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Os anos seguintes apontariam para o sucesso das escolhas e estra- tégias de Leônidas. Pouco após o fim do período e cumprimento de sua pena, sua luta em favor da liberdade profissional acabou por viabilizar o rompimento do contrato com o Flamengo, com uma milionária transfe- rência para o São Paulo. Para fazer o acordo, que garantiria uma boa soma

103. Leônidas será culpado?, O Imparcial, 1 de março de 1941; Só depois de operado, A Noite, 29 de abril de 1941; Intenções de franca hostilidade, A Manhã, Rio de Janeiro, 24 de agosto de 1941; Recorre Leônidas, O Globo, 12 de agosto de 1941; Esportes, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 21 de agosto de 1941.

104. Última hora esportiva, A Noite, Rio de Janeiro, 26 de fevereiro de 1942; Realidade, setembro de 1979.

ao clube da Gávea, Leônidas exigiu que fossem respeitados seu direito de trabalhador, com o pagamento por parte do clube dos “honorários atrasados” e a devolução do valor que lhe foi tirado com a multa que considerava ilegal. Satisfeitas as exigências, o jogador se transferiu para o clube paulista, recebendo para isso o valor de 75:000$000. Como afir- mavam os jornais, tratava-se da “maior transação desde o advento do profissionalismo”. 105 A transferência de clube, pelo qual jogaria até o fim

de sua carreira, atestava a importância e grandiosidade alcançados pelo jogador, que já se constituía em um garoto propaganda disputado e bem pago para diversos produtos que queriam se associar ao seu prestígio – como brinquedos, chocolates e até mesmo cigarros. 106 Afirmava-se,

com isso, o sucesso de seu caminho, que, além de fazer dele o “primeiro milionário do football brasileiro”, 107 transformara um jovem negro, que

convivera por toda a vida com o preconceito, em um verdadeiro ídolo da nacionalidade.

Não parece casual, nesse sentido, um pequeno episódio ocorrido na mesma viagem a Belo Horizonte no qual Leônidas tirou a foto com Getúlio Vargas. Enquanto conversava com os companheiros em um dos vagões do trem que os levava para a capital mineira, ouviu “a voz forte de um ho- mem de cor, aparentando uns 60 anos, que perguntava em altos brados: onde tá o tar de Leônidas”? Embora dizendo-se “constrangido, diante da surpresa”, ele levantou para se apresentar e viu o senhor caminhar em sua direção para dizer que viajara “sete léguas a cavalo” só para cumprimenta- -lo. “Foi uma das grandes emoções de minha vida”, escreveu o jogador, que décadas depois ainda guardava o caso na memória como expressão do reconhecimento de sua luta. 108

Por mais que continuasse a representar as aspirações do Estado Novo, sem recusar as associações que autoridades do regime tentavam estabelecer com sua trajetória, o próprio Leônidas parecia, desse modo, atento à singularidade de sua trajetória e de sua posição. Esta se afirmaria, de modo ainda mais claro, em dezembro de 1945. Após a derrubada o

105. Cento e oitenta contos pela aquisição de Leônidas, O Globo, 4 de abril de 1942; Preço record para a transferência de Leônidas, O Globo Sportivo, Rio de Janeiro, 10 de abril de 1942.

106. Da primeira fila, O Globo, Rio de Janeiro, 26 de março de 1942.

107. Leônidas, o primeiro milionário do football brasileiro, O Globo Sportivo, Rio de Janeiro, 17 de setembro de 1943.

regime instaurado por Vargas em meio aos ventos de redemocratização vindos com o fim da Segunda Guerra, o país atravessaria naquele mês as primeiras eleições presidenciais desde 1926. Durante a campanha, Eurico Gaspar Dutra, um dos candidatos, tratou de tentar se apropriar do tipo de relação estabelecida por Vargas com o esporte, afirmando que “todo e qualquer governo não pode desprezar a questão desportiva”, que seria parte fundamental de seu “programa educativo”. 109 Reunidos naquelas

semanas em Caxambu, onde se preparavam para a disputa de mais um campeonato, os jogadores da seleção brasileira reivindicaram o direito de participar do pleito, ainda que estivessem fora de seu domicílio eleitoral, ganhando a oportunidade de votar na própria concentração. A maior parte dos jogadores se dividiu entre o brigadeiro Eduardo Gomes, o mais votado, e o próprio Dutra. Não foi nenhuma destas, porém, a escolha de Leônidas, que optou por votar em Yedo Fiúza, o candidato do Partido Comunista recém-saído da ilegalidade. Frente à surpresa dos repórteres, que após a votação lhe perguntaram o motivo desta escolha, o próprio jogador tratou de se explicar: “porque sou um homem do povo”, disse ele, que se assumia assim “partidário do comunismo”. 110

Ainda que a opção lhe valesse a ironia de repórteres e colunistas, que satirizavam fato de que o atacante “só quer brilhar na extrema-esquerda”, ele mostrava com isso assumir uma identidade social condizente com sua trajetória. Era a partir dela que o jogador, ao logo de toda sua carreira, definira seus caminhos, opções e estratégias, que o haviam levado a posar orgulhosamente com Getúlio Vargas na fotografia de 1938. Ainda que as motivações do presidente e do jogador se configurassem a partir de um campo de símbolos compartilhados, em constante conexão e negociação, é por este prisma da experiência que deve ser analisada a aproximação entre Leônidas e os ideólogos do Estado Novo.

Era através desta mesma lógica que o levava a exercitar sua autono- mia ainda que por dentro de redes paternalistas de proteção, que ele viria a estruturar nas décadas seguintes a própria vida. Após alcançar grande sucesso jogando pelo São Paulo, o jogador decidiu abandonar os campos em 1950, tornando-se em um primeiro momento membro da equipe

109. O general Eurico Dutra e os problemas esportivos, Jornal dos Sports, 1 de dezembro de 1945. 110. Na concentração venceu o Brigadeiro, O Globo Sportivo, Rio de Janeiro, 7 de dezembro de 1945; A bola da semana, Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 2 de dezembro de 1945.

técnica do clube e depois seu treinador principal. Frente ao insucesso na empreitada, valeu-se de seu prestígio e de suas boas relações com direto- res do São Paulo, como Paulo Machado de Carvalho, para iniciar uma nova carreira como comentarista esportivo nas rádios paulistanas. Por conta das mesmas ligações, conseguiu ainda no início da década de 1960 um emprego público na Secretaria de Trabalho do Estado de São Paulo, na qual chegou a exercer cargos de direção por indicação do governador Abreu Sodré. Aposentado em 1983, começou dois anos depois a conviver com os efeitos do Alzheimer, doença que marcou seus últimos anos de vida. Mesmo nesse momento, no entanto, pode colher os frutos das redes de proteção nas quais se colocou, sendo amparado até a morte, em 2004, pela diretoria do São Paulo. 111 Por mais que muitos tenham tentado se

apropriar de sua imagem, era assim a partir de seus próprios interesses e aspirações que Leônidas definia sua trajetória – que deve por isso ser compreendida a partir das experiências, estratégias e lógicas do próprio jogador e não daqueles que tentavam ocultá-las.

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