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experiências terapêuticas tão distintas não foram recolhidas ao acaso: além de propiciarem uma visualização da diversidade da gestão terapêutica no âmbito da rede terapêutica alternativa, as experiências apresentadas vêm compor as possibilidades-limite dessa rede.

esses dois estudos de caso permitem compreender as fronteiras da rede terapêutica alternativa e, desse modo, localizar a especificidade das terapêuticas alternativas, distinguindo-as da medicina popular e das racionalidades médicas alternativas (homeopatia, medicina chinesa e medicina ayurvédica). Como se pode ver no esquema 7:

Esquema 7 - Rede terapêutica alternativa

a rede terapêutica alternativa apresenta uma diversidade de prá- ticas terapêuticas que se encontrariam situadas numa região fronteiriça entre duas possibilidades distintas: de um lado, a medicina popular e, de outro, as racionalidades médicas alternativas. a dinâmica que

caracteriza essa rede compreende uma relativa homogeneidade discur- siva, com possibilidades diversas de elaboração prática. os dois casos apresentados, ao mesmo tempo em que contrastam com a maioria dos espaços terapêuticos, situam-se em cada uma das tênues fronteiras que, como recurso analítico, procurei delimitar.

o primeiro caso situa-se num dos extremos, a medida que procura se distinguir dos demais espaços terapêuticos. veiculando uma proposta de trabalho que tende a desqualificar a forma como a questão terapêu- tica vem se desenvolvendo no âmbito da rede e apresentando critérios rígidos de seleção dos profissionais, esse espaço apresenta um grau máximo de “fechamento”, contrastando com a dinâmica de circulação verificada nos demais espaços. Constituindo o “carro-chefe” do espaço, a terapia veiculada apresenta um grau de “ortodoxia” que se distancia das técnicas e práticas terapêuticas características da rede. trata-se de uma terapia “psicológica”, ministrada em vários países e sob a coordenação do seu fundador, na qual qualquer mudança só pode ser feita mediante sua autorização prévia. a própria formação dos professores da terapia é feita em centros especializados, sob a supervisão de profissionais habilitados. os professores que atualmente desenvolvem esta terapia devem seguir o procedimento detalhadamente apresentado no Guia do

professor, desenvolvido pela “matriz” californiana.

o trabalho desenvolvido no espaço “B” situa-se na outra extremi- dade do espectro de práticas terapêuticas. tangenciando o universo da medicina popular e da cura religiosa, a senhora das “gotinhas” apresenta um inegável “carisma”, que se articula ao tratamento ali realizado. numa primeira aproximação, tem-se a impressão de que a importância da sua figura orienta todo o processo de cura, mas a medida que conhecemos essa terapia, outros elementos ganham relevância em detrimento da crença nos poderes extraordinários da sua pessoa. a atuação do medi- camento encontra afinidade com o referencial holístico de fundo, que atravessa a rede terapêutica alternativa, como acentuado no relato de seu filho:

o remédio, ele vai equilibrar, vai energizar o seu organismo. Porque justamente o desequilíbrio causa uma mudança de fre- quência. Quando ocorre essa mudança de frequência, então já desintonizou do cérebro. É... agora é por conta própria. É um tipo de reação atômica, entendeu? aquele átomo começa a vibrar, vai, vai pulando de camada e vai embora. então, que que esse remédio faz? o remédio, ele equilibra o organismo e energiza o organismo do paciente. então, ele não mata a célula cancerosa. o que ele faz... ele equilibra, energizando, e o próprio organismo vai se livrar da doença. É assim o funcionamento, é assim que a gente tem conseguido as curas.

Como podemos observar, a explicação para a eficácia do medica- mento incorpora todos os referenciais comuns aos demais terapeutas. as categorias de “energia”, “equilibrio/desequilíbrio” e “frequência/ vibração” comparecem como referências centrais. a compreensão da dimensão catalisadora das “gotinhas”, habilitando o organismo a re- compor seu próprio “equilíbrio natural” – na forma de uma “autocura” –, são indicativas das afinidades que percorrem as diferentes práticas terapêuticas. Como já indiquei anteriormente, a intervenção carismá- tica da senhora que manipula as “gotinhas” se dá no próprio processo de fabricação do medicamento, encontrando-se, portanto, incorporada nele. Uma vez “materializada” em cada “gotinha”, essas adquirem uma eficácia em relação à sua vontade. além disso, a correta administração do medicamento, aliada a um esforço pessoal do paciente, constituem fatores centrais para a obtenção da cura. verifica-se aqui uma ambi- valência entre a dimensão milagrosa das “gotinhas” e sua formulação medicamentosa: embora incorporem o “poder curativo” da senhora, elas possuem uma ação independente de sua vontade e da do paciente.

os dois estudos de caso apresentados, a medida que constituem tipos-limite, são indicativos das dificuldades em se proceder a uma delimitação rígida das fronteiras da rede. de um lado, o espaço “a”, que embora apresente as características terapêuticas veiculadas na rede, manifesta uma profunda tensão na sua identificação com esta,

procurando se distanciar de uma possível “rotulação” como um espaço terapêutico como os demais. de outro, o espaço “B”, que embora pareça se aproximar do tipo de “cura milagrosa”, dele se distancia por conferir autonomia à eficácia do medicamento fitoterápico ali produzido.

apesar de se localizarem nos extremos da rede, essas duas ex- periências possuem um ponto em comum, que as afastam dos demais espaços da rede: ambos os casos assentam-se na “revelação” como ex- plicação de origem. o seu comum fundamento carismático, no entanto, teve diferentes desdobramentos quanto à sua possível rotinização. até o final desta pesquisa, ambos os fundadores encontravam-se vivos e controlando suas respectivas terapias, mas manifestavam atitudes dife- rentes, no que diz respeito à continuidade de seu trabalho. enquanto, no primeiro caso, o alfaiate transferiu a outros a administração da terapia, procurando assegurar a sua “pureza” através do controle do método e de sua ortodoxia, a continuidade do trabalho das “gotinhas” só pode ser feita mediante uma “transferência de carisma”, um processo que foge ao controle da fundadora e para o qual ela própria não tem expectativas.

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