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2.2 Inventando o anormal

2.2.1 Dinâmicas de integração e estigmatização da diferença de orientação sexual

2.2.1.3 Algumas faces da lua

Rubin/Butler, 2003, 173–178; Silva, 2005, 169).

Desse modo, embora tragam em sua gênese notável potencial transformador, têm se conduzido expressando os estritos códigos e rituais hegemônicos (Foucault, 1996, 14–15, 35) no caminho de realização de uma agenda que se exerce preponderantemente no âmbito das instituições do Estado, com um elevado grau de dependência do financiamento público. Esse conjunto de fatores contribui para que a elaboração dessa nova identidade ou, antes, de novas representações para práticas e atos cristalizados como identidades, faça surgir a figura do “homossexual” palatável, cujos traços étnicos e de classe espelham e reforçam os padrões e valores hegemônicos84.

Esse percurso em busca por reconhecimento social tende a levar à reprodução dos mesmos mecanismos segregadores da sociedade hegemônica, agora dirigidos aos que, aos olhos da fração dominante do segmento das homossexualidades, personificariam atributos desvalorizados que igualmente são vistos como inerentes à pessoa. Na medida em que parcelas do segmento desqualificado vão acumulando capitais sociais e ampliando o diferencial de poder, a tendência paradoxalmente é serem reproduzidos os mesmos mecanismos desqualificadores (Elias, 2000, 24).

Contingenciados por esse paradoxo que os obriga a dar mostras de que detêm os atributos valorados positivamente no campo da ação política institucional onde decidiram conduzir sua luta, terminam por se afastar da matriz anarco-libertária, decorrência da opção por uma atuação mais pragmática diante do desafio representado pela pandemia da Sida/Aids. Na medida em que realizam esse movimento no sentido da normalização, vão produzindo os seus Outros, isto é, uma nova vertente crítica (Fontana, 2004, 383–384). Esta, por sua vez, passa agora a ser desempenhada por setores do segmento “trans” e “intersex”, com toda a produção teórica subseqüente.

2.2.1.3 Algumas faces da lua

84 Ver, entre outros, os cartões postais das “Paradas do Orgulho GLBT” no Rio de Janeiro em 2003 e 2004; , e os

postais da Campanha “Direitos Sexuais são Direitos Humanos”, promovida pela ABIA em 2003; e a campanha disseminada na Internet em prol da permanência, no Brig Brother Brasil 5, do gay “intelectual, sério, responsável, bonito, diferente dos gays caricatos que a tv brasileira costuma mostrar, especialmente nas novelas”.Ver: http://br.groups.yahoo.com/ group/listagls/message/47931 (Acessado em 21/01/2005).

Como contraponto, volto a referir, à guisa de ilustração sobre a possibilidade de outras estratégias políticas, os cartões postais do grupo Nuances pela Livre expressão sexual, de Porto Alegre, RS. Pautando pelo resgate da memória das subculturas produzidas, constroem referenciais identitários positivos a partir mesmo das peculiares expressões culturais e formas de sociabilidade de bichas, travestis etc. Ver também: Fry e MacRae, 1983, p. 41.

Nas figurações presentes na bibliografia consultada nas quais se verificam relativa integração e até mesmo prestígio dos “homossexuais”, a proposta analítica elaborada por Elias igualmente se mostrou eficaz na compreensão do porquê de em determinados contextos a infração da hormatividade heterossexual e da concepção de gênero plasmada à corporalidade não serem sancionadas. Os exemplos encontrados se referem a três contextos socialmente distintos: a) o dos cultos de possessão afro-brasileiros, integrados basicamente por populares, b) o dos cultos de possesão kardecistas, praticados majoritariamente por membros da classe média urbana; c) e o da classe média-alta urbana artística e intelectualizada.

