizava o passado das danças brasileiras. Entre as décadas de 1930 e 1940, o escritor desenvolveu valiosos estudos etnográficos a respeito dos ritmos populares, publicados, posteriormente, nos três tomos de Danças

Dramáticas no Brasil, em 1982. Era um admirador e entusiasta da música

e da dança regionais (CAVALCANTI, 2004).

Para Mario de Andrade, Eros seria a encarnação da alma do povo bra- sileiro e representava a união de uma cultura fragmentada e dispersa pelo território nacional. Em crítica publicada na Estado de S. Paulo, o intelectual reconhecia o mérito da bailarina. Eros possuiria uma

[...] graça mestiça que lembra delicadamente os desenhos de Rugendas e Debret [...] numa primariedade tão negra, tão im- pressionantemente grave, que se desdobram em beleza aos nossos olhos expressões que nos atiram para as fórmulas larvares iniciais da vida. 19

O autor de Macunaíma enxergava, nas criações “deliciosas de espírito” e “de um sabor brasileiro marcado”, uma conexão com o passado primitivo brasileiro e com a cultura negra, forjando, assim, ingredientes importantes da modernidade nacional. 20

A deglutição da cultura estrangeira e da própria cultura local, como desejava Oswald de Andrade, outro importante nome do modernismo, era realizada por Eros no terreno da dança. O balé clássico europeu, a moder- na dança ocidental e as pretéritas e atuais danças regionais e étnicas do Brasil eram digeridas. Davam origem à verdadeira dança nacional. Nesse

18. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 06 de Agosto de 1931, p. 10.

19. De Mário de Andrade, Estado de São Paulo. São Paulo, [19--?] apud Silveira, Tasso. Eros Volúsia através da crítica. Rio de Janeiro: [s.n], [19--?], p.15. [Original encontra-se no arquivo do CPDOC - GC- -164f].

20. De Mário de Andrade, Estado de São Paulo. São Paulo, [19--?] apud Silveira, Tasso. Eros Volúsia através da crítica. Rio de Janeiro: [s.n], [19--?], p.15. [Original encontra-se no arquivo do CPDOC - GC- -164f].

movimento, o selvagem seria diferente do bom indígena do romantismo, remetia a um estágio de barbárie que precedia a civilização e rompia ra- dicalmente com presente. Era o antropófago de Oswald de Andrade que, para Antônio Candido, tratava-se de uma verdadeira filosofia embrionária da cultura. Propunha-se a devoração ritual dos valores europeus, a fim de superar a sociedade patriarcal e capitalista com as suas normas rígidas no plano social e os seus recalques impostos no plano psicológico (CANDI- DO; CASTELLO, 1972).

Eros elaborava em suas danças o que seriam os movimentos e as ex- pressões deste corpo ainda não civilizado, primitivo e bruto. Tal como havia feito o bailarino e coreografo russo Vaslav Nijisnsky, em 1913, ao chocar a plateia francesa com a sua coreografia para “Sagração da Primavera”, composição do igualmente russo Igor Stravinsky. O bailarino ao romper radicalmente com a perspectiva e a rigidez do classicismo, e trazer para o palco movimentos tão dissonantes quanto a música que o acompanhava, além de inaugurar o modernismo na dança, sintetizava o espírito de uma época (GARAFOLA, 1989).

A transcendência enigmática da arte floresceu de forma magistral na dança. A sensibilidade e o radicalismo da sua forma moderna traziam capacidade de expressar, em movimentos corpóreos, o sinal dos tempos. Nos trópicos, o corpo de Eros faria aflorar, segundo a sua própria inter- pretação, os desejos de realização de uma raça que estaria ainda em vias de formação. De forma curiosa, nas apreciações de seus admiradores, Eros preenchia, ao mesmo tempo, o arquétipo de mãe da pátria e de mulher sedutora dos homens. Seu corpo moreno e mestiço representaria um país composto por uma natureza selvagem e um povo nascido de um passado sensual e violento. A nação não poderia ter como símbolo gerador uma imagem virginal, cândida e alva.

