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No processo de construção das fontes um parêntesis se faz necessário. Trata-se das comuns dificuldades quando as solicitações de entrevistas têm por objetivo aspectos percebidos como muito

particulares e íntimos da identidade social (Salem, 1978, 47-64). Esse desconforto se agrava quando os

temas estão voltados para a sexualidade e os afetos. E, dentro desses, ainda mais delicadas se tornam caso envolvam processos de estigmatização social, mesmo quando a proposta de entrevista seja formulada por pesquisadores eles próprios nativos e conheçam os entrevistados (Colaço, 2004b). Esse contexto deve ser considerado no esforço de compreensão tanto das evasivas, pausas e titubeios, quanto de algumas respostas aquiescentes ou superficiais apresentadas pelos colaboradores, algumas preocupadas em formar um “retrato oficial”, dos fatos e da subcultura em exame (Becker, 1997, 37, 124, 132; Bom Meihy, 2000, 58-60).

Cotidianamente exigidos a manejar sua identidade social de forma a acomodá-la a contextos freqüentemente adversos, sabem os “homossexuais” (ou os que em determinados momentos de suas trajetórias vincularam suas identidades sociais e/ou práticas eróticas a essa orientação sexual) dos custos produzidos pelas reações de repúdio, físicas muitas vezes, verbais e simbólicas diuturnamente. Esse saber os leva a se tornarem especialistas na gestão dos aspectos desacreditados de sua identidade, de modo a se resguardarem dos processos de segregação social (Pollak, 1990; Anjos, 2002). É no âmbito desse quadro que a interpretação dos (às vezes longos) silêncios, elipses, titubeios e desvios torna-se ainda mais relevante (Augras, 1997; Pollak, 1989).

Como bem adverte Bourdieu, a relação de pesquisa é antes de tudo uma relação social e, como tal, sujeita a toda sorte de distorções, vez que “ocorrem sob a pressão de estruturas sociais” (Bourdieu, 2003, 694 e nota 2). Embora seja impossível ao pesquisador reconhecer e dominar antecipadamente

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Esses capítulos foram encaminhados a todos os colaboradores, com a solicitação de que exterorizassem suas considerações sobre os mesmos. Eleonora preferiu não recebê-los.

todas as que possam vir a ocorrer, é idealmente desejável estar previamente consciente quanto à possibilidade dessas ocorrências, na medida em que fatalmente influenciarão os resultados que apresenta (Bourdieu, 2003, 694).

Essa forma de olhar de modo algum elide o reconhecimento de que o produto final resultante é sociohistoricamente localizado, vez que igualmente o são o pesquisador e os colaboradores, incapazes, portanto, de uma completa abstração de suas próprias visões de mundo e lugares de fala bem demarcados (Meihy, 2000, 52; Oliveira, 1998, 24). Essa perspectiva também me leva a ter em conta que o resultado produzido igualmente é impregnado por incontáveis esforços intelectuais anteriores (as co-autorias, citadas ou diluídas, atravessando todo processo). Nada disso, porém, me exime da responsabilidade pessoal pelas minhas próprias limitações e pelo uso que faço dessas múltiplas co-autorias.

Quanto aos modos de recepção da proposta da pesquisa pelos colaboradores potenciais (Becker, 1997, 36), houve os que se mostraram mais facilmente concordes e outros que, inicialmente reticentes, aderiram em seguida. Também houve o caso de duas colaboradoras potenciais que em princípio se mostraram entusiasticamente mobilizadas a participar, mas, nas datas marcadas para realização da entrevista, se esquivaram. Tentativas posteriores de remarcação foram recebidas com evasivas.

