• Nenhum resultado encontrado

Autos de processos (inquisitoriais e judiciários), registros cartoriais e eclesiásticos, passando pelos inquéritos policiais, prontuários de instituições manicomiais e médicas, estes têm se constituído as fontes privilegiadas, na busca do resgate dos modos de agir e representar o mundo dos segmentos subalternos, reflexo de sua oralidade característica. Também para o resgate das formas de viver dos “homossexuais” brasileiros fora da ótica médica, tem-se recorrido a fontes semelhantes. Os acervos audiovisuais, literários, teatrais, jornalísticos, iconográficos e pessoais – como cartas e diários – igualmente são fontes privilegiadas.

A sociologia, a história e a etnografia têm produzido um número crescente de trabalhos. Precursoras foram as investigações documentando a presença de sodomitas de ambos os sexos no

Brasil Colonial, campo onde se destacam o antropólogo Luiz Mott e os historiadores Ronaldo Vainfas e Ligia Bellini, o primeiro com extensa produção bibliográfica sobre o tema.

Se Bellini examina, através dos processos abertos pelo Santo Ofício contra mulheres acusadas de sodomia (práticas eróticas entre si) (Bellini, 1989), Carrara utiliza a mesma tipologia de fontes para examinar a vitimização de homossexuais no Rio de Janeiro nos anos de 1980 a partir de registros de ocorrência em delegacias, inquéritos criminais e processos judiciais (Carrara e Vianna, 2003).

Resgatando a sociabilidade homossexual masculina média paulistana a partir do campo sociológico e da metodologia da observação participante, temos a monografia de especialização produzida por Barbosa da Silva em fins dos anos de 1950 e finalmente tornada pública (Green e Trindade, 2005). Nesse trabalho pioneiro, Barbosa opera uma ruptura com o discurso patologizante. Analisando as interações entre homossexuais masculinos na capital paulista, advoga-lhes a capacidade de desenvolver um modo de vida próprio, gerador de uma cultura diferenciada. Tais conclusões apenas seriam desenvolvidas nas ciências sociais brasileiras, a partir da segunda metade dos anos de 1970. Para a metrópole carioca, Guimarães investiga, também através da observação participante e do depoimento oral, os estilos de vida de uma rede de “homossexuais” de classe média alta residente na zona sul do Rio de Janeiro, muitos emigrados de Belo Horizonte em busca de condições de vida social mais anônima, menos repressora (Guimarães, 1977/2004). Sua base teórica é a noção de que a construção social do indivíduo (suas identidades social e sexual) se dá de forma processual, a partir dos papéis que desempenham nas suas múltiplas interações sociais. Justifica sua opção pela categoria analítica da rede social pelo fato de abarcar um complexo de relações finitas e diferenciadas quanto à intensidade, sem que seus integrantes estejam organizados em torno de projeto comum, como nos grupos, mas sim em torno de um significado. O significado principal da rede se encontra nos vínculos de amizade que são estabelecidos a partir do processo de identificação desencadeado pela descoberta “de identidades sociossexuais semelhantes.” Esses vínculos tecem uma estrutura de alianças atravessadas por disputas de poder e sentido de status e prestígio no interior da rede (Guimarães, 2004, 21-24).

Também a partir da observação participante, Rios examina, lastreado na teoria dos roteiros sexuais de Gagnon e Simon, geração seguinte à dos interacionistas de Chicago, os modos de interação social

e sexual da comunidade entendida masculina jovem no centro da cidade do Rio de Janeiro (Rios, 2004, 100-113).