Em 1931, a revista Frou-Frou, homenageando Antônio Brandão de Amorim, pesquisador que havia copilado lendas amazônicas em Nheên- gatú, apregoava: “Façamos o nosso classicismo indígena”. Na página do artigo Eros aparece vestida como uma índia e representa uma dança que remeteria aos que na selva “não recuaram diante da luta ou da morte” e fizeram “reboar o seu grito de guerra e se atiravam sedentos de sangue e glória à chacina”. 21

Já em 2 de julho de 1932, a revista O Cruzeiro publicou uma reporta- gem especial, “A Salomé Contemporânea”. A moderna revista pertencia a Assis Chateubriand. Mais uma vez a bailarina era associada à personagem bíblica. Os tributos de mulher sensual e primitiva emergiam. O texto da reportagem é do escritor José Vicente Payá, que definitivamente encan- tado e seduzido pelas “orgias espirituais e barbaras” encenadas por Eros, define a bailarina como “[...] deusa, vestal, bruxa, santa, cortezam, escrava e rainha ao mesmo tempo”. Compara-a, ainda, à Isadora Duncan. 22

Payá insere Eros nos mais variados arquétipos femininos presentes na cultura ocidental e, ainda, deixa registrada uma definição do literato Gilberto Amado, diante da potência artística da brasileira: “Sem exagero nenhum, estamos deante de um gênio. A arte de EROS é sonho, e se entre nós tivesse importância as coisas da arte, poderíamos affirmar que ella é uma das raras realidades do Brasil”. 23

Já em 1938, com sua carreira consolidada, a bailarina seria retratada como “Madona Marajoara” pelo pintor ucraniano, radicado no Brasil, Dimitri Ismailovitch. Na atmosfera de valorização da cultura indígena de tempos remotos, a estética marajoara havia se tornado moda nos centros urbanos. Sua presença na Art Déco brasileira sobressaía e dava originalidade. 24 No pincel do artista, Eros era associada, novamente, aos

arquétipos de mãe e guerreira da natureza. Antíteses que sintetizavam um corpo mítico que pretendia gestar uma raça e sua pátria. 25

Ainda em novembro de 1933, após as suas primeiras apresentações para o grande público, a bailarina estreou no Teatro Cassino um novo espetáculo que estava dividido em duas partes. Em “Dança Selvagem” ela argumentava que trazia movimentos bárbaros, autênticos dos selvagens brasileiros. De acordo com Roberto Pereira, na ocasião os solos de piano ficaram sob responsabilidade do professor Arnaldo Estrela, os figurinos foram de Oswaldo Teixeira e o Conjunto Típico era o de Pixinguinha (PE- REIRA, 2004, p. 31). As críticas foram arrebatadoras. O Diário de Notícias, também pertencente à Chateaubriand e que registrava todos os passos

22. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 02 de julho de 1932, p. 13. 23. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 02 de julho de 1932, p. 13. 24. A respeito de Art Deco e pintura marajoara ver: Roiter (2010). 25. Excelsior, Rio de Janeiro, 15 de novembro de 1938, p. 846.

da bailarina, comemora os números apresentados como “encarnação de nossa Pátria”. Eros teria conseguido interpretar o que até aquele momento ninguém havia ousado fazer, devido à dificuldade do ritmo e da expres- são, “um tanto bárbara” e com cadência difícil, dos “bailados peculiares ao povo e natureza do país”. O “ardente patriotismo” e a habilidade única fa- riam de Eros “[...] sacerdotisa desta nação, poética, bizarra e misteriosa”. 26

No Jornal do Brasil, crítico do governo provisório de Vargas e defensor da reconstitucionalização, Eros aparece como a única preocupada com as coisas do Brasil em um movimento nacionalista “muito natural”. E é com esse mesmo tom que boa parte da imprensa constrói a imagem pública de Eros: representante e tradutora da alma nacional. Era a “bailarina do Brasil” que unia a natureza selvagem com a alma bárbara dos índios e negros. 27 Já em 1934, Eros aparecia nas páginas da revista Fon-Fon! como

a extraordinária artista que revelou um Brasil coreográfico “[...] que vivia latente na sensibilidade e no gênio de nossa raça”. 28