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Alguns estudos sobre vias de transmissão e hospedeiros alternativos

No documento Reflexões sobre o percurso profissional (páginas 64-73)

DR RAINER VAN AERSSEN

SEROTIPO 8 DO VÍRUS DA LÍNGUA AZUL

2. Hospedeiros e transmissão do vírus da língua azul

2.3. Alguns estudos sobre vias de transmissão e hospedeiros alternativos

Nos finais de 1992 a administração inadvertida de vacinas contaminadas com o BTV-11 a cadelas no final da gestação resultou em abortos e mortes. O exame pós-morte destes abortos e cadáveres revelou a presença de vasculite multifocal e pneumonia13.

A evidência de infecção natural por este vírus foi depois demonstrada em carnívoros africanos, supondo-se que a infecção possa ter ocorrido por ingestão de carne ou órgãos de presas ruminantes infectadas com BTV1.

Durante o pico de BT na Bélgica em Setembro de 2007, dois Linces da Eurásia morreram num zoo desse país. Ambos os animais tinham sido alimentados com fetos e nados- vivos de ruminantes com origem nas explorações pecuárias envolventes, onde tinham sido confirmados casos de BT. Num dos linces foi isolado o BTV-8 mas ambos possuíam anticorpos contra este vírus, evidências de vasculite e pneumonia19.

Estes são três exemplos de casos que fazem crer que a lista de espécies susceptíveis à BT possa ser mais ampla e incluir espécies não ruminantes, contudo a possibilidade destas representarem novas fontes de infecção está por determinar. A transmissão por via oral

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também aparece aqui de modo revolucionário, mas ainda existem evidências de outra forma de transmissão alternativa ao vector culicóide: a transmissão transplacentária.

Até ao Inverno de 2007-2008 a Irlanda do Norte foi considerada livre de BTV, contudo nesse mesmo Inverno, época não sazonal do vector culicóide, importou vinte novilhas prenhas da Holanda, das quais oito eram seropositivos para o BTV-8 e PCR negativas para o RNA viral. Duas dessas novilhas seropositivas pariram três vitelos virémicos ao nascimento (PCR e isolamento viral positivos), o que revela a possibilidade de transmissão in utero. Posteriormente dois bovinos que contactaram directamente com estas novilhas na Irlanda do Norte apareceram também infectados. Neste caso os autores sugerem que a transmissão tenha ocorrido por contacto directo, dando como exemplo a ingestão das placentas infectadas31.

Ainda durante o mesmo Inverno a transmissão transplacentária de BTV-8 foi evidente na Bélgica, que registou um número elevado de vitelos e cordeiros recém-nascidos ou nados- mortos com lesões do sistema nervoso central. Ao exame pós-morte estas foram descritas como tratando-se de hidrocefalia, hidranencefalia e/ ou preenchimento do cerebelo com estruturas quísticas, geralmente com preservação do tronco cerebral (figura 4) 8. O exame histológico do parênquima cerebral remanescente demonstrou severa atrofia do tecido neuronal que pôde ser explicada por destruição das células precursoras pelo BTV e/ ou por vasculite, também presente. Nestes cadáveres foi possível detectar RNA viral de BTV-8 por RT-PCR, com maior taxa de sucesso nos tecidos cerebrais do que nas amostras de sangue ou de baço49.

Figura 4 – Imagem do exame pós-morte de um vitelo com 48 horas de idade, onde o espaço que deveria estar ocupado pelo hemisférios cerebrais e cerebelo estava preenchido por estruturas quísticas de parede fina e conteúdo líquido8.

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Estes dois acontecimentos podem ser explicados a partir do que se conhece para os ovinos, onde a passagem transplacentária do BTV provoca sinais clínicos variados dependendo do período de gestação em que ocorre a infecção. Assim, quando a infecção ocorre no primeiro terço da gestação é possível que se verifique morte embrionária ou fetal, mas é necessário ter em conta que pelo menos parte dela pode ser inespecífica e uma consequência directa do stress relacionado com a infecção na ovelha. A infecção no segundo terço da gestação, quando o sistema imunitário do feto ainda não está completamente desenvolvido, pode provocar virémia com duração até 2 meses depois do nascimento dos cordeiros e/ ou anomalias congénitas como hidranencefalia e displasia da retina. Quando a infecção ocorre durante o último terço da gestação o feto desenvolve uma resposta imune capaz de eliminar a infecção e por isso não sofre alterações14,26.

2.4. Overwintering

Chama-se overwintering à capacidade que o BTV tem de permanecer em áreas sem culicóides adultos durante a época fria, durante um período superior aos 60 dias do período de virémia dos vertebrados. Este fenómeno foi descrito várias vezes e parece ter ocorrido no Norte da Europa durante as epidemias dos últimos 2 anos50. A figura 5 representa de modo esquemático as várias hipóteses que têm sido propostas para explicar o overwintering.

