• Nenhum resultado encontrado

À medida que fui me familiarizando com as representações e práticas mobilizadas pelos terapeutas não médicos, duas características puderam ser facilmente identificadas. a primeira delas diz respeito à enorme variedade de técnicas terapêuticas utilizadas, comportando uma multiplicidade de arranjos individuais; a segunda aponta uma unidade discursiva que perpassa e transcende a heterogeneidade das técnicas utilizadas, a despeito da multiplicidade de combinatórias possíveis entre essas técnicas.24 a multiplicidade de experiências terapêuticas

encontra-se reunida num discurso organizado em torno de uma unidade difusa, que compreende vários níveis de mediação do referencial mais amplo, holístico.

a construção de uma perspectiva holística do processo terapêu- tico e, num plano mais geral, de uma postura que privilegia a saúde global, mais do que configurar um repertório organizado de orientações e que seria partilhado – em maior ou menor grau – pelo conjunto dos profissionais, funciona antes como um manifesto de princípios, deli- mitador de fronteiras em relação aos de fora, de uma forma bastante vaga e indiscriminada. do ponto de vista empírico, é extenso o espec- tro de profissionais compreendidos nessa categoria, mas este pode ser demarcado, em suas fronteiras, por dois grupos principais: os médicos convencionais e os especialistas religiosos da cura.

23 Este último aspecto será aprofundado no capítulo Terapêutica como finalidade.

24 Parece-me que o nível em que se constrói essa unidade é da mesma natureza que aquele apresentado por Soares (1994), ao procurar caracterizar a cosmologia do errante da nova era enquanto uma matriz fluida e

a primeira demarcação observada – a que comparece em cores fortes e de forma quase que espontânea no discurso dos mais diferen- tes terapeutas não médicos – refere-se aos médicos convencionais ou alopatas, considerados profissionais da saúde (termo costumeiramente associado a uma dimensão pejorativa, que evidencia uma transação comercial no tratamento), onde o interesse privado sobrepor-se-ia à própria natureza do trabalho de cura, que é visto como uma doação pe- los terapeutas não médicos. assim, a ênfase na dimensão propriamente técnica – no sentido da importância atribuída à eficácia das técnicas terapêuticas utilizadas – não parece esgotar a amplitude do trabalho desenvolvido em suas correlações mais ou menos explícitas, mas sempre desejadas, de crescimento ou aperfeiçoamento pessoal do paciente. dessa forma, o trabalho terapêutico, embora pretenda proporcionar um bem-estar decorrente de uma aplicação criteriosa e sistemática de um conjunto de técnicas, sempre remete a uma experiência mais pro- funda, ampla e difusa, do que meramente a um bem-estar decorrente da resolução de um problema de saúde específico. essa é uma perspectiva que – pelo menos potencialmente – pode ser encontrada no âmbito dessa prática terapêutica.

refletindo esse projeto mais amplo, surge frequentemente uma crítica operacional à medicina oficial, considerando-a unilateral e em- pobrecedora, pois invibializaria a conquista desse bem-estar integral. o artigo A doença como caminho do auto-conhecimento, publicado na Univer- sus, em setembro de 1995, denuncia a abordagem tecnicista da doença por parte da medicina convencional, apontando duas consequências que seriam limitadoras de uma compreensão da cura: a ausência de uma visão de totalidade e a percepção da doença como algo vindo de fora ou como imperfeição da natureza. o tom do artigo sugere uma crítica à medicina oficial, não pelo fato dela ser científica, mas por ser pouco científica. isso se evidencia principalmente quando o autor formula a seguinte questão: esta medicina reflete o avanço atual da ciência?

a segunda demarcação de fronteira refere-se a um segundo grupo, muito mais difuso que o primeiro, mas que também pode ser identifica- do, ainda que de forma menos explícita. esse grupo costuma ser nomea-

do pelos terapeutas não médicos como o dos curandeiros ou curadores, noções construídas de forma ambígua e que, no limite, podem evocar uma acusação de charlatanismo. nesta noção podem ser agrupados os mais diferentes agentes, profissionais ou não, inscritos no âmbito da gestão religiosa da cura: um espectro que compreende milagreiros carismáticos, praticantes de curas espirituais, de diferentes tradições religiosas – mais especificamente cultos afro-brasileiros, espiritismo e movimento carismático católico –, bem como curandeiros tradicio- nais ligados à prática fitoterápica que, com suas garrafadas (remédios feitos à base de diferentes ervas), podem ser facilmente encontrados nas feiras de rua espalhadas pela cidade.25

o essencial na diferenciação é que ela não aponta para grupos específicos, mas tende a desqualificar num mesmo universo todo um conjunto de práticas enquanto crendices, mesmo técnicas adotadas por terapeutas não médicos, quando se considera que sua utilização não é criteriosa e controlada.26 tratando de uma técnica específica, no artigo

A força da magnetoterapia... a cura através dos ímãs (1996), encontra-se uma

crítica feroz ao uso indiscriminado das terapias alternativas em geral:

devem ser usadas conscientemente, após terem sido objeto de reflexão, estudo e comprovação de resultados práticos. as terapias alternativas devem ser bem usadas para não caírem em curandeirismos absurdos ou métodos destituídos de fundamentos práticos ou científicos.

em outro artigo, publicado em março de 1995 no jornal Home-

opatia & Vida sobre a cura prãnica, verifica-se o mesmo interesse de

desvinculação com quaisquer procedimentos que possam qualificá-la como mágica: “a cura através das mãos pode ser feita com simplicidade e não há nada de místico ou sobrenatural nela”.

na busca de uma delimitação de competências específicas, pare- ce-me que a utilização da categoria “holístico” constitui um referencial unificador, ressaltando-se também o seu aspecto contrastivo, seja em

25 Para um estudo de caso da variedade de agentes curadores operando num mesmo espaço social e seu intricado relacionamento com a medicina oficial em Nova Iguaçu, Estado do Rio de Janeiro, ver Loyola (1984).

relação à medicina convencional, seja em relação ao curandeirismo. isso indica um movimento de delimitação de fronteiras em relação a um ou outro grupo considerado concorrente. no entanto, o conteúdo, de senti- do genérico, desse holismo, bem como sua maior ou menor explicitação no discurso, parece indicar que os terapeutas não médicos reelaboram esse referencial de formas variadas. sua fluidez é característica da ne- cessidade de se ressaltarem alguns traços, minimizar outros, em função de uma ou outra perspectiva com a qual se deseja contrastar.