Cuidando de uma prática peculiar presente na subcultura dos travestis prostitutos33, destaco o

trabalho elaborado sobre o contexto da região do Pelourinho, em Salvador, Bahia, nos anos oitenta. Trata-se de pesquisa etnográfica que examina mecanismo de resistência praticado pelos travestis contra seus próprios corpos, como estratégia de escape às prisões arbitrárias, humilhações, trabalhos forçados e abusos sexuais a que eram submetidos pelas forças policiais: as automutilações de pulsos, braços e pescoço, sejam com gilete ou caco de vidro (Mott e Assunção, 1981). Penso que, por mais desagradável que possa se afigurar para alguns recordar essa prática tão brutal, é necessário integrá-la ao mosaico de ardis o mais variado e insuspeito que os segmentos marginalizados tiveram que elaborar, como resposta aos contextos opressivos. Essa estratégia, como o próprio texto documenta, era praticada pelas mulheres prostitutas quando submetidas às mesmas condições. Embora não disponha de registros sobre o assunto, penso ser possível supor que, no passado, talvez fossem elas, nos espaços das delegacias, submetidas ao mesmo elenco de sevícias que a bibliografia registra para os “homossexuais” que incorporavam o gênero feminino34.

Ainda sobre o mesmo universo, temos a etnografia pioneira de Hélio R. S. Silva para o contexto da Lapa, no Rio de Janeiro (Silva, 1993) e a de Benedetti, para o do Rio Grande do Sul (Benedetti, 2005). Ambas, ainda que de passagem, fazem referências a essas mesmas práticas automutiladoras. Para a transexualidade de mulher para homem, tema ainda bastante raro na bibliografia, há o depoimento pessoal publicado em 1984 (Nery, 1984).

Outro que registra essas práticas automutiladoras é Parker, em sua detalhada investigação sobre “as culturas do desejo” masculinas no Brasil (Parker, 2002, 114). Este mesmo autor é também responsável por extensa pesquisa (em fontes documentais e sobretudo orais) acerca dos modos de estruturação dos papéis sociais e sexuais de gênero em nosso país (Parker, 1991). Sustentado em ampla gama de informantes, Parker demonstra os valores e representações que organizam nossas categorias sócio-sexuais, como elas se organizam constrativa e, sobretudo, ambígua e contraditoriamente. Os modos e padrões distintos de

33 Tais expressões identitárias eram referidas no masculino nos anos de 1980.

34 Os travestis integravam a categoria dos “homossexuais”, ainda que merecendo resistência de setores das

homossexualidades. Importante ressaltar, porém, os que haviam conquistado reconhecimento no cenário artístico da legitimadora zona sul carioca não eram alvo da mesma desqualificação que os travestis “de pista” (profissionais do sexo).

socialização segundo o sexo também são abordados, destacando a matriz de poder presente nessas estruturações, que marca nossa linguagem verbal e corporal e todas as nossas formas de interação com um profundo caráter de dominação. Parker demonstra ainda como tais estruturas permanecem, seja nas comunidades mais “tradicionais” (rurais, nortistas e nordestinas e “populares”), seja “entre os mais modernizados segmentos da sociedade brasileira, as classes média e alta, muito bem educadas”, ainda que esses últimos tendam a um maior questionamento e repúdio de tal estruturação (Parker, 1991, 106).

Destacando a importância de situar historicamente esse nosso sistema de organização da sexualidade e da interação social, ressalta igualmente a relevância de “se tentar ligar esse sistema à estrutura mais geral dos significados sexuais na vida brasileira”, ao invés de compreender a estruturação dos gêneros como um fim em si mesmo. Assim, ao lado das permanências, Parker explicita como junto a elas coexistem as possibilidades alternativas que emergiram na sociedade brasileira nos últimos anos, dando ensejo à organização de sistemas ou subsistemas de sexo (desejo erótico) que se interligam, interceptam e mesmo modificam o tradicional sistema de hierarquia entre os gêneros (Parker, 1991).

