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NEUROLOGIA: INSTABILIDADE ATLANTO-AXIAL

No documento Reflexões sobre o percurso profissional (páginas 31-37)

PROF DR ALFRED M LEGENDRE

NEUROLOGIA: INSTABILIDADE ATLANTO-AXIAL

Identificação do animal: Isabelle, canídeo da raça Yorkshire Terrier, fêmea inteira com 21 semanas de idade e 1,2 kg de peso.

Motivo da consulta: Consulta de referência por suspeita de shunt porto-sistémico.

Anamnese: Tinha sido adoptada com 10 semanas de idade e desde então vivia numa casa com quintal, sem outros animais domésticos. Não costumava ir à rua e nunca tinha viajado. Comia ração comercial húmida Hill’s l/d®, não tendo o hábito de comer ou roer nada além disso. Não tinha acesso a lixo ou a tóxicos. Tinha recebido há pouco tempo o reforço da vacina DHPPi+L mas ainda não tinha sido vacinada contra a raiva. Era desparasitada mensalmente com prazinquantel, pamoato de pirantel e febantel, mas não estava desparasitada externamente. Além do motivo da consulta não aparentava ter outro problema de saúde. Não tinha antecedentes cirúrgicos e ainda não tinha tido o primeiro cio.

Anamnese dirigida: Pelo menos desde a adopção que caminhava descoordenadamente e caía com frequência. Tinha o pescoço flectido ventralmente e gania quando o moviam. Uma semana após a adopção foi consultada por um veterinário que suspeitou tratar-se de um shunt porto-sistémico, no entanto não realizou qualquer tipo de exame analítico ou imagiológico. Prescreveu a dieta húmida Hill’s l/d® desaconselhando qualquer outra fonte de alimento e medicou-a com lactulose (1 ml/ kg po tid). Segundo a dona estas instruções foram seguidas rigorosamente mas Isabelle continuava igual. Tinha apetite normal e a intensidade dos sinais clínicos não parecia aumentar após as refeições. Não tinha vómitos nem diarreia. Aparentemente não bebia nem urinava mais do que a quantidade normal. Não tinha história de traumatismo conhecida.

Exame geral: Estado mental e postura descritos no exame neurológico. Temperamento equilibrado. Condição corporal normal. Movimentos respiratórios do tipo costo-abdominal, com profundidade normal, regulares, rítmicos, com relação inspiração:expiração de aproximadamente 1:1.3, frequência de 20 rpm, sem uso dos músculos auxiliares da respiração ou da prensa abdominal de apoio. Pulso forte, regular, rítmico, bilateral, simétrico, sincrónico, com frequência de 120 ppm. Temperatura rectal de 38.7 ºC, sem alterações macroscópicas do material aderido ao termómetro, região perianal, reflexo perianal e tónus anal normais. Mucosas rosadas, brilhantes, húmidas, com TRC inferior a 2 seg. Grau de desidratação inferior

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a 5 %. Sem alterações na palpação dos gânglios linfáticos e abdómen, tal como na auscultação torácica, inspecção da boca, olhos e ouvidos.

Exame neurológico: Estado mental – alerta. Postura – cabeça fixa e ventroflexão cervical.

Marcha – ataxia dos 4 membros por vezes com apoio da face dorsal dos dígitos. Reacções posturais – diminuídas nos 4 membros. Reflexos espinhais – normorreflexia do períneo,

membros torácicos e pélvicos; ausência de reflexo cruzado posterior; reflexo panicular não avaliado. Pares cranianos – normais. Sensibilidade – hiperestesia na porção cranial da região cervical; manutenção da sensibilidade superficial e profunda.

Exame locomotor: Aumento do tónus muscular na região cervical. Localização da lesão: Segmento medular cervical (C1-C5).

Diagnósticos diferenciais de dor cervical e tetraparesia crónica simétrica: Anomalias – instabilidade atlanto-axial, malformações vertebrais, osteocondromatose, siringohidromielia.