Os dois primeiros constam das pesquisas realizadas por Fry na década de 1970 na periferia de Belém (1982). Os cultos de possessão afro-brasileiros foram objeto das pesquisas de Landes na Bahia, durante os anos de 1938–1939 (Landes, 2002, 319–331; Fry, 2002, 23–30) e Birman na Baixada Fluminense, Rio de Janeiro (Birman, 1995). Examinando os modos de recepção das identidades “homossexuais” masculinas associadas ao passivo sexual e à coreografia social atribuída ao gênero feminino85 no âmbito das casas de cultos afro-brasileiros de Belém, Fry observa que,

naquele contexto religioso, a incorporação dos atributos do gênero feminino por parte de alguns de seus integrantes do sexo masculino, não era objeto de desqualificação social. No âmbito daquela religiosidade, a variável unificadora mais relevante, cuja inobservância seria objeto de sanção, era a estrita observância da liturgia do culto. Os modos de expressão dos desejos eróticos não representam variáveis determinantes do ponto de vista dos detentores do poder de conferir credibilidade às práticas (Fry, 1982, 57, 58, 75). São atributos tidos como da esfera particular, pessoal. Apenas “um fato da vida”, sem maiores preocupações, seja de caráter etiológico ou sancionador (Leacock apud Fry, 1982, 70 e Fry, 1982, 73). À idéia da afetivo-sexualidade como algo restrito ao âmbito pessoal conjuga-se a posição marginal desses cultos relativamente aos valores hegemônicos que privilegia as manifestações religiosas de origem européia. Esses dois aspectos permitem que tais “desviantes” sejam reconhecidos em posição de relativa igualdade, podendo mesmo vir a alcançar posições de alto prestígio e poder no interior da comunidade religiosa (Fry, 1982, 58, 74, 76–77, 79). Já o universo dos cultos kardecistas, onde a possessão se reveste de formas mais contidas e “civilizadas”, as práticas “homossexuais” são objeto de elaboração teórica que aponta as sucessivas reencarnações como “responsáveis pela bissexualidade essencial a todas as criaturas” (Fry, 1982, 81). Nesse contexto, as “homossexualidades” resultam “da passagem de um

espírito do corpo masculino para o feminino ou vice-versa” (Fry, 1982, 81). Afeitas ao processo de purificação por que passam os humanos pela via reencarnatória, são tidas como parte integrante do caminho rumo à perfeição evolucionária (Fry, 1982, 57, 81). Nesse quadro de significação, nenhum tipo de atitude estigmatizadora é cabível sobre as “homossexualidades”.

As pesquisas realizadas por Landes e Birman apontam para o mesmo modo de recepção da homossexualidade genericamente falando. Há, porém, um dado que me parece altamente significativo no tocante às estruturações dos gêneros no âmbito das casas de candomblé, abordado no trabalho de Birman. Trata-se da comparação entre as diversas formas de recepção das “infrações”86 de gênero praticadas por “homossexuais” e “lésbicas” no contexto dos terreiros do

culto. De um lado observa-se a completa incorporação do homossexual portador de gênero feminino (“bicha”, “viado”). Este pode vir a conquistar elevada reputação como pai de santo no âmbito daquela hierarquia, chegando mesmo a atingir maior “sucesso” do que os pais-de-santo não portadores do gênero feminino, em virtude da competência cênica que possam desenvolver (Birman, 1995, 122). De outro, à mulher é exigida absoluta observância às tradicionais prescrições para o seu gênero “natural”. Esse aspecto tanto está presente nas observações de Birman quanto foi destacado por Fry na apresentação da pesquisa.

Enquanto a „feminilidade‟ dos adés é celebrada, a „masculinidade‟ das ekedis permanece algo ligeiramente repreensível. [...] Por mais que o candomblé produza estilos e gêneros próprios à sua cosmologia, eles não deixam de ser subordinados também à lógica dos gêneros da sociedade profana. [...] A masculinidade das mulheres, em oposição, é sempre incômoda. Raramente assumida e celebrada pelas mulheres em questão, é mais alvo de acusação do que admiração ou condenação. Isso só vem a exemplificar a relação hierárquica e não-simétrica dos dois sexos (e não gêneros) no grupo pesquisado. Assim, nos terreiros, como na vida mundana, encontramos homens, sejam eles adés ou ogãs, que circulam e ostentam a sua sexualidade, e encontramos mulheres sempre discretas e abnegadas. (Fry, 1995, viii. Sublinhei).

