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4 “AI, SE MINHA MÃE DESCOBRE QUE EU TÔ AQUI DENTRO!”

4.4 Recriando frátrias

Precisava de uma tribo de iguais. Tribalizei-me. Daniel, 1984, 163-164. Isso porque existem condições históricas para a sua produção. Não seria apenas por um ato de vontade.

Birman, 2000, 187.

217 “[...] A gente estava sujeita a batidas policiais a toda hora... Imagina como é que seria... Um prato feito... [...]

Antônia, 3ª fita (19/04/2003), B, final.

218

É interessante constatar a forma de recepção do uso de drogas – na época, a maconha – no universo pesquisado. O seu uso é visto como muito ameaçador e perigoso, devendo ser completamente evitado. Nesse contexto verifica-se uma automática vinculação do uso com a delinqüência. O jovem ou adolescente que fica conhecido como usuário, ainda que decorrente de simples curiosidade, passa a ser visto como marginal, um “criminoso”. Presença ameaçadora, por suas possibilidades sempre muito reais de vir a “ter problemas com a polícia”, torna-se uma pessoa a ser evitada.

O contexto de escassos recursos e poucas opções e mesmo essas poucas, remotas, contribuía para tornar o reservado um ponto de encontro. Privilegiada referência, principalmente entre as mulheres, era comum marcarem com as namoradas lá dentro, evitando-se desse modo as desnecessárias exposições públicas.

O espaço diminuto tornava mais próximos os contatos entre os freqüentadores mais assíduos. Sendo reduzido o número global de participantes, logo se formou uma rede de conhecimentos recíprocos, organizada horizontalmente em torno de Antônia, carismática e líder.

O partilhamento de experiências comuns fazia surgir entre eles ações de empatia e solidariedade, ainda que pontuais, descontínuas. Cobrir as despesas uns dos outros, manter o espaço em funcionamento até que o primeiro ônibus começasse a circular, ainda que sem faturamento que o justificasse, acompanhar alguns até a condução, abrigar em sua própria casa algum/a amigo/a que estivesse atravessando uma situação pessoal especialmente delicada, eram as materializações mais comuns do sentido de cuidado um com o outro. A própria Antônia foi objeto desse cuidado ao ser acolhida, juntamente com a sua filha, na casa de uma dupla de freqüentadoras219, por ocasião do

agitado processo de separação que protagonizou, por conta do agressivo inconformismo de sua antiga companheira e sócia do estabelecimento.

Naquele “clubinho”, informal e diminuto, se reuniam brancos/as e negros/as, mestiços mais e menos pintosos/as, pai de santo, auxiliares de escritório, de enfermagem, estudantes, vendedoras, camelôs, desempregados/as, datilógrafas, compositores, sambistas, atores, autores teatrais e filhinhas

de papai220. E, se reunindo, desfrutavam em comum o viver, com o que há de alegria e festa, de

desejo e jogo, mas também de riscos e discriminações.

Conscientes da clandestinidade de seus desejos, não costumavam falar muito sobre isso. Mas mesmo que pouco cuidassem de abordar sobre suas questões familiares e profissionais – cenários privilegiados nas distintas formas de negociação do segredo organizador de suas práticas, era a partir desse se saber no outro que a integração se processava.

Esses laços, construídos na constância das idas ao Cantinho Amigo, eram mais ou menos solicitados em termos de apoio recíproco na conformidade de como se dava a organização dos vínculos com a

219 Lurdes e sua namorada, igualmente chamada Antônia. 220

Essa era a representação que alguns/mas integrantes da rede possuíam da situação econômica de Carabina, a freqüentadora que mais criava situações de tensão no interior do reservado. Embora residisse na localidade e sua família não fosse dotada de boa situação financeira, não trabalhava e ostentava padrão econômico capaz de fazer supor tivesse situação privilegiava, comparativamente com a maioria dos freqüentadores. Segundo consta, advinha de sua companheira na época o aporte que exibia (Informações prestadas por telefone por Eleonora, em 15/10/06).

família consangüínea. Estes, por sua vez, expressavam os modos dessa parentela lidar com a diferença que os marcava no interior da normatividade heterossexista (Viñuales, 2000, 157). No âmbito da rede, a sedimentação do sentimento de pertença e integração se realizava por meio dos acontecimentos ali desenrolados: comemorações de aniversários, partidas de futebol, shows de dublagens, fofoca221.

