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Durante o período em que trabalhara como vendedora no magazine, localizado no centro do município do Rio de Janeiro, dirigido aos segmentos mais abastados da sociedade, Antônia tinha intenso contato com as grandes desigualdades sociais.

163 Portinari coloca essa discussão no nível do entender, da “ruminação do discurso, que se liga ainda à reversão

da cronologia do sujeito: eu não sou isto ou aquilo; eu estou às voltas com uma forma de ser que é sustentada para além ou para aquém do meu desejo) por um discurso.” Em seguida, conclui: “Forma de ser que além do mais é altamente problematizável” (Portinari, 1989, 80). O que, no meu entender, apenas confirma o paradigma – o dado, o inquestionável. A heterossexualidade simplesmente “é”, enquanto que a homossexualidade apenas “está”.

164 Antônia permanece em silêncio por 57 segundos antes de responder como é que se veria nessa fase de sua trajetória,

tendo um outro relacionamento lesbiano. Quando o faz é de modo vacilante.

“ (A) – Se no percurso da minha vida hoje eu vier... É, é, por exemplo, se eu sentir... É, é, alguma coisa assim de, de... Em termos de... Eu acho que tá tudo ligado ao momento da vida que você vive. Ao teu... É, é,é... Ó... Toda a sexualidade... Ela está, é, é... Eu, eu eu acho que ela tá, tá... [silêncio] sempre ali... É... É o momento que você vive... Eu acho que não existe assim: „Eu nasci lésbica, vou morrer lésbica; eu nasci heterossexual, vou morrer heterossexual. Eu acho que isso não existe! [...]” (Antônia, entrevista de 18/09/05, lado B).

165 Um dos editores do artesanal Boca Livre, indagando sobre os diversos papéis sociais que ela desempenhava, em

determinado momento mostra-se constrangido em abordar a homossexualidade da entrevistada. Percebendo seu embaraço, ela enfrenta o tema, chegando a se divertir com seu constrangimento:

[Mauro]: “... Porque, ao mesmo tempo você precisa ser mãe... [repete:] ...Mãe... É... Dona-de-casa... (mesmo que você não queira...)”

E ela corta, antecipando, impaciente. Completando o que ele titubeia em pronunciar: “...E ser lésbica.” Ele complementa, tentando disfarçar: “- ...E ser dona de um bar...”

As diferenciações de classe e posição social ela percebia expressas não apenas nas formas de vestir, falar, agir e pensar, como nos modos diferenciados de acessibilidade às instituições de ensino de qualidade. Também nas oportunidades de expressão subjetiva, na profunda escassez de espaços públicos para o lazere na absoluta desconsideração dos agentes políticos para com o povo e a cultura, quando se trata de populações dotadas de poucos recursos – materiais e/ou simbólicos (Antônia, 1983).

Desde a adolescência integrada em redes sociais “lesbianas”, embora tivesse vivido um casamento heterossexual por dois anos, Antônia também tinha perfeita clareza sobre o isolamento que envolvia a experiência de ser “homossexual”. Ter de cotidianamente lidar com a sensação sempre presente de que a qualquer instante pode vir a não ter mais pertencimento, caso a especificidade de seu afeto e desejo erótico seja revelada; a certeza de que, nesse caso, será quase automática a produção do afrouxamento, ou mesmo da ruptura de vínculos sociais significativos e profundos, como no caso dos familiares, levando em conseqüência, à perda da proteção e sentido que esses vínculos proporcionam. A exposição a situações humilhantes, vexatórias e mesmo de violência física são sentimentos muito intensos com os quais os “homossexuais” se vêm obrigados a administrar. A necessidade de desenvolver rapidamente as habilidades necessárias para administrar no dia-a-dia e nas mais diversas situações sociais esse segredo, fazendo com que os tipos de vínculos sociais sejam estabelecidos e organizados em função do grau de conhecimento/desconhecimento desse segredo (Pecheny, 2004, 16, 22-23,25, 28); a tensão, ansiedade que esse gerenciamento em tempo integral produz, levando à adoção de grande reserva, induzindo a adoção de modos extremamente superficiais de relacionamento com os membros das distintas redes nas quais tem de interagir e manter-se inserido (Simmel, 1967, 11-25); a dificuldade em dispor de ambientes sociais receptivos – mais aguda em função da escassez de recursos econômicos –, onde fosse possível romper o isolamento, interagir social, afetiva e sexualmente, reconhecer-se no outro, partilhar vivências, sem a perene ameaça de repúdio, tudo isso compunha uma realidade bastante conhecida para Antônia (Pollak, 1990, 30; Pecheny, 2004)166.