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A existência de infecção transovárica nos culicóides poderia explicar o overwintering, pois nas regiões frias esta espécie sobrevive na forma de larvas. No entanto os estudos desenvolvidos nesse sentido tiveram resultados negativos consistentes que fazem afastar essa teoria28.

Outra hipótese que se põe é a da sazonalidade dos culicóides não ser tão marcada. De facto, como foi referido no ponto 2.1., em Portugal observaram-se vectores de BT durante todo o ano, ainda que com maior abundância no Verão. Com as alterações climáticas verificadas nos últimos anos, o Norte da Europa também já não tem Invernos tão rigorosos e curiosamente o Inverno de 2006-2007 foi o mais suave registado na Europa. Além disso, se repararmos que durante o Inverno os pavilhões das explorações de ruminantes têm temperaturas amenas, é fácil acreditar que uma pequena fracção da população de vectores culicóides possa sobreviver à época fria. Neste caso, a explicação do reduzido número de casos de BT reportados durante o Inverno poderá residir no reduzido número de vectores, na redução da vigilância nesta época do ano e há percentagem significativa de infecções subclínicas que podem passam despercebidas50.

Existem algumas evidências de que o BTV possa provocar infecção crónica de ruminantes, pois uma parte dos bovinos apresenta um período de virémia superior aos 60 dias43. No caso dos ovinos, um estudo levado a cabo por Takamatsu et al. (2003) parece indicar a existência de linfócitos T γδ persistentemente infectados. O mesmo autor levanta também a possibilidade de latência do BTV como forma de persistência nos ruminantes, uma vez que conseguiu isolar BTV na pele de ovinos aparentemente recuperados da infecção ocorrida 2 meses antes por picada de Culicoides spp45. Ainda que outros estudos não tenham conseguido reproduzir estes resultados, a hipótese de latência reactivada por um factor sazonal justificaria a infecção atempada para a época da nova geração de vectores artrópodes50.

Outra forma de permanência do BTV na população de hospedeiros ruminantes é através da transmissão transplacentária desenvolvida no ponto 2.3.

A existência de uma população de hospedeiros com períodos de virémia mais longos que o dos bovinos é também de ponderar, e como possíveis exemplos estão os ruminantes selvagens da Europa que não têm sido devidamente estudados50 e/ ou os hospedeiros não ruminantes referidos no ponto 2.3.

Para concluir, todas estas hipóteses parecem prováveis excepto a transmissão transovárica nos culicóides, o que faz supor que o overwintering do BTV se deva provavelmente a uma associação de todas estas hipóteses.

68 3. Sinais clínicos de língua azul em bovinos

Como já foi referido no ponto 2.2., os quadros clínicos severos de língua azul são mais frequentes em ovinos importados do que nas raças autóctones, parecendo haver aqui uma sensibilidade individual de base genética.

Nos cervídeos a manifestação clínica de BT também ocorre mas muitas vezes é confundida com a doença hemorrágica epizoótica (EHD) pela semelhança dos sinais clínicos, no entanto esta é mais severa e é causada por outro Orbivírus44.

Nos restantes animais a infecção é geralmente inaparente, excepto no caso do serotipo 8 que tem demonstrado virulência em bovinos43.

No âmbito deste trabalho apenas serão abordados os sinais clínicos de bovinos infectados com BTV-8.

Sinais clínicos mais comuns

Segundo a análise epidemiológica da Autoridade Europeia de Segurança Alimentar (EFSA) sobre a epidemia de BTV-8 no nordeste europeu em 2006, os sinais clínicos mais comuns foram: crostas/ lesões no plano nasolabial, rinorreia serosa, disfagia, sialorreia, conjuntivite, febre, depressão e/ ou fadiga, inflamação do bordo coronário, claudicação e lesões hiperémicas/ cianóticas dos tetos12. A listagem de todos os sinais clínicos que constam neste relatório encontra-se traduzida no anexo II.

Sinais clínicos localizados na cabeça

Além de muito frequentes, as lesões ulcerativas e necróticas do plano nasolabial parecem ser dos sinais clínicos mais precoces. Estas lesões localizam-se em áreas não pigmentadas na junção mucocutânea do plano nasolabial e podem ser muito discretas ou fortemente eritematosas, com crostas e rinorreia que varia de serosa a mucopurulenta. Lesões semelhantes também podem ser encontradas nas narinas ou em todo o plano nasolabial (figura 8).

Nalguns casos a mucosa da cavidade oral surge eritematosa ou ulcerada. As úlceras são mais frequentes em pontos de pressão ou atrito, como uma banda gengival com cerca de 1 cm de largura a partir da face lingual dos dentes (figura 9), o pulvino dentário e a mucosa bucal.

As alterações do plano nasolabial ou da cavidade oral podem causar sialorreia (figura 10 e 11), disfagia e agravar a anorexia já existente pela infecção sistémica, geralmente febril.