Através de seus contatos com as amigas “lésbicas” da adolescência e de outras que ficara conhecendo no botequim, antes de abrir o reservado, Antônia organiza primeiro uma partida, depois um campeonato de futebol feminino que dura, segundo ela, um mês inteiro, sempre nos domingos. Na partida decisiva, alugam duas kombis e outras tantas seguem de carro para um campo localizado na Penha, subúrbio da área da Leopoldina. Antônia termina escalada para agarrar no gol, em substituição à titular que não compareceu (“Levei muita bolada no pé...”). Terminada a partida, todas e todos rumam em caravana para o bar, para comemorar com um churrasco. Segundo o relato de Antônia, veio tanta gente que muitas e muitos ficaram na calçada. Mesmo diante da presença de muitas meninas “masculinizadas”, nesse dia não houve nenhuma manifestação de violência por parte dos moradores das proximidades222.

Depois da aventura do futebol as presenças no reservado vão se ampliando. Antônia, Álvaro e Marcos têm a idéia de organizar apresentações de dublagens, seguindo os mesmos modelos das que eram realizadas nas boates do Centro e Zona Sul do Rio de Janeiro, devidamente adaptadas à realidade local223. A cada final de semana os rapazes planejavam alguma coisa diferente para

221Em 2007, acessando os números do jornalzinho, pude comprovar a relevância integradora da fofoca entre os

freqüentadores. Há números que exibem duas colunas com esse conteúdo. Para uma discussão a respeito dessa função social da fofoca, remeto a Viñuales, 2000 e Silva, 2005.

222 Antônia, 2003 (fita 3, lado B, fita 4, lado A); 2005 (17/10/2005, A). 223

“Os shows não eram feitos por profissionais, eram feitos por nós. Toca fazia, eu fazia, às vezes o Álvaro fazia, às vezes era um colega que fazia... O Mauro Julião... Sempre tinha dois, três shows por noite feitos por nós. Na realidade a gente queria copiar as grandes boates do Rio de Janeiro, mas não tinha como, né? A gente não tinha verba pra isso e não tinha estrutura moral e apoio nenhum pra isso”.

“Tinha gente que não tinha dinheiro pra ir pra Cidade, entende? Então a gente tava trazendo pra eles o que a gente via lá fora [nos outros espaços, na Zona Sul e Centro do Rio]. E eles, aquelas bichinhas novatas que estavam começando ali, adoravam aquilo! Se não fosse a repressão do povo lá de fora, com aquela „tacação de pedra‟, aquela brigalhada, aquilo ia continuar!” Marcos, 16 e 17/10/04 em Juiz de Fora, MG.

No contexto da época, as referências “viado” “bicha” eram usuais e íntimas, quando partindo de integrantes do segmento.” Marcos faz confusão nesse trecho de sua memória. A cena de “tacação de pedras” ocorreu em um outro espaço, em um clube em São Mateus, onde foram realizar um show. Ver adiante, a seção “Se espraiando...”

O jornalzinho Boca Negra registra as identidades auto-atribuídas entre os freqüentadores: “bichas”, “sapatão” e “entendidas” – com o que parece se confirmar os dados apresentados pela Pesquisa 9ª Parada do Orgulho GLBT – Rio 2004, de que a categoria “entendido” é mais utilizada por mulheres do que pelos homens (Carrara e Ramos, 2005, 36– 37). Nenhuma referência aos termos “gay”, “lésbica” ou “homossexual” foi encontrada O termo gay apenas aparece

mostrar224. Os shows começavam em torno de meia-noite e meia, uma hora e terminava mais ou

menos às três horas da manhã225. Eles próprios faziam a produção e as apresentações. Chegaram a

organizar concurso, com disputas de troféus e medalhas, mediante o voto dos presentes. Mas tudo muito amador, unicamente para divertimento recíproco: “De repente o disco engasgava. Tinha que ficar lá [aguardando] até o outro correr e trocar a agulha...”226

Saber que no final de semana poderiam exibir-se a si e às suas habilidades pessoais sem outras vias de expressão mobilizava as semanas de todos, tornando-as povoadas de expectativa. Se nos dias que antecediam as exibições, uns ficavam envolvidos com a escolha da música que apresentariam e dos elementos a utilizar na composição do(s) personagem(ns), garimpando pelos brechós, empolgados, à procura de roupas, sapatos, perucas, tudo enfim que pudessem misturar à criatividade própria na elaboração de seus números227, outros passavam os dias, curiosos, imaginando qual seria a

“invenção” que seria apresentada.