166 O traço de clandestinidade, de descrédito social que ainda marca as práticas homossexuais se refletiu no

próprio modo como os colaboradores construíram suas narrativas. Não apenas na dificuldade de pronunciar os termos referentes à orientação homoafetiva, de dizer de si, como também na elaboração de um estilo de narrativa, presente em dois dos quatro colaboradores, em que não são feitas referências às identidades dos personagens, referidos de maneira impessoal, embora conhecidos e amigos. Por emblemático, cito trecho do depoimento de Eleonora, quando introduz o reservado em suas memórias: “[...] Era o bar de uma amiga nossa, que não vem ao caso mencionar nomes... [...]”. (Eleonora, 30/10/2004, A, in fine).

Essas percepções, aliadas ao seu espírito de iniciativa e impregnadas do sentido de missão adquirido através da formação religiosa na infância, inspiram-lhe sonhos de uma utopia comunitária. Por meio do bar como provedor da sobrevivência material e tendo como retaguarda a namorada, a família desta e, principalmente, uma dupla de amigos próximos, investe na idéia de criar um espaço onde os “homossexuais” pudessem se encontrar, conversar, brincar, dançar, namorar e se apoiar mutuamente – “O meu ideal era criar uma família, uma comunidade gay...” (Antônia, 1983) 167.

Esqueceu, porém, de considerar os riscos. A tolerância pouca. O machismo, o preconceito. A escassez de recursos, a possibilidade de violências. No depoimento de 1983, Antônia diz que a surpresa ante sua iniciativa vinha tanto de “homossexuais” quanto dos “heterossexuais”. Segundo ela, “os dois lados” se surpreenderam com a sua ousadia. Mas essa empreitada ela também vai saber construir seus aliados.

3.4 Co-estrelando...

Há distintas memórias sobre o modo como Antônia e seus principais colaboradores no

reservado – Álvaro e Marcos168 – se conheceram. No relato de 2003, bastante distanciada desses acontecimentos que não desejava inicialmente recordar e sem conseguir ver neles qualquer dimensão significativamente positiva, Antônia afirma que já os conhecia superficialmente antes de adquirir o bar (“conheci, assim, de um dos encontros em algum lugar, de apresentação... A gente se esbarrou em algum lugar que tinha alguma coisa...”).

Na memória de Álvaro (2004), ele e Marcos conheceram Antônia no próprio balcão do bar, pois eram fregueses desde a anterior direção. Segundo a memória de Marcos (2004), ele a teria conhecido através do Mauro (falecido). Ele também fazia o curso de teatro e logo depois veio a integrar a mesma rede, colaborando na organização das apresentações e atuando. Segundo o relato de Marcos, Mauro costumava participar dos ensaios da escola de samba local

167 A importância de poderem contar com ambientes acolhedores, onde pudessem encontrar pessoas com a mesma

orientação afetivo-sexual, é mais destacada se pensarmos que o processo de socialização de “gays” e “lésbicas” em contextos pré-boates. Para esse segmento socioeconômico, a possibilidade de encontrar outras pessoas com a mesma expressão de desejo se dava principalmente em competições esportivas, terreiros de candomblé ou festinhas, organizadas na casa de algum amigo com vida estruturada independentemente da família de origem. A imensa maioria desses convívios, no entanto, mantinha presente o perene controle das tensões decorrentes do risco da eventual quebra do segredo perante os vizinhos. Embora relevante do ponto de vista da ampliação nas possibilidades de convívio social, não se pode desconsiderar que, em contrapartida, os por comerciais terminam por condicionar seu acesso e permanência à lógica do poder aquisitivo, do consumo.

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Igualmente fazia parte desse núcleo, porém numa faixa não tão próxima, Mauro Julião e Toca, ambos falecidos.

e, num desses ensaios, apresentou-lhe Antônia, de quem terminou ficando amigo. Com o estreitamento dos contatos, Marcos passou a freqüentar a sua casa, antes mesmo que ela tivesse adquirido o estabelecimento.

