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dois processos comparecem de forma articulada na experiência do terapeuta, mesclando-se os critérios implicados na demarcação de fronteiras extra e intragrupo. assim, critérios acionados como deline- adores de fronteiras do trabalho terapêutico entre esses profissionais e os “de fora” podem também ser utilizados para distinguir os profissio- nais intrarrede. essa dinâmica de reapropriação e ressignificação dos critérios de diferenciação indica, não somente uma concorrência entre concepções de legitimidade do trabalho terapêutico, mas também apon- ta para uma fluidez dessas concepções e das identidades terapêuticas. o delineamento das identidades terapêuticas implica distan- ciamento e proximidade, tanto entre os “de dentro” como com os “de fora”, compondo uma rede acentuadamente heterogênea de experiên- cias profissionais. dessa forma, podemos encontrar graus variáveis de afinidade entre profissionais pertencentes à rede, ao mesmo tempo em que também podemos observar relações de maior ou menor afinidade entre terapeutas não médicos e outros profissionais.

todas essas dificuldades de delineamento levaram-me a problema- tizar a operacionalidade da noção de campo, tal como foi desenvolvida por Bourdieu, bem como todos os conceitos que se encontram implica- dos nessa noção mais geral. talvez porque esse segmento não possa ser caracterizado como um campo estruturado de posições, com critérios autônomos de construção de legitimidade. talvez, ainda, porque a noção de autonomia do campo também não auxilie muito na compreensão das múltiplas influências extrarrede, que interagem constantemente nas trajetórias de vida desses profissionais. a noção de rede, nesse contexto, parece ser mais apropriada para a compreensão dessa dinâmica. a partir da problematização dessa perspectiva de análise, uma possibilidade de aproximação reside no conceito de experiência social.

Como esclarece dubet (1994), a experiência social é uma com- binatória de orientações variadas, construída ao longo da trajetória do agente, na qual inexistiria um núcleo principal, informando, em última análise, o sentido da ação social. a compreensão da experiência social deve ser feita segundo três operações intelectuais distintas: no primeiro nível, a decomposição de caráter analítico, onde comparecem as diferentes lógicas de ação em estado “puro”; o segundo movimento procura compreender a forma como se articulam essas lógicas, no âm- bito da situação vivenciada concretamente pelo ator; por fim, como última operação intelectual, o objetivo seria o de compreender as diferentes lógicas do sistema social a partir do feedback da experiência dos agentes.

a inexistência de um núcleo principal de sentido que informe a ação social permite evitar os riscos de uma interpretação que priorize a necessidade de uma coerência interna da ação, que tenderia a enfocar todas as incongruências como desvios ou bricolagens mal-articuladas de um comportamento típico. Por outro lado, a medida que centro minha análise na perspectiva da experiência social, procuro compreender como se articulam internamente linhas de ação diferentes e até mesmo con- traditórias que, no âmbito da experiência do agente, não se apresentam como um produto acabado, mas sim em constante redefinição.

Parece-me que a compreensão das diferentes concepções tera- pêuticas dessa rede devem ser analisadas à luz das trajetórias desses agentes, apontando para uma investigação de uma linha de temporali- dade que envolve sua história de vida e a forma de sua inserção na rede terapêutica alternativa.

ao longo das entrevistas, logo me dei conta da heterogeneidade de concepções do que venha a ser a prática terapêutica. Por outro lado, quando, ao longo da conversa, eu pedia ao entrevistado para retraçar o seu histórico de vida, o ponto que atraía maior atenção dizia respeito à “passagem” entre o “antes” e o “depois” de ser terapeuta: fosse como uma ruptura, fosse como uma continuidade, essa passagem e os acon- tecimentos anteriores a ela eram reinterpretados a partir da própria esfera de sentido terapêutica. o “depois” dessa passagem aparece nas

entrevistas como atemporal, como um ponto fixo, a partir do qual é relida toda a vida anterior. Pude também perceber que a construção de sua identidade profissional se encontrava interligada à forma de entrada na rede terapêutica alternativa, onde compareciam graus variáveis de ruptura e continuidade.

a partir de uma avaliação das diferentes formas de inserção na rede, procurei reunir as muitas variantes, com vistas à elaboração um quadro analítico, onde comparecem quatro possibilidades básicas de “entrada”:

Esquema 3 - Formas de entrada na rede terapêutica alternativa

este esquema anterior tem como objetivo principal chamar a atenção para as várias possibilidades de entrada na rede, estabelecidas a partir de quatro conjuntos de possibilidades recorrentes, sem des- considerar, no entanto, as inúmeras interpenetrações entre as posições acima. as quatro formas de entrada aparecem, do ponto de vista analí- tico, como pontos de inflexão entre uma e outra estratégia de entrada e não como posições rígidas e estanques, sem intercomunicação. no âmbito da singularidade da experiência pessoal, muitas vezes essas posições aparecem misturadas; outros terapeutas, no entanto, relatam sua experiência de entrada na rede de uma forma muito aproximada a uma das posições destacadas.

