• Nenhum resultado encontrado

4 “AI, SE MINHA MÃE DESCOBRE QUE EU TÔ AQUI DENTRO!”

4.8 Cerrando as cortinas

O mundo é assim: poucas possibilidades contrapostas a aspirações muitamente imensas. (Daniel, 1984, 18.)

242 Além de Mauro Julião e Toca, Geórgia também é falecida. Segundo pude apurar, seu óbito se deu

aproximadamente em 1996. Todas as tentativas realizadas até o presente momento para a obtenção de maiores informações sobre sua trajetória resultaram vãs. Embora tivesse contado com a disponibilidade generosa de Anuah Farah, então dirigente da Turma Ok (2004), suas buscas nos arquivos da Turma resultaram nulas. As pessoas que ele e Marcos me indicaram, contactadas, lamentavelmente também não dispunham de informações ou fontes (documentais ou iconográficas). Criei na ferramenta de relacionamentos virtuais Orkut, uma comunidade para ela e divulguei-a na página da comunidade da Turma Ok. Ainda aguardo por notícias. Embora três pessoas já tenham aderido, ainda não houve acréscimo de informação.

Antônia, cansada de conciliar dois mundos antagônicos, se vê confrontada por questões práticas. O

reservado, passada a fase inaugural, tem sua freqüência diminuída. Os que continuam comparecendo,

não produzem consumação que cubra os custos, as noites em claro, as tensões, os riscos... As manifestações de cuidado, as relações constituídas a partir do espaço não foram suficientes para consolidar a sua existência.

Mesmo sem ter nenhum concorrente em Meriti, Antônia se sente desgastada com o precário equilíbrio de forças e sem retorno financeiro compensatório. Ao ver os clientes que possuíam algum poder aquisitivo saírem em debandada atrás de outras novidades, apenas permanecendo os que não tinham opção, os que passavam a noite inteira com uma única garrafa de refrigerante243, acaba definitivamente com o Cantinho Amigo, mantendo apenas as atividades do

botequim, sua fonte de sobrevivência.

– Diante dos significados atribuídos pelos colaboradores àquele espaço, inevitável a pergunta: Por que as relações ali estabelecidas não foram capazes de produzir a institucionalização do espaço como um território próprio?

Marcos credita ao constante medo das agressões, da violência. Todos moravam no entorno, o anonimato estava sempre ameaçado. A dupla vida da maioria poderia a qualquer descuido ser posta em exposição pública, trazendo graves problemas de ordem pessoal e familiar para eles. No entendimento de Álvaro, porém, o esvaziamento decorreu de um movimento espontâneo, muito comum em estabelecimentos desse tipo: passado o momento inicial, as pessoas vão em busca de outras novidades. Para ele, coincidiu com o surgimento de espaços semelhantes em outras localidades da Baixada. Em Nova Iguaçu surgiram pelo menos três ambientes, com melhores condições de espaço e acomodações: o Tapera244, o Batom Vermelho e o Salto Agulha.

É indiscutível que a convivência diária com a violência sempre iminente traz custos e desgastes do ponto de vista pessoal. A certeza de não poder encontrar no Estado a proteção devida amplia a sensação de vulnerabilidade. Ainda que essa sensação de um modo geral esteja presente nos segmentos populares como um todo, no reservado era vivida em conjunto com o sentimento de

243 Ver a respeito, Green e Trindade, 2005, p. 33.

244 O Tapera igualmente foi comandado por uma mulher e apresentava presença majoritariamente feminina. Era amplo e

desqualificação social e com o temor decorrente dos riscos na quebra do segredo perante os familiares consangüíneos, tendo em vista que a sua maioria residia nas proximidades.

As pessoas desejavam um espaço para se divertir, para conhecer outras, namorar, esquecer dos problemas que cotidianamente tinham para administrar. A idéia de deliberadamente se dirigir para um local que se sabia freqüentamente alvo de ameaças de violência e que não podia oferecer garantias de tranqüilidade aos seus freqüentadores é uma hipótese razoável a justificar o esvaziamento do “clubinho”, ainda que não seja suficiente por si só para explicar inteiramente sua extinção. Por mais que se considere as implicações de se estar cotidianamente exposto à violência, resta a indagação sobre o por quê de sequer terem tentado preservá-lo.

Sendo efetivamente um espaço importante, principalmente para as “lésbicas”, pelo ambiente acolhedor que proporcionava, se estas eram próximas da proprietária e as maiores freqüentadoras, como parece sugerir as matérias no jornalzinho e as fotografias, como compreender a ausência de qualquer iniciativa no sentido de sua preservação? E os “gays”, se efetivamente participavam da organização das atividades no espaço, por que aceitaram passivamente a sua extinção?

Penso que a resposta a esta indagação pode ser pensada a partir de dois pontos bem específicos. O primeiro diz respeito à permanência de determinados traços na constituição sociohistória da mulher e via de conseqüência das “lésbicas”. Estas têm mantido o privilegiamento dos ambientes domésticos para a sociabilidade, uma relativamente baixa tendência a ações de enfrentamento e uma maior valorização da conjugalidade (Heilborn, 2004, 105; Oliveira, 2002, 127; Paglia, 1996, 145 e 149; Míccolis, 1983, 83; Batinga apud Míccolis, 1983, 93). Para algumas, o ambiente de bares e boates é danoso para a saúde da relação, levando-as a se afastarem deles tão logo se sintam formando uma parceria que desejam estável e duradoura (Viñuales, 2000, 145). Se levarmos em consideração o diminuto da coletividade que freqüentava o espaço (cerca de cinqüenta pessoas, segundo Antônia) e a tendência à endogamia, é possível concluir que se trata de uma variável a ser considerada. O outro aspecto diz respeito à estruturação das freqüências. Em outras palavras, em torno de qual idéia as pessoas se dirigiam para o Cantinho Amigo?

Ainda que proporcionando um ambiente acolhedor, capaz de fazer com que se sentissem em seu

mundo e que as atividades fossem desenvolvidas dentro de um padrão colaborativo, solidário, o

tempo todo estava claro que se tratava de uma atividade com fins lucrativos. Acredito que esse tipo de organizador, somado a uma cultura como a nossa, de pouca tradição associativa, com baixos níveis de comprometimento, impediram o crescimento e a solidificação de um sentimento de

pertença para além da mediação comercial. O padrão empresarial, estruturado necessariamente em torno de consumação e rentabilidade, no meu entender, nesse caso específico inibiu a sedimentação do vínculo participativo, do sentido da formação de um elemento de coesão suficiente para torná- los de fato um corpo, uma frátria, um grupo (Bourdieu, 2005, 176). Isso não significa que todos os espaços comerciais tornados territórios entendidos tenham sido incapazes de fazer surgir esse elo. Um exemplo nesse sentido pode ser obtido através da manifestação de lésbicas paulistanas em prol da continuidade da distribuição do boletim ChanacomChana no interior do Ferro‟s Bar, no ano de 1983 e que será abordado mais adiante.