Em 2005 as recordações de Antônia referem o conhecimento de Mauro depois que o

reservado já está em pleno funcionamento (“Apenas num segundo estágio, até porque o bar

era bem próximo da casa dele”). Nessa sua memória, Mauro já morava junto ao bar antes que ela o adquirisse. Ante a pergunta (indutiva, em função do relato de Marcos) se Marcos e Mauro se conheceram no teatro do Sesc, responde: “Isso! O nosso convívio era no teatro do Sesc. Não tinha [ainda] assim aquela ligação legal. O bar foi, assim, a liga, onde eles tomaram até coragem de andar mais de cabeça erguida, porque eles viviam muito escondidos, ninguém sabia de nada...” (Antônia, A, 17/10/05. Destaquei). Em 2006, Antônia afirma que conheceu Marcos em seu botequim e no dia seguinte conheceu Álvaro. Segundo se recorda, Marcos e Álvaro paravam naquele bar (antes que ela o adquirisse) quando da saída das aulas de teatro que freqüentavam juntamente com Mauro, que nessa ocasião (em sua memória) já morava na mesma rua do reservado.

3.4.1 Marcos

Marcos é extrovertido, ágil e dinâmico. Aborda as questões sobre sexualidade espontaneamente, sem nenhum constrangimento, não suprimindo o uso de nenhuma palavra. O fluxo de sua narrativa é veloz. Inicia seu relato antes mesmo que a entrevista comece, o gravador ainda desligado. É ator, cenógrafo, pintor, coreógrafo, poeta... Logo no princípio de sua narrativa, faz questão de se posicionar. Define-se como “homossexual”, ressaltando porém que não teria nenhum problema em transar com uma mulher, caso acontecesse. Deixa claro, no entanto, que não é “bissexual”. No seu modo de entender, somente poderia se definir dessa maneira se a orientação do seu desejo fosse distribuída de modo idêntico entre os dois sexos, o que não é verdade, no seu caso.

Nasceu em São João de Meriti, em uma família “muito pobre”, composta por nove irmãos, mas que, segundo ele, “graças a Deus”, apesar de toda a pobreza, nunca ninguém usou drogas. Ao todo, vivos, diz que tem sete irmãos. É o caçula, quatro anos mais novo que a anterior. São cinco homens e duas mulheres. Imagina que sua família, principalmente seus irmãos, tenha começado a desconfiar

“de alguma coisa diferente”, devido a uma amizade muito profunda e possessiva que manteve com um amigo, aos sete anos. Viviam um na casa do outro e embora jamais tivesse tido “sexo com ele”, sentia muito ciúme se o encontrasse com outros colegas. Na adolescência, teve algumas namoradas, mas sem nenhuma atividade sexual. Somente aos vinte e quatro anos é que vai ter sua primeira experiência heterossexual. (Marcos, 16/10/2004, A).

Trabalha desde os dezesseis anos, primeiramente na fábrica de sapatos de um parente e depois no comércio, como balconista. Sua última fase, antes de abraçar o teatro como atividade profissional, foi como escriturário. Dispensado do serviço militar e trabalhando, parte para morar sozinho. Por um lado, sentia-se pressionado e sem espaço, os irmãos a lhe exigir uma namorada e controlar seus horários. Por outro, se sentia isolado, não tinha onde encontrar pessoas com as quais pudesse conversar, sem ter de esconder uma parte de sua personalidade; queria ficar mais próximo dos lugares onde pudesse “encontrar alguém”, espaços, segundo ele, inexistentes no local onde morava169. Como não legitimado pelo casamento, necessita justificar o estranhamento que essa saída

provoca, principalmente em sua mãe. Tenta tranqüilizá-la com a justificativa da distância do emprego (Jacarepaguá) e do colégio, à noite. Divide apartamento com um amigo, em Santa Teresa, mantém contatos homossexuais, mas sem relacionamentos fixos. Ao longo de sua trajetória no Rio de Janeiro, Marcos residiu em diversos bairros, no Centro e na Zona Sul.

Seu primeiro “caso” só vai acontecer aos vinte e oito anos, com Álvaro, que conhece no curso de teatro do Sesc. Com ele, ficará “uns três a quatro anos”. Será com Álvaro, Antônia e Mauro que organizará as apresentações no reservado.