Aqueles que se freqüentavam durante os dias úteis tinham a possibilidade de fazer os acontecimentos ali vividos se alongarem por meio das conversas e das fofocas que entreteciam. Vários ainda seriam os que se ocupariam de anotar algumas delas para colocar na caixinha dos redatores do jornalzinho que circulava entre eles. Atualizando e repercutindo uns com os outros todas as ocorrências das noites dos fins de semana228, ampliavam os acontecimentos vividos,

fazendo com que preenchesse suas semanas até que viessem outra vez as noites em que estariam de novo juntos, podendo conferir os desdobramentos dos variados enredos em curso. Isso terminava

como nome de um personagem televisivo de Chico Anísio – o Capitão Gay –, apelidando uma das freqüentadoras. Entre os termos utilizados também foi encontrado o registro de “vassoura”, como significante para paquerador; pessoa que se empenhava em diversos jogos de sedução no interior do espaço; e “picadinho”, para referir o/a parceiro/a na unidade sociológica do “caso”.

224 “Naquela época [sempre] tinha um viado fazendo Wanderléa, Gal Costa, Maria Bethânia, essas coisas... Então a gente

tentava copiar isso. Tentava fazer a Maria Bethânia, fazer a Gal Costa... Também o Ney Matogrosso era um que a gente fazia muito. Até a Antônia fazia. Zezé Mota, o Toca fazia toda noite. A gente já não agüentava mais: – Ô Toca, muda esse negócio que eu não agüento ver mais Zezé Mota na minha frente! – O Toca dessa largura [faz a distância com as mãos], com a estola de bicha no ombro! Eu falei: – Nunca vi Zezé Mota tão alta assim na minha vida... E ele fazia a Zezé Mota! E o povo adorava! O povo nosso.”

A pesquisa no Boca Negra confirma tais informações.

225 Antônia, 2005 (17/10/05, A). Conforme já registrado, o número experimental do jornalzinho anuncia a

realização dos shows a partir das 22 horas das sextas–feiras.

226

Álvaro, 04/10/04.

227 E saía todo mundo para comprar roupas, pra comprar sapatos, comprar as maquiagens, os negócios todos... [...]

nesses brechós, correndo [pra] comprar os sapatos.... Um número menor do que o próprio... Era muito engraçado... Cada um arrumava um pouco dali, um pouco daqui, escolhia lá um disco e uma música e fazia a interpretação. [...] (Álvaro, 04/10/2004, fita 1, B).

228 “Tinha um jornalzinho que a gente passava informações e tal... O que aconteceu, quem pegou quem; quem

acabou e tal... Também tinha [uma seção anunciando]: No próximo final de semana... Aí tinha as informações do que ia acontecer.” (Álvaro, 04/10/04).

organizando seus dias. Estes passavam a se estruturar em termos das freqüências ao reservado. Os vínculos que iam sedimentando entre eles, horizontais e próximos, fazia com que se sentissem integrados, pertencendo, significando...

O fato de terem conseguido desenvolver entre si esse sentimento de “comunidade” não significa que no seu interior não surgissem tensionamentos. Embora os relatos dos colaboradores não tenham mencionado esse aspecto da relação entre os freqüentadores, dedicando-se a destacar exclusivamente os aspectos amistosos e fraternos, alguns desses conflitos podem ser percebidos através das colunas de fofoca no jornalzinho Boca Negra. Além das já mencionadas cenas de ciúme, dois outros incidentes são noticiados, sempre de forma anônima, algo cifrado, através das notas escritas pelos freqüentadores. Um aborda o desagrado da proprietária com a extrapolação no grau de liberdade concedido a um dos integrantes da rede que, sem comunicação ou solicitação prévia, marcou a reunião com o seu grupo de teatro no interior do reservado. O outro, constante do mesmo número do jornal, denuncia um determinado freqüentador (sem nomeá-lo) de lançar mão da revelação do segredo sobre a homossexualidade de seu (ex?) namorado como instrumento de vingança. O texto, além de tornar pública a infração de uma regra vital a todos, faz questão de promover sua antagonização frente ao coletivo: “Cuidado com ele, pessoal, pois se a moda pega, muitas cabeças vão rolar. Cada qual que se cuide!” (Boca Negra, nº 2, 3ª semana de maio de 1982, p. 5).