Idiopáticas – quistos aracnóides. Inflamatórias – meningite/ meningomielite infecciosa,

meningoencefalomielite granulomatosa, meningite-arterite responsiva aos esteróides, discoespondilite/ osteomielite vertebral/ discite, abcessos. Degenerativas – quistos sinoviais, calcinose circunscripta. Neoplasias – extradurais/ intradurais extramedulares/ intramedulares. Exames complementares: Urianálise, hemograma completo e bioquímica sérica (ureia, creatinina, PPT, albumina, FA, ALT) – dentro dos parâmetros normais. Radiografias simples da

coluna vertebral abrangendo o segmento cervical, nas projecções latero-lateral e ventro-dorsal

– subluxação atlanto-axial e hipoplasia da apófise odontóide do áxis. Diagnóstico: Instabilidade atlanto-axial (IAA)

Tratamento: Parar com a administração de lactulose e substituir a ração Hill’s l/d® por ração fisiológica húmida para cachorros. Gabapentina (5 mg/ kg po bid) conforme necessário para controlar a dor. Restrição de movimentos numa jaula pequena. Colar cervical com suporte rígido ventral durante 6 semanas, mantendo a região cervical estável e em extensão (figura 1 e 2).

Figura 1 – Vista cranial de Isabelle com colar cervical.

Figura 2 – Vista lateral de Isabelle com colar cervical.

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Seguimento: Uma semana após esta consulta a dona afirmou, por conversa telefónica, que Isabelle parecia não ter tantas dores. No entanto nunca marcou uma nova consulta para remoção do colar, reavaliação ou eventual realização de cirurgia.

Prognóstico: Reservado. Com este tratamento pretendia-se minimizar a inflamação, a lesão medular contínua e os sinais clínicos associados, assim como permitir a formação de tecido fibroso que ajudasse a estabilizar a articulação atlanto-axial. Contudo, tendo em conta que a probabilidade de recorrência dos sinais clínicos após a remoção do colar cervical era elevada, não poderia excluir-se a possibilidade de posteriormente ser sujeita à fixação cirúrgica da articulação. Neste caso o tratamento conservativo prévio contribuiria para melhorar o prognóstico da cirurgia.

Discussão: Isabelle veio à consulta de referência por suspeita de shunt porto-sistémico baseada no facto de se tratar de um exemplar jovem da raça Yorkshire Terrier com ataxia. De facto esta raça parece ter maior predisposição para shunts porto-sistémicos8, no entanto não tinham sido efectuados exames complementares que confirmassem essa suspeita e a história, o exame físico e o neurológico não evidenciaram outras alterações que a sustentassem. Pelo contrário, o facto de ter os reflexos espinhais normais, os quatro membros apresentarem tonicidade muscular normal mas também ataxia e diminuição das reacções posturais, indicaram que Isabelle sofria de um problema neurológico resultante de uma lesão no segmento medular C1-C5, na unidade ponte-medula oblonga ou no mesencéfalo. Como Isabelle estava alerta e tinha os pares cranianos normais, pôde-se excluir a possibilidade de uma lesão ponto-medular ou mesencefálica6. A ventroflexão cervical com aumento da tonicidade da musculatura nesta região, a posição fixa da cabeça e o facto de Isabelle vocalizar quando se movimentava a região cervical ou se palpava a porção cranial desta região, indicaram hiperestesia cervical cranial7, consistente com a localização da lesão neurológica no segmento medular cervical (C1-C5).

Tendo em conta que Isabelle era uma cadela muito jovem, de uma raça miniatura, com dor cervical e tetraparesia crónica simétrica, os possíveis diagnósticos diferenciais foram:

anomalias – IAA, malformações vertebrais, osteocondromatose, siringohidromielia;

idiopáticas - quistos aracnóides;

inflamatórias – meningite/ meningomielite infecciosa, meningoencefalomielite granulomatosa, meningite-arterite responsiva aos esteróides (pouco provável em raças miniatura), discoespondilite/ osteomielite vertebral/ discite, abcessos;

degenerativas - quistos sinoviais, calcinose circunscripta (pouco prováveis em raças miniatura);

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neoplasias - extradurais, intradurais extramedulares, intramedulares (pouco prováveis em animais jovens)1,2,6,7.

Os primeiros exames complementares realizados foram a urianálise, o hemograma completo e a bioquímica sérica (ureia, creatinina, PPT, albumina, FA, ALT). Com isto pretendeu-se fazer uma abordagem geral para pesquisa de envolvimento sistémico, que poderia ocorrer no caso de uma doença inflamatória ou neoplásica. O facto de os resultados terem sido normais não permitiu, contudo, excluir estes dois grupos de diagnósticos diferencias9.

Em seguida foram realizadas radiografias simples da coluna vertebral abrangendo o segmento cervical, nas projecções latero-lateral e ventro-dorsal. Nestes radiografias foi evidente a subluxação atlanto-axial e a hipoplasia da apófise odontóide do áxis, confirmado o diagnóstico de IAA.