Ou seja, no contexto dos cultos de candomblé, o sistema de estruturação de gênero não se encontra desconectado do sistema de estruturação de sexo, possuindo, porém uma justaposição peculiar. Desse modo, ao homem, mesmo quando portador do gênero feminino são preservadas as mesmas prerrogativas tradicionais a seu sexo. Porém quando detém a apresentação social do gênero feminino (“bicha”, “viado”, adé), às liberdades tradicionalmente masculinas são acrescidas às

86 As aspas objetivam pontuar as linhas interpretativas que compreendem os deslocamentos operados sobre o

sistema de gênero como uma outra forma de construção dos gêneros e não uma caricatura. (Stoller apud Silva, 1993, 162).

prerrogativas decorrentes das representações acerca do feminino “fatal”, lascivo ou mundano. Assim, observa-se que ao pai ou filho-de-santo homossexual, portador do gênero feminino, é reconhecido portar os atributos de ousadia, inovação, vinculação com o mundo da rua, mas também de exuberância sexual e sensual, valorização do estético, cenográfico e hedonista (as festas, com suas roupas, danças e comidas). No entanto, à mulher é exigida a estreita observância às prescrições tradicionais ao culto e à representação do feminino ideal – dedicação absoluta aos compromissos da religião em detrimento da própria individualidade, recato, secundarização ou apagamento da sexualidade, vinculação com o mundo da casa, da família (Birman, 1995).

No tocante à “lésbica” a autora apenas refere aquelas que ocupam o posto de ekede (ou ekedi87).

Nenhuma alusão faz sobre a mãe-de-santo ou ogã “lésbica” ou “sapatão”. Porém, mesmo diante dessa lacuna é possível compreender a dimensão de poder que perpassa a estruturação de gênero. Assim é que, no âmbito dos terreiros de candomblé, a mulher, ao portar uma apresentação social do gênero masculino, contrariamente ao homem em situação semelhante (“bicha, “viado”, “adé”88),

não adquire os atributos do gênero de incorporação (masculino). Também não tem a sua autoridade reconhecida, sendo colocada abaixo da exercida pelos “ogãs”89 (Birman, 1995, 124). Ela ocupa na

87 Filha de santo que não entra em transe, não incorpora as entidades do culto. Sua função é cuidar dos “iaôs”

(filhos de santo) durante o transe; servir aos orixás quando incorporados. Segundo Birman, “ela pode ser a única pessoa da casa [do terreiro] a se manter „acordada‟ quando todos os outros encontram-se „virados‟ [no santo]. São as ekedes que guiam os oxirás nos passos de dança, ajeitam suas roupas etc..” (Birman, 1995, 123; Verger, 2002, 71; Rios, 2004, 46)

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Filho de santo homossexual, portador do gênero social feminino (“bicha”). Caracterizam–se pelo exagero com que exibem suas competências rituais no culto (modo de dançar, estilização das roupas). Capitalizam os aspectos de transgressão e ambigüidade presente no culto, apropriando-se de tudo o que lhes pareça conveniente e compondo um estilo todo próprio cuja marca é uma feminilidade exacerbadamente erotizada. Segundo Birman, adotam “da religião somente aquilo que for conveniente para explorar esse campo que se apresenta como virtualidade para os outros: o campo da sexualidade e do feminino enquanto transgressão e, ainda, da linguagem- do-santo reduzida à sua expressão mais simples, como linguagem sexual. [...] Toda a importância dos orixás passa a ser essa fabulosa oportunidade de conseguir encarnar uma „divina dama‟, com jóias, flores e paetês. [...] O sentido transgressor reside, pois, na valorização que se dá à possessão como rito possível de ser instrumentalizado no intuito de não só adquirir mas enfatizar uma identidade de gênero.” Compõem uma subcultura dentro do culto: “Uma das características comuns desse personagem social é a assunção dessa identidade como recurso de organização de um grupo que vai deter coletivamente certos padrões comuns de comportamento, no interior das casas de candomblé.” (Birman, 112–115; Rios, 2004, 47).