Outro sinal comum e também de aparecimento precoce são as conjuntivites, por vezes acompanhadas de epífora, crostas e dermatites perioculares43.

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Sinais mais infrequentes são as alterações da língua, como a presença de úlceras na mucosa ou cianose, tão frequentes nos ovinos que deram o nome à doença12,43.

Figura 10 e 11 – Depressão, desidratação, sialorreia, protrusão da língua, inflamação e dor oral

(fotografias gentilmente cedidas pela Dra. Angela Bauer).

Membros

No início da doença pode notar-se edema distal dos membros, inflamação do bordo coronário, pododermatite, dermatite interdigital, hemorragia subungueal e fissura ungueal12,43,44. Uma parte significativa dos animais apresenta claudicação, fraqueza ou rigidez dos movimentos. Nos casos mais severos os animais permaneceram em decúbito, incapazes de se levantar e nestes o prognóstico é quase sempre fatal12,43.

Figura 8 - Lesões ulcerativas e necróticas nas áreas não pigmentadas do plano nasolabial (fotografia gentilmente cedida pela Dra. Angela Bauer).

Figura 9 – Úlceras gengivais a cerca de 1 cm da face lingual dos dentes43.

70 Úbere e tetos

No úbere e nos tetos são frequentes as lesões eritematosas, ulceradas e necróticas (figura 12 e 13) que aparecem geralmente após a afecção da cabeça43.

Pele

Cerca de 2 a 3 semanas após o primeiro sinal clínico de BT alguns animais desenvolvem lesões necróticas nas porções de pele despigmentadas do dorso e da base da cauda, com aspecto seco e por vezes com destacamento da pele. Estas lesões assemelham- se àquelas que ocorrem por fotossensibilização, embora os animais possam nunca ter sido expostos directamente à luz solar43.

Figura 14 – Lesões dermatológicas observadas na BT43.

Figura 13 – Lesões ulcerativas e necróticas nos tetos43.

Figura 12 – Lesões eritematosas no úbere43.

71 Reprodução

Nos touros pode observar-se esterilidade temporária46.

Nas fêmeas, como consequência da transmissão transplacentária registra-se um aumento da mortalidade embrionária, do número de abortos, de nados-mortos e de anomalias congénitas do SNC (hidrocefalia, hidranencefalia, quistos cerebelares e displasia da retina) como foi explicado no ponto 2.3.

Evolução dos sinais clínicos

A grande maioria dos animais com infecção clínica sobrevive e as suas lesões regridem significativamente em 4 a 8 semanas. Contudo as performances reprodutivas demoram mais tempo a recuperar43.

Taxa de morbilidade, mortalidade e fatalidade de casos

No relatório publicado pela EFSA sobre a epidemia de BTV-8 no nordeste europeu em 2006 foram submetidos dados de 1039 manadas onde tinham sido detectados laboratorialmente bovinos positivos. Cada manada com pelo menos um animal infectado foi considerada uma unidade epidemiológica. A dimensão dessas manadas variou entre 1 a 675 animais (gráfico 1). À data da visita 90 % das manadas tinham 1 ou 2 bovinos sintomáticos e quase 10 % das manadas não tinham animais doentes (gráfico 2). De referir que não foi feito o seguimento das manadas pelo que o número de animais doentes e de mortos apenas representa um instante e não o período total da epidemia.

Gráfico 1 – Distribuição da dimensão das manadas infectadas com BTV-812.

% d e m a n a d a s

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Gráfico 2 – Distribuição do número de bovinos com sinais clínicos por manada infectada com BTV-8 à data da visita12.

A análise do gráfico 2 e da tabela 1 mostra que a maioria dos casos de infecção pelo BTV-8 em bovinos é subclínica e a severidade da doença não é em geral alarmante. No entanto o mesmo estudo feito em ovinos revelou taxas de morbilidade, mortalidade e fatalidade de casos superiores às dos bovinos (20% para média de morbilidade, 5% para média de mortalidade e 23% dos rebanhos tiveram 50% de casos fatais).

Se compararmos a infecção pelos diferentes serotipos de BTV nos bovinos, o serotipo o 8 apresenta maior virulência e aí está a sua originalidade12.

Parâmetro Manadas de bovinos

Taxa de morbilidade

Média 6.8 %

Mínimo - Máximo 0 % - 100 %

Outros ≤ 10 % em 87 % das manadas

Taxa de mortalidade

Média 0.3 %

Mínimo - Máximo 0 % - 30 %

Outros ≤ 5 % em 99 % das manadas

Taxa de fatalidade de casos

Mínimo – Máximo 0 % - 100 %

Outros 6 % das manadas tiveram 50 % de casos fatais

Tabela 1 – Taxas de morbilidade, mortalidade e fatalidade de casos nas manadas analisadas na epidemia de BTV-8 no nordeste europeu em 200612.

Número de bovinos com sinais clínicos por manada

% d e m a n a d a s

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No documento Reflexões sobre o percurso profissional (páginas 64-73)