A IAA pode ser adquirida ou congénita. O primeiro caso é agudo e geralmente secundário a trauma que provoca fractura da apófise odontóide do áxis e/ ou ruptura/ estiramento dos ligamentos que fornecem estabilidade a esta articulação. Estes são o ligamento transverso do atlas que fixa a apófise odontóide do áxis ao corpo vertebral do atlas, o ligamento apical e os ligamentos alares que fixam a extremidade cranial desta apófise ao osso basoccipital, o ligamento atlanto-axial dorsal que aproxima o arco do atlas e o processo espinhoso do axis, e a cápsula articular atlanto-axial que apesar de não ser um ligamento propriamente dito também contribui para a estabilidade desta articulação5,6.

A IAA congénita ocorre quando a apófise odontóide do áxis (que tem um núcleo de crescimento independente) e/ ou os ligamentos acima referidos não se desenvolveram correctamente. Nestes casos os animais nascem com hipoplasia, aplasia, angulação incorrecta ou separação desta apófise. Também podem ter laxidão ou ausência dos ligamentos que estabilizam esta articulação4,5. Os primeiros sinais clínicos geralmente são detectados durante o primeiro ano de vida mas nalguns casos isto pode acontecer quando os cães já são velhos, altura em que têm menor tensão ligamentar e tonicidade muscular5. O quadro clínico de IAA congénita é crónico progressivo mas pode sofrer períodos de agudização por trauma. Os primeiros sinais costumam ser manifestações de dor cervical causada por compressão das raízes nervosas e das meninges, progredindo depois para paresia ou mesmo paralisia. A IAA congénita tem maior incidência em cães de raças miniatura ou de pequeno porte, incluindo a raça Yorkshire Terrier4,5,6. O caso da Isabelle é um exemplo de IAA congénita.

Em qualquer um dos tipos de IAA são comuns as subluxações por rotação dorsal da porção cranial do áxis, que estreita o canal vertebral e comprime a medula espinal, causando sinais neurológicos característicos de lesão do segmento medular cervical3. Por isso é necessário cuidado extremo na contenção e manipulação destes animais para não acentuar a

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flexão do pescoço, que além de causar dor severa agrava a lesão medular, acentuando a disfunção motora e podendo comprometer a respiração por paragem dos músculos respiratórios5,6. Devem ser tomadas precauções extra quando estes animais são sedados ou anestesiados, pois o relaxamento muscular acentua a instabilidade6. Nestes casos aconselha- se manter a região cervical extendida5.

O diagnóstico presuntivo de IAA é feito com base na idade, raça, história e sinais clínicos do animal. Por vezes é possível palpar o áxis luxado como uma tumefacção cervical dorso-cranial5.

O diagnóstico definitivo é imagiológico. As projecções radiográficas ventro-dorsal e oblíquas da cervical permitem avaliar a apófise odontóide do áxis quanto a anomalias de desenvolvimento ou fracturas. Quando isso não é conseguido pode fazer-se uma projecção rostro-caudal de boca aberta, no entanto esta envolve maior manipulação cervical e sedação. A projecção latero-lateral permite avaliar a subluxação atlanto-axial pelo desalinhamento entre os corpos do atlas e do áxis e pelo aumento do espaço entre o arco do atlas e o processo espinhoso do áxis6. Quando a subluxação é duvidosa, a flexão cuidadosa da região cervical pode acentuá-la e torná-la evidente5,6, no entanto os riscos desta manipulação são elevados, sendo preferível recorrer à fluoroscopia que permite identificar a instabilidade dinâmica com monitorização do movimento6,4. A tomografia axial computorizada (TAC) também pode ser usada para avaliar a apófise odontóide do áxis e a mielografia é útil para identificar a compressão medular. A ressonância magnética, embora pouco acessível, também tem sido utilizada para identificar IAA e edema medular4.

O tratamento da IAA pode ser conservativo ou cirúrgico. O primeiro é usado em casos moderados e consiste na administração de analgésicos e anti-inflamatórios, restrição de movimentos numa área confinada e uso de um colar cervical para imobilizar e manter a articulação atlanto-axial em extensão durante um período mínimo de 6 semanas6,1. Este colar é constituído por ligadura almofadada ou uma combinação desta com estruturas rígidas termomoldáveis, com arestas e ângulos rombos, colocadas dorsalmente (desde o bordo dorsal das órbitas ósseas até à última vértebra torácica), ventralmente (desde o apêndice xifóide até à região mentoniana) ou em ambas as posições3. Assim este colar estende-se desde a região frontal até uma posição caudal aos membros torácicos, evitando a lesão medular contínua e permitindo a cicatrização das estruturas ligamentares envolvidas na articulação atlanto-axial, conferindo-lhe maior estabilidade. Quando se opta por este tratamento o dono deve ser instruído para examinar diariamente o animal quanto a agravamento dos sinais clínicos, dificuldade respiratória, lesões nos pontos de pressão (sobretudo face e axilas), deslizamento e perca de integridade do colar, situações que implicam consulta veterinária imediata. Segundo Havig et al. (2005) o tratamento conservativo pode ser eficaz em animais jovens com lesões