O fato é que a familiaridade do pesquisador com o seu objeto impõe, primeiramente, o reconhecimento dessa peculiaridade e suas possíveis implicações. Por um lado essa proximidade contribui favoravelmente, na medida em que torna potencialmente mais fácil (às vezes determinante) o acesso a certos universos a serem pesquisados. Mas, por outro, torna necessário que o pesquisador tenha clareza das tensões, interesses e projeções que podem se fazer presentes nesse tipo de metodologia de pesquisa. Através dessa consciência, poderá manter sob o controle possível sejam suas próprias fantasias e projeções a respeito do evento ou do entrevistado, seja a sua tendência em intervir na sua produção discursiva, utilizando-se das estratégias do campo acadêmico (Bourdieu, 2001, 51-58). Também se encontrará mais preparado (ao menos em tese) para responder, tanto aos movimentos desses colaboradores no sentido de tomarem para si a condução da entrevista e, mesmo, da pesquisa (Meihy, 2000, 50-52; Bourdieu, 2003, 699, 701-704), quanto a outras distorções passíveis de ocorrer em interações desse tipo.

Ocorre, porém que, se por um lado inegavelmente a familiaridade contribui para o acesso aos informantes e para uma melhor compreensão acerca de determinadas sutilezas do universo da

pesquisa (Bourdieu, 2003, 697-699), por outro, essa mesma proximidade pode dificultar a tradução de formas e modos de estruturação e funcionamento desse universo para aqueles que não o conhecem (Teixeira, 2006). Por extremamente notórios e familiares aos nativos, corre-se o risco de simplesmente deixar de mencionar ou problematizar aspectos relevantes no esforço de compreensão mais ampla sobre o universo pesquisado. Na prática da pesquisa de campo, o exercício concreto de “tornar exótico o familiar” (DaMatta, 1978, 28) não é operação sem riscos – como aliás também não é o seu inverso.

Por outro lado, pode a suposta familiaridade entre pesquisador e potencial colaborador não ser confirmada pelo personagem no momento da solicitação ou mesmo da realização da entrevista, em razão de mudanças havidas em suas trajetórias pessoais. Pode inclusive ocorrer o inverso – a produção do estranhamento em razão do desenraizamento havido (Todorov, 1999, 22–23). É que o sentido de familiaridade nesse caso resulta de um processo de identificação e é, também ele, relacional, à mercê da legitimação pelo outro. Nesse sentido, importante atentar que mudanças nas posições relativas e nos capitais simbólicos de ambos podem vir a torná-los reciprocamente estrangeiros, em razão da dissimetria social na hierarquia das diferentes espécies de capital acumulado, especialmente o lingüístico e cultural (Bourdieu, 2003, 695). Essa possibilidade não havia sido considerada quando me iniciei em campo, propondo as primeiras entrevistas, embora tivesse vivenciado os efeitos desse mesmo fenômeno quando do esforço de resgate do significado da experiência do grupo de “homossexuais” existente na mesma Baixada Fluminense nos idos de 1979, o GAAG já referido (Rodrigues, 2004).

Ao considerar este universo de informantes potenciais como próximo, terminei por negligenciar a possibilidade de ocorrência dos efeitos advindos do encontro entre pesquisador/a e entrevistados/as que embora possuindo origem relativamente comum, no curso das trajetórias terminam incorporando distintos capitais lingüísticos e simbólicos (Bourdieu, 2003, 695). Via de conseqüência, também não considerei possíveis efeitos de dissimetria em relação à parceira de uma potencial colaboradora. A minha profunda imersão no universo jurídico também pode ter contribuído para não ponderar sobre a possibilidade da exigência formal e prévia da assinatura do Termo de Cessão de Direitos vir a se constituir elemento de violência simbólica, notadamente em segmentos “com pouca informação sobre os procedimentos” de pesquisa (Benedetti, 2005, 48-49). Na busca por uma relação menos assimétrica entre pesquisadora e colaboradores, a pesquisa integrava uma abordagem dialógica (Oliveira, 1998, 24). Entretanto, apenas na pessoa da

proprietária do botequim encontrou eco. Sua disponibilidade para o diálogo43 favoreceu a