89 Pessoa, geralmente do sexo masculino, iniciada no culto (filho-de-santo), mas que não experimenta a

possessão. Suas funções variam de terreiro para terreiro, conforme a linhagem de sua tradição. Em alguns tem as funções de tocar os tambores e também de sacrificar os animais (Rios, 2004, 42. Em outros, possui uma função honorífica, de representação e defesa da casa à qual tem filiação (Birman, 1995, 87–92). Segundo Verger, nos terreiros nagôs (Iorubás) da Bahia os filhos de santo ocupantes desse cargo “não têm funções religiosas especiais, mas ajudam materialmente o terreiro e contribuem para protegê-lo. Formam uma sociedade civil de ajuda mútua, colocada sob a invocação de um santo católico. Alguns „ogãs‟ levam o título prestigioso de obá, no Terreiro Axé Opô Afonjá, e o título de „mangbá, no Axé Opô Aganju.” Também nesses terreiros outro é o encarregado de tocar os atabaques – “alabê” (nome do chefe dos tocadores) e de fazer os sacrifícios – “axogum” (Verger, 2002, 71).

verdade uma posição de status inferior na estrutura hierárquica do culto, embora sua função seja estratégica – é a responsável por zelar pelos orixás quando virados; no caso de todos os médiuns se encontrarem incorporados, inclusive a mãe ou pai-de-santo, é quem exerce a direção da casa. Paradoxalmente, embora o ambiente dos cultos do candomblé seja reconhecido como espaço privilegiado para a expressão de relações tidas pela sociedade ampliada como transgressoras (Birman, 1995, 128) e sua teogonia possua vários orixás portadores de ambos os gêneros, no caso das “lésbicas” masculinizadas (“sapatão”, “mona do aló”, “saboeira”, “monokó”) essa incorporação mostra-se bastante precária. Entre os adeptos verifica-se um forte controle para evitar que ela expresse os mesmos atributos de poder simbólico comumente outorgado ao homem. Elas inclusive são insistentemente desestimuladas e mesmo ostensivamente censuradas caso adotem posturas mais assertivas. O trabalho de Birman traz ricas e francas expressões desse controle exercido sobre aquilo que é visto naquele contexto como ameaça ao poderio do homem – a masculinidade da “monokó”:

A monokó pode ser um soldado lá fora, mas na hora que ela põe o pé para dentro [do terreiro] ela deixa de ser um soldado, porque se ela bancar o soldado aqui dentro, ela vai morrer sozinha na guerra (...) O adé pode entrar de plumas e paetês, mas ele faz parte da essência, do interior. E a monokó não (Fala de um pai–de– santo [“homossexual”?]. Birman, 1995, 125).

Em outra passagem:

Não quero papo com elas. São terríveis. São piores que os adés. Têm a mania de se fazerem de maiorais. Roçar é o negócio delas e tentam disputar as mulheres com os homens (Teixeira, 1986, 109 apud Birman 1995, 124–125).

Esse mecanismo de controle sobre o grau de poder que a “mona” poderia adquirir, por adotar uma apresentação social do gênero masculino, é tão intenso que leva as “lésbicas” a se policiarem quanto à adoção de posturas masculinas no interior das casas de culto. Vistas como ameaça ao poderio ancestral dos homens (“hetero” ou “homossexuais”), as “monokós” são compelidas a dissimular sua masculinidade, de modo a não se verem excluídas da comunidade de culto:

A monokó é mais feminina no candomblé, por exemplo, se Maria chega dentro de uma casa de candomblé pisando duro, falando grosso: „eu sou macho‟, nesse tope, é claro que ela vai agredir... (Birman, 1995, 126).