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agudas, mas nos casos em que o primeiro sinal clínico foi detectado há mais de 30 dias, como é o caso de Isabelle, a eficácia é reduzida3.

O tratamento cirúrgico consiste na redução da subluxação e estabilização articular conseguida por uma de duas técnicas, uma de abordagem dorsal e outra ventral. A primeira utiliza fios de aço de Kirschner entre o arco do atlas e o processo espinhoso do áxis, substituindo ou reforçando a acção do ligamento atlanto-axial dorsal. Na abordagem ventral são introduzidos 2 parafusos transarticulares e a fusão vertebral é estimulada por raspagem das superfícies articulares e colocação de um enxerto ósseo que promova a osteogénese5,6. Deste modo a técnica de abordagem ventral consegue maior estabilidade e alinhamento articular, tendo também vantagem nos casos de fractura da apófise odontóide do áxis pois permite a remoção do fragmento ósseo se for necessário. Independentemente da técnica cirúrgica adoptada, o tratamento pós-operatório é semelhante ao tratamento conservativo acima descrito5. As dificuldades associadas ao tratamento cirúrgico são o difícil acesso da área a intervencionar e por vezes a incapacidade das vértebras suportarem os implantes, quer por serem muito pequenas, quer pelo tipo de fractura ou pelo osso ser jovem. Os casos de insucesso estão muito relacionados com estas dificuldades e devem-se à fixação insuficiente ou inadequada, fractura ou migração do implante, a qual pode ser minimizada pelo uso concomitante de polimetilmetacrilato4. O tratamento cirúrgico da IAA está associado a elevadas taxas de morbilidade e mortalidade perioperatória (10-50 % e 20 %, respectivamente), que geralmente resulta do agravamento iatrogénico da luxação, com pioria do quadro clínico e até mesmo a morte por paragem respiratória. A retracção da faringe e da laringe durante a cirurgia também pode contribuir para a dificuldade respiratória até às 48h pós-operatórias, por inflamação das vias aéreas superiores. Por tudo isto os donos devem ser informados do risco envolvido na cirurgia e ainda da possibilidade de esta ser ineficaz6,4,3.

No caso de Isabelle optou-se pelo tratamento conservativo porque não tinha um quadro severo que justificasse a pronta intervenção cirúrgica. Assim foi submetida a restrição de movimentos em jaula, administrações de gabapentina conforme necessário para o controlo da dor e utilização do colar cervical com suporte rígido ventral durante 6 semanas. No entanto, como nos casos crónicos o tratamento conservativo tem elevada taxa de reincidência de subluxação, Isabelle seria reavaliada após a remoção do colar cervical e nessa altura seria ponderada a fixação cirúrgica da articulação3. Nesse caso o tratamento conservativo prévio contribuiria para melhorar o prognóstico da cirurgia, uma vez que a inflamação e os danos medulares seriam inferiores, a articulação estaria mais estável e o osso mais capaz de suportar um implante3.

Quanto ao prognóstico sabe-se que, com ambos os tratamentos, os animais jovens com défices neurológicos moderados e um quadro agudo têm melhor prognóstico5,6,4. Isto é comum

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para qualquer trauma medular em que a propriocepção, a motricidade voluntária, a sensibilidade superficial e a profunda são usadas como indicadores de prognóstico decrescente por esta ordem. A rapidez de intervenção é também um factor de prognóstico positivo por minimizar as lesões secundárias3. A aplicação deste conhecimento ao caso de Isabelle permite emitir um prognóstico reservado pois apesar de se tratar de um animal jovem com manutenção de alguma motricidade e sem afectação da sensibilidade, sofria de um processo crónico, com início há mais de 11 semanas e como não voltou à consulta, presume- se que o tratamento tenha finalizado com remoção do colar ao completar as 6 semanas de tratamento, o que num caso crónico poderá significar recorrência da luxação com possível agravamento dos sinais clínicos e eventual paragem respiratória.

No documento Reflexões sobre o percurso profissional (páginas 31-37)