3.4.2 Álvaro

Álvaro nasceu e viveu em Vicente de Carvalho, no município do Rio de Janeiro, até os quinze anos, quando a família se mudou para São João de Meriti. Com a separação dos pais quando tinha cinco anos, passou a viver com o pai e a avó paterna. Já que estudava próximo de casa, onde também tinha seu grupo de amigos, a mudança lhe pareceu boa, devido à possibilidade de conhecer um outro lugar, fazer novas amizades. Também gostava de desfrutar maiores distâncias, e as viagens diárias de ônibus até Irajá, onde permanecera estudando, lhe pareciam agradáveis. O conjunto habitacional onde passara a residir tinha boas condições de habitabilidade, a vizinhança era pacata e

169 “Dava oito horas em São João de Meriti, eu ia fazer o quê? Não tinha um barzinho gay, não tinha um lugar pra

você namorar... Eu ia fazer o quê?...Quando eu comecei a trabalhar no Centro da cidade, comecei a conhecer os locais, aquilo me motivou a morar sozinho e ficar perto desses lugares que era mais o meu mundo. Porque o meu mundo, perto da minha família, era muito limitado, eu tinha que me policiar muito.” (Marcos, 16/10/04, lado A).

simpática. Em pouco tempo, passa a ter mais amigos em São João do que no antigo bairro. Como permaneceu na mesma escola, não houve ruptura, podendo contar agora com amigos em dois espaços distintos. Segundo se recorda, havia uma influência religiosa muito forte em sua família. O pai e a madrasta eram umbandistas: a madrasta, médium, e o pai, tesoureiro do centro. A avó paterna, embora católica, também gostava do “espiritismo”170.

Diferentemente de Marcos, mas relativamente menos do que Antônia, Álvaro demonstra alguma dificuldade em abordar temas que dizem respeito à sua orientação sexual. Indagado se, diante dessa formação religiosa mista – católica e afro-brasileira – a noção de culpa era muito presente, vacila, afirma que sim, que ficava dominado por uma certa culpa, um certo desconforto, mas evita pronunciar certas palavras. Segundo seu relato, aos quinze anos “já sabia o que se passava” com ele – isto é, que era diferente, que se sentia atraído por pessoas de seu próprio sexo.

Indagado como era lidar com essa consciência de si, diz que “era complicado”. E então empreende uma fala que reproduz o padrão mental vigente na sua adolescência, que buscava encontrar uma causa para o “homossexualismo”, na ausência de modelos masculinos. Criado entre duas irmãs, vivendo a brincar com elas, por um certo momento parece querer justificar se, de fato, não estaria aí a origem... Como a tornar ainda mais consistentes as evidências de sua “homossexualidade”, no colégio não era dado ao futebol. E, como a escola não oferecia outras modalidades esportivas e o domínio do futebol constasse (como ainda consta) das prescrições normativas a respeito do que deve e do que não deve gostar meninos e meninas, então lá se via ele

170 Birman registra “um uso educado” na utilização do termo “espírita” como eufemismo para referir praticante de

cultos de origem africana (Birman, 1995, 7). Destaco, porém, um outro sentido no uso desse termo com a acepção referida. Trata-se do seu emprego como resistência ao processo de desqualificação desferido contra as manifestações religiosas de origem africana ao longo da História brasileira. Até meados dos anos de 1960, na Baixada Fluminense eram comuns “batidas policiais” no interior dos terreiros, o fechamento das casas de culto e a condução de seus responsáveis até a delegacia. Seus praticantes, vistos com restrição por serem adeptos de manifestações religiosas tidas como “incultas” e “primitivas”, costumavam guardar discrição sobre suas crenças. O espiritismo, uma outra modalidade de culto a envolver possessão, foi elaborada na França, no século XIX, por Allan Kardeck, e tem por objetivo “o aperfeiçoamento moral” humano, perseguido pelos seus adeptos com o auxílio e a orientação de “espíritos” mais desenvolvidos de pessoas desencarnadas (mortas). Aqui no Brasil, teve em Francisco Cândido Xavier o seu maior expoente. Com a sua propagação entre nós, notadamente entre os segmentos médios, brancos e urbanos que o vêem como “civilizado” e “racional”, os praticantes dos cultos afro-brasileiros passam a se autodenominar também “espíritas”, como forma de escapar ao preconceito, já que têm na possessão o elemento comum. Muitos rituais de matriz africana foram influenciados por essa doutrina e incorporaram elementos de seu sistema ritualístico e filosófico, fazendo surgir as nomenclaturas “umbanda de branco”, “umbanda de cáritas”, “umbanda de Angola”, esta última para marcar a vertente africana. Esse fenômeno vai se generalizar ao ponto de fazer surgir as expressões “espírita de mesa” ou “de linha branca”, para referir às práticas kardecistas e “espírita de linha” ou “espírita umbandista”, para expressar variedade de umbanda que incorpora influências dessa doutrina filosófico-religiosa. (Ver: Houaiss, 2001, 1233, 2802.) A disseminação do emprego eufemístico torna necessária uma pergunta de confirmação – kardecista ou umbandista –, para que se consiga ver explicitada a exata religiosidade.

indagado, cobrado, posta em dúvida a sua masculinidade... A força dessa estruturação é tão forte a ponto de se indagar: “E se?...” Logo em seguida, porém, apazigua-se: “Mas isso não tem nada a ver com a homossexualidade...”