Birman atribui o poder estruturante do sistema de gêneros e da dotação de prestígio presente no candomblé à possibilidade de “virar no santo” (Birman, 1987, 6). Assim, os integrantes do culto

com capacidade de exercer as funções de médiuns estariam associados ao gênero feminino (no caso, a mãe-de-santo, os “adés” e os pais-de-santo “homossexuais”), porém portando uma distinção em termos de prestígio face ao controle que detém das forças mágicas (Birman, 1995, 84–85, 96, 192; Elias, 2000, 47). À “ekede”, devido às suas funções de gerenciadora das sessões de culto, é vedada a possessão. Sua feitura, semelhantemente a do “ogã”, é realizada de modo a impedir que “vire” no “santo”. No entanto, entre a “ekede” e o “ogã”, ambos situados no mesmo nível da hierarquia, aquela goza de menor prestígio relativo do que este. As “monokós” (“lésbicas” masculinizadas), embora sendo médiuns e realizando o ritual de possessão, não gozam do prestígio auferido pelo “adé” (filho-de-santo efeminado). Esse dado expõe a dissimetria que há por trás dos modos de recepção das infrações às normas de gênero, sexo (corporal) e sexualidade (orientação do desejo). Desvela-se, assim, o atravessamento pela dimensão de poder que essas estruturações conservam também no candomblé. Às mulheres, quando portadoras de gênero masculino, não lhes reconhecem prerrogativas e prestígio concedidos aos “adés”. Os “adés”, no entanto, incorporam os atributos positivos tanto do seu sexo corporal (masculino) quanto do gênero feminino (na sua modalidade “fatal” ou mundana90) e nenhuma desqualificação sofrem pela notória

homossexualidade. As “ekedes”, porém, permanecem na mesma órbita de relativo desprestígio do feminino tradicional, agravada mediante a assunção do gênero masculino e da publicização de sua homossexualidade, quando então é percebida como uma usurpadora, construindo-se sobre ela “uma identidade que é marcadamente negativa” (Birman, 1995, 126)91. Nesse contexto, as ocasiões nas

quais a mulher (sexo feminino) obtém prestígio são aquelas onde estão em total observância com as prescrições para o seu gênero. Desempenham o ideal de autoridade da mãe zelosa, conselheira, mas também juiz na solução dos conflitos no interior da família de culto, mas o fazem a partir da estreita observância das prescrições inscritas no feminino tradicional, ou seja, do recato, do controle ou

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O prestígio dos adés tem que ser relativizado. Há terreiros em que, embora estejam mais integrados do que na sociedade ampliada, eles são vistos com certas restrições. Birman registra que em alguns casos lhes são destinados espaços próprios (uma roda específica no espaço de dança dos filhos-de-santo), enquanto que Rios faz referência ao descrédito que goza os terreiros que ficam conhecidos como “candomblés de veadeiros” (Birman, 1995; Rios, 2004).

91 Outro exemplo das complexas formas de incorporação desses “desvios” pode ser verificado na página de

relacionamento virtual Orkut, onde se encontram comunidades destinadas a exaltar a figura do “gay”, ou melhor, de certa representação de determinados traços presentes em alguns “homossexuais” masculinos. São as comunidades “eu amo meu amigo gay”. Formadas quase que exclusivamente por mulheres, destacam-lhes certas idealizações, construídas a partir da alegria e do humor (característicos entre alguns segmentos sociais estigmatizados . Desconheço a existência de congêneres criadas exclusivamente com a finalidade de expressar apreço às “sapatonas”. Essa forma de exaltação de um determinado tipo de “gay” (o efeminado e alegre) remete à uma incorporação funcionalista que a meu ver estabelece pontos de contato com aquela anteriormente desempenhada pelo bufão (Monois, 2003, 55-56).

supressão do desejo erótico e da preeminância do outro (dever/cuidado) sobre o eu (autonomia/desejo).