Neste sucinto panorama bibliográfico não poderia deixar de mencionar Devassos no Paraíso, de João Silvério Trevisan. Co-fundador do Grupo Somos/SP e do jornal Lampião da Esquina – os dois marcos fundadores do Movimento Homossexual Brasileiro –, do qual participava tanto através das matérias que escreveu, quanto por meio do Conselho Editorial. Também pioneiro, o trabalho de Trevisan aborda as formas de expressão cultural homoerótica através de vasta tipologia de fontes, abordadas sob a ótica jornalística. De músicas, cantores e peças de teatro, passando por filmes e artes plásticas – do traço suave de Darcy Penteado ao denso dos quadrinhos de Angeli –, elabora rico painel das distintas subculturas produzidas pelos “homossexuais”, das representações sociais sobre tais agentes e das práticas discriminatórias e repressoras desenvolvidas pela parcela hegemônica da sociedade (heterossexista e androcêntrica). Neste livro, Trevisan também aborda questões sobre identidade, movimento homossexual e mecanismos de segregação construídos a partir da patologização da homossexualidade – mesmo sem contar com qualquer dispositivo jurídico que proibisse expressões da homoafetividade, o Brasil manteve em confinamento psiquiátrico ou carcerário inúmeros “homossexuais”, sob a acusação de serem psicopatas, delinqüentes, amorais, sádicos e viciados. De forma inaugural, descreve as práticas segregacionistas do Manicômio Judiciário, a partir de ampla bibliografia onde figuram, entre outros, desde os baluartes do lombrosianismo como Leonídio

Ribeiro, Viveiros de Castro e Aldo Sinisgalli, aos representantes da antropologia contemporânea, como o já referido Luís Mott e Peter Fry. A contribuição de Trevisan é igualmente relevante na recuperação e divulgação da história das práticas sexuais (homo e hetero) no Brasil, desde o século XVI (Trevisan, 1986 e 2000).

Ampliando e aprofundando temas abordados por Trevisan, James Green, também ex-integrante do

Somos/SP e atualmente diretor do Centro de Estudos Latino Americanos da Brown University,

publica nos EUA, em 1999, sua pesquisa para o doutoramento em História. Green, nesse trabalho, aborda as formas de interação, recepção e expressão cultural dos “homossexuais” masculinos, pertencentes aos extratos médios e urbanos paulistanos e cariocas (Green, 2000). Trabalha igualmente com variada e extensa tipologia de fontes, inclusive a ferramenta do depoimento oral, que utiliza supletivamente.

Fora do eixo Rio-São Paulo, temos a comunicação de pesquisa em andamento sobre as formas e os espaços de interação dos “homossexuais” masculinos integrantes dos estratos médios/altos urbanos Belo Horizonte nos anos de 1960, a partir de um jornal local, com abordagem também pautada na noção de roteirização de Simon e Gagnon (Morando, 2006). A investigação em curso trará novas contribuições ao esforço de integração desses atores na História. Um dos aspectos relevantes constitui o fato de que os primeiros espaços comerciais destinados à sociabilidade dos “homossexuais” eram de propriedade de mulheres, o que reinstaura a problematização sobre o não protagonismo, e a domesticidade que ainda lhes é atribuída nesses contextos.

Também o campo dos estudos sobre religiosidade tem merecido investigações (ver:. Natividade, 2005; 2004; 2003). Destaco aquelas sobre os cultos afro-brasileiros, mais ricas, do meu ponto de vista (Landes, 2002; Fry, 1982; Birman, 1995; Rios, 2004; Moutinho, 2005). Têm a relevância de demonstrar a complexidade das interações, tanto entre “homossexuais” quanto entre “homossexuais” e “heterossexuais”, marcadas que são por formas peculiares de organização, integração e adaptação dos sistemas de sexo, gênero e orientação sexual às transversalidades de raça/etnia, nacionalidade, poder/prestígio/hierarquia e criminalidade.

Desse painel da produção bibliográfica brasileira sobre homossexualidade fora da superada visão patologizante, observo que o objeto de investigação privilegiado tem se mantido no universo masculino, embora o movimento ascendente nas pesquisas sobre “lésbicas”, com tendência de concentração principalmente no campo do reconhecimento de direitos (filiação, conjugalidade). No

recorte de classe/posição há também crescente tematização dos segmentos jovens e “populares”. Na vertente geração tem início os estudos, que merecem todo incentivo, tendo em vista o processo de envelhecimento da população global do país.