Álvaro diz que foi aos dez anos que tomou consciência dessa diferença, através do “relacionamento” com um menino de oito. Segundo ele, foi uma coisa suave, tranqüila, mas que se estendeu até os seus dezesseis anos, mais ou menos. Até um ano depois de sua mudança do bairro, o amigo ainda ia freqüentemente visitá-lo no novo endereço. E, nessas ocasiões, namoravam. Como fosse mais velho, o amigo o via como alguém mais experiente, partilhando com ele suas dúvidas e desconhecimentos a respeito da sexualidade. Depois que o amigo casou, diz Álvaro, nunca mais se viram.

Ele discorda das pessoas que afirmam apenas quando já adultas, ou depois de relacionamentos heterossexuais, terem tomado consciência do desejo homossexual. No seu caso, afirma ele, sempre teve clareza daquilo que queria, e entrou na adolescência já sabendo exatamente o que achava que era “legal”: “Que era a figura masculina que fazia a minha cabeça.” Mesmo assim, mais por pressão das pessoas à sua volta, os colegas todos com namoradas, só ele não, aos dezoito anos teve a sua. Quase fica noivo da menina. Passado o susto, o segredo preservado, Álvaro segue a vida. Aos vinte e um anos tem o seu primeiro relacionamento “adulto”.

Aos vinte e um, por ser comerciário (ele já trabalhava antes mesmo de prestar o serviço militar), tem direito aos serviços oferecidos pelo Sesc. Decide fazer o curso de teatro. A partir desse curso, passa a ter acesso a cenários sociossexuais todos próprios. É quando conhece Marcos, com o qual passa a se relacionar, formando um “caso”. Sem muito perceber, simultaneamente aos modos de atuação teatral que vai adquirindo no curso, também vai incorporando os roteiros, os requisitos e práticas dos papéis específicos, de modo a atuar e compreender os significados das atuações dos demais atores nos novos cenários aos quais vai sendo introduzido. Um profundo sentimento de liberdade é a sensação que retrata da descoberta desse “outro mundo”, que se materializa em espacialidades descontínuas, mas que propicia a possibilidade de exteriorizar as emoções em plenitude, sem o medo de ser humilhado, agredido. O desfrute de momentos singelos e vitais, como rir, brincar, dançar junto, dar beijo...

Todo um (novo) mundo se abre, com suas linguagens, estéticas, estilos, dinâmicas... Vai se dando conta das diferenciações, das nuances, dos seus distintos códigos e significados, mas também

da preservação dos mesmos marcadores de diferenciação. Álvaro observa que na boate famosa, então existente na Barra da Tijuca, tão logo um dos interlocutores divulgasse a Baixada como local de origem, se operava uma rápida e profunda mudança no processo de interação. Os marcadores de posição, origem social e, conseqüentemente, prestígio, inscritos no corpo, no estilo da vestimenta ou na fala, quando identificados, produziam outro exílio, chegando a ser objeto de terminologia específica171, reproduzindo o mesmo padrão estigmatizador da diferença da sociedade global na qual

todos haviam sido socializados. Terminam por constituir mundos distintos. Ainda que ocupando o mesmo espaço físico, são mundos que não se integram, permanecendo estanques, sem que haja interação significativa entre eles (Velho, 1999, 20). Enquanto que nos ambientes de bares e boates exclusivamente destinados a eles podem agir com naturalidade, no trabalho e, principalmente, em casa, o silêncio, o segredo, o receio de se verem descobertos permanece intocado.

Álvaro diz que até os dias de hoje – e já se passaram mais de vinte anos –, jamais a sua forma de afeto e desejo foi abordada no ambiente de sua família de origem. Nunca lhe perguntaram, mas se perguntassem, falaria. Acredita que eles sabem, em decorrência de sua trajetória sem