Passo agora a descrever as características de cada um desses conjuntos:

a. redefinição profissional “simpatizante” – essa forma de en- trada na rede implica um menor grau de ruptura em relação à experiência anterior, seja ela estritamente profissional ou existencial. trata-se, na grande maioria dos casos, de profis- sionais que já se identificavam como terapeutas, embora não alternativos. são, em geral, psicólogos, fisioterapeutas e de outras áreas afins que, por uma questão de redirecionamento profissional aliado a uma avaliação das possibilidades ofere- cidas pelo mercado, acabaram se alinhando nessa direção. É preciso deixar claro, no entanto, que mesmo nesse caso, a opção não é compreendida apenas como uma estratégia “calculada” de inserção na rede, visto que para explicá-la tam- bém lançam mão dos valores característicos desse universo. o processo de assimilação desses valores, no âmbito de sua experiência de vida, é que se deu de forma diferenciada. a utilização do termo “simpatizante” procura dar conta desse percurso: trata-se de uma assimilação gradual de novas con- cepções terapêuticas, em decorrência de certa insatisfação com o referencial terapêutico anterior, no qual esses profis- sionais se encontravam inscritos.

b. transformação interna gradual – a segunda forma pode ser caracterizada por um aprofundamento do sentimento de insatisfação profissional, tal como ele foi apresentado no primeiro item. também aqui a maior parte dos profissionais que experimentam essa forma de entrada são aqueles que já trabalhavam anteriormente com terapias, embora também possa ser aqui incluída uma variedade maior de trajetórias profissionais anteriores. a diferença em relação à posição anterior reside no fato de que, nesse caso, a adesão aos valores de uma concepção “holística” da saúde parece se dar ante- riormente ao redirecionamento profissional. a insatisfação costuma ser vivenciada não apenas na forma de um “mal- estar” profissional, mas também existencial, que culmina com a busca de novas perspectivas de trabalho terapêutico.

c. Conversão “doce” – a terceira forma de inserção na rede apresenta uma ruptura acentuada em relação aos dois tipos anteriores. a heterogeneidade de trajetórias profissionais an- teriores constitui uma característica não somente dessa forma de entrada, mas também da conversão hard, pois podemos en- contrar profissionais liberais, donas de casa, artistas etc. nesse tipo encontra-se um público extremamente variado, quase sempre com experiências anteriores na nebulosa místico-eso- térica, mas que, ao longo de seu trabalho de desenvolvimento espiritual, acabou direcionando seu autoaperfeiçoamento para a dimensão terapêutica. essa redefinição de expectativas e de estilo de vida pode oscilar entre a descoberta de uma voca- ção propriamente terapêutica ou o aperfeiçoamento de uma habilidade terapêutica, que geralmente é experimentada ao longo de sua passagem anterior pelas diferentes práticas que fazem parte da nebulosa místico-esotérica.

d. Conversão hard – essa última forma de entrada caracteriza-se por um grau máximo de ruptura com o passado. Pode-se falar aqui claramente entre um “antes” e um “depois”: uma ruptura vivenciada de forma profunda, inesperada e involuntária. Como na conversão doce, a formação profissional anterior é bastante heterogênea. terapeutas que vivenciaram essa forma de entrada possuem, no entanto, uma diferença fundamental: sua entrada na rede terapêutica alternativa não costuma ser mediada por uma passagem anterior pela nebulosa místico- esotérica. a “crise de vida” costuma ser autojustificada através das experiências religiosas, cuja ruptura se dá de uma forma abrupta, através de algum acontecimento extraordinário, comumente interpretado como “extrassensorial” ou indica- dor de algum grau de paranormalidade, no qual lhe fogem o controle e a compreensão. os relatos desses profissionais envolvem experiências variadas, tais como fortes dores de ca- beça, visões, revelações etc. são todos fenômenos considera- dos inexplicáveis pelos agentes, na época do seu surgimento,

para os quais eles buscarão um sentido em algum trabalho de desenvolvimento espiritual.