construção de outras entrevistas, possibilitando o aprofundamento de determinados temas e o esclarecimento de alguns pontos obscuros e lacunas. Sua forte adesão à proposta permitiu ainda a legitimação para os aspectos de sua trajetória (e das atividades) incorporados a partir da posição da pesquisadora enquanto nativa, fato que marca determinados trechos desse exercício de reconstrução com um caráter de etnografia pretérita. Essa singularidade metodológica comunga com as ponderações de Gagnon, sobre o caráter emergente e contingente de todas as interpretações de fatos sociais: são parte tão integrante da construção social dos fenômenos quanto os próprios fenômenos observados e interpretados (Gagnon, 2006, 371). Como advertido na introdução deste trabalho, com lastro no mesmo autor (Gagnon, 2006, 213), por maior que seja o esforço no sentido da objetividade, o resultado final será sempre localizado e transitório.

Retornando aos aspectos da relação pesquisadora–ex-proprietária do estabelecimento, a disponibilidade demonstrada para o dialogismo possibilitou o enfrentamento conjunto e com maior desembaraço sobre as eventuais implicações de ordem familiar e social decorrentes da publicização de aspectos dos depoimentos. É que embora a todos os colaboradores tenha sido oferecido o recurso do anonimato, a maioria se mostrou decidida a ter suas identidades divulgadas, o que interpretei como um processo mais de afirmação de protagonismo sociohistórico do que simples mecanismo de resistência da identidade objeto de estigmatização.

Essa variedade de posicionamentos – alguns optando pelo anonimato face aos custos a si elevados na eventualidade da revelação e outros exigindo o reconhecimento público de suas existências – me impôs um aprofundamento na reflexão ética acerca da responsabilidade do pesquisador na avaliação prévia sobre as eventuais conseqüências da publicização dos conteúdos das entrevistas concedidas. Atenta em evitar que os depoimentos prestados pudessem vir a causar danos aos colaboradores (Becker, 1997, 174), embora reconhecendo a relevância tanto pessoal quanto social e política do desejo de visibilidade histórica manifesto, não podia ignorar os custos sociais envolvidos ante a eventualidade da revelação para aqueles que não desejam ou não podem arcá-los. Esposando este convencimento, optei por manter todos no anonimato44.

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Credito essa receptividade não apenas ao seu lugar de principal protagonista, como também ao fato de ser a única com experiência em processos semelhantes. Além do mais, a estrutura de sua narrativa (predominantemente épica) aponta para uma personalidade muito mais propensa a falar de si (Bom Meihy, 2000, 58).

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É admissível a argumentação de que o anonimato da forma que vai resulta algo precário. Esse aspecto pôde ser discutido por telefone em 2006 com Álvaro. Nessa ocasião tivemos oportunidade de ponderar sobre a

Um outro aspecto a destacar diz respeito às cautelas no emprego de terceiros na tarefa da transcrição das entrevistas, ainda que referidos como profissionais especializados. A experiência me mostrou o acerto das advertências de Becker (1997, 27-31), quando observa a alta probabilidade da ocorrência de infidelidades, nos casos em que os auxiliares aos quais se recorra não se sintam inteiramente comprometidos com os resultados finais das pesquisas ou, em outras palavras, para os quais os resultados inconsistentes que apresentem não possam afetar.

eventualidade de implicações, mostrando-se plenamente concorde com o tratamento dado. Semelhantemente a Álvaro foi o posicionamento de Antônia, que recebeu e comentou as comunicações de pesquisa apresentadas em diversos espaços acadêmicos (Rodrigues, 2006(b), 2005, 2005(a), 2005(b)). Marcos e Eleonora desde o início se mostraram resolutos quanto ao não anonimato. Marcos também recebeu as comunicações de pesquisa e sobre elas teceu nenhuma crítica. Também os capítulos 3 e 4, não mereceram comentários de nenhum deles.

2 LEVANTANDO ÂNCORAS & DESENROLANDO VELAS