Em uma primeira abordagem buscando compreender os desencadeadores da violência desferida contra as expressões visíveis da homossexualidade (Colaço, 1984, 36–39), refletia sobre a diferença nos modos de recepção social às transgressões de gênero e de sexo,. Na ocasião, entendia que a “bicha” era de alguma forma assimilada “como inofensiva”. Adotando uma expressão social de gênero feminina (então dita passiva), constatava que sobre ela incidia “o desdobramento do estigma do passivo sexual” (Colaço, 1984, 37). Seguindo com o raciocínio, entendia que o “homossexual” masculino visível, ou seja, com expressão de gênero feminina, estaria ao abrigo de uma maior antagonização na medida em que o seu desvio “de papel social” (de expressão social de gênero) era para um “papel” (gênero) construído e percebido como inferior: “esse segundo desvio tem uma conotação não ameaçadora, na medida em que o papel incorporado é detentor de desprestígio – passivo –, a infração cometida tem valoração negativa, inferiorizante. [...]”

Não conseguia perceber entretanto que as formas de recepção dessas infrações – aos sistemas de sexo e de gênero – possuíam gradações, de acordo com os valores fixados como ordenadores em cada figuração específica. Assim, não dava conta de que em alguns contextos é justamente a infração representada pela incorporação, pelo homem, de um gênero tido culturalmente como inferior, mais do que o sexo da pessoa com a qual irá manter relações sexuais, que desencadeava sobre si uma violência exacerbada. Embora percebesse a existência da homofobia – “há verdadeiramente um ódio latente contra o homossexual (masculino e feminino) por parte de muitas pessoas ...” –, percebia sua manifestação apenas através dos comportamentos de risco, facilitadores dos chamados “crimes de lucro” (Ramos, 2003, 40). Em outras palavras, apenas conseguia vê-la na modalidade divulgada pela imprensa escrita, ou seja, por meio das facilidades fornecidas pela própria vítima, acrescidas dos componentes de ódio e rivalidade entre classes (Colaço, 1984, 37-38).

Prosseguindo com a reflexão, embora percebesse a existência de dois sistemas organizadores da conduta humana – de sexo e de gênero, embora não os explicitasse com a devida clareza. Permanecia com a mesma equivocada maneira de expressar essas distintas formas de infração (da “bicha” e da “sapatão”). Do modo como apresentado, denotava reconhecer como deflagradores de violência apenas as infrações (desvios) onde ocorria a assunção do gênero socialmente valorado como superior:

Numa sociedade falocrática, o homem assumindo um papel estigmatizado (passivo) ainda assim é um homem, um macho possuidor de um falus; ele não perde totalmente os seus atributos naturais [tradicionais, costumeiros92]. Já no caso feminino [da mulher] a questão é diferente, principalmente se a “lésbica” adotar um comportamento masculinizado (sapatão). Nesse caso o „desvio‟ é realmente duplo, isto é, além de desviar-se do objeto, desvia-se do papel [de gênero] originalmente lhe destinado (passiva, dependente), passando a desempenhar um com valoração positiva. Ela contraria o comportamento da fêmea convencional, só que adotando um papel tido socialmente como superior (ativo, independente). E aí, por ir de encontro ao que lhe é imposto socialmente, isto é, um papel inferior, ela passa a ser encarada como uma ameaça, como subversora da ordem estabelecida; competidora dos homens, sua concorrente, portanto inimiga. Uma rebelde que quer tomar o poderio dos homens, ameaçando-lhes uma posição milenar. Por isso o repúdio que lhe é desferido é mais intenso: por ser vista como uma ameaça às estruturas sociais, aos papéis sociais e sexuais [aos sistemas de ordenação de gênero e de sexo], pois além de adotar um comportamento com características atribuídas exclusivamente aos homens (independência, audácia, insubordinação, segurança, decisão,