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Jan Bitoun

As transformações ocorridas na ordem urbana de metrópoles brasilei- ras, nas três últimas décadas, foram estudadas por grupos de pesqui- sadores componentes de núcleos locais, coordenados pelo Prof. Luiz César de Queiroz Ribeiro, no âmbito do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) Observatório das metrópoles. Assim, a trajetória recente da Metrópole recifense (1980-2010) foi retratada num dos li- vros recém-publicados decorrentes desses estudos. (SOUZA; BITOUN, 2015) Em texto introdutório de 19 páginas, os organizadores destacam as principais conclusões de cada um dos capítulos que compõem o livro e intitulam esse apanhado: a metrópole do Recife, regional, periférica, desigual e incompleta. Cada um desses adjetivos representa uma faceta de uma condição estrutural que se manteve e desenhou, no período recente, os rumos da reconfiguração da cidade sob o comando consoli- dado do tripé capital internacional/Estado/capital nacional, agora sob a

hegemonia do capital financeiro (internacional e nacional) e de sua lógi- ca, com o reforço e internacionalização de grandes grupos econômicos nacionais. (RIBEIRO, 2013)

O autor desse texto propõe-se a elaborar uma reflexão livre, de caráter ensaístico, decorrente parcialmente da experiência acumulada na orga- nização do livro recém-publicado (SOUZA; BITOUN, 2015), que seguiu, em todas as metrópoles estudadas, um roteiro comum, de modo a per- mitir uma visão comparativa no âmbito do INCT. Essa reflexão defende uma tese: a inseparabilidade da trajetória recente e da condição estrutu- ral, consolidada no tempo longo e descrita pelos adjetivos acima citados.

O espaço, considerado como um mosaico de elementos de diferentes eras, sintetiza, de um lado a evolução da socie- dade e explica, de outro lado, situações que se apresentam na atualidade. [...] a noção de espaço é assim inseparável da idéia de sistemas de tempo. (SANTOS, 1985, p. 21-22)

Reconhecer esses sistemas de tempos demanda a elaboração de perio- dizações, reconhecendo momentos de rupturas. No caso do Recife, não estamos muito distantes da tese defendida pelo diretor do filme “A arca russa” (2002), Aleksandr Sokúrov. Filmou, num único plano sequência, a trajetória do Marquês de Custine (autor de um livro, publicado em 1843, narrando uma viagem no Império dos czares em 1839 e denunciando tra- ços permanentes do despotismo russo), percorrendo salas do palácio do Hermitage em São Petersburgo, onde se defronta com cenas da história russa e soviética. O recurso técnico a um único plano sequência, sem cor- tes de montagem, mergulha os espectadores num tempo contínuo, sem rupturas, e as últimas imagens mostram o palácio quase flutuando nas ondas estuarinas do Neva.

Voltando às margens do Capibaribe, mas continuando a recorrer às expressões cinematográficas, destacamos o curta-metragem “Recife de dentro para fora” (1997) dirigido por Katia Meisel, e no qual as imagens se associam ao poema “O Cão sem Plumas”, de João Cabral de Melo

RECIFE: ALGUNS MARCOS DA TRAJETÓRIA RECENTE 107

Neto (2007), na versão cantada por Elba Ramalho e Geraldo Azevedo. Inicia-se por uma visão panorâmica da cidade de oeste para leste em tom sépia, remetendo às velhas fotografias, carcomidas pelo tempo e por um comentário do poeta, segundo o qual “nós meninos de família não ía- mos”ao rio; apresenta, em seguida, vindo do mar, imagens do porto e do movimento dos navios, por onde Pernambuco se vinculou aos tráfegos mercantis do Atlântico, e de áreas movimentadas do centro.

Quando o poema cantado chega no verso “onde, fria, a vida ferve”, o curta-metragem desfila imagens de cenas do cotidiano lento daqueles que mantêm intimidade com o rio, todos que não são “meninos de fa- mília”. No longa-metragem “O Som ao Redor” (2012), o diretor Kleber Mendonça Filho apresenta um enredo narrando o cotidiano inquieto, em edifícios da Zona Sul, de personagens da classe média, alguns deles relacionando-se com um grupo de vigilantes que “toma conta” da rua. O filme inicia-se por imagens de arquivos em preto e branco de confli- tos na Zona da Mata canavieira, e seu desfecho religa a rua “urbana” a esse entorno “rural” tão próximo.

Essa introdução, lançando mão de produções cinematográficas, tem um duplo sentido: i) refletir acerca das técnicas (montagem e ângulos de visão) que permitem aos diretores expressar, no tempo, continuidades, rupturas e ritmos, e, no espaço, articular e diferenciar escalas; ii) remeter ao papel exercido atualmente na metrópole, na construção de práticas contra-hegemônicas, por coletivos de cinema opondo-se à ordem urbana implantada na trajetória recente da cidade; apontar

[...] para a necessidade de debates profundos, posiciona- mentos claros e ações contestatórias, promovido através da articulação de pessoas interessadas em política e preocupa- das com os problemas da cidade do Recife, tanto no mundo virtual quanto no mundo real. (BARBOSA, D., 2014, p.172)

Existindo o desafio de dar a ver como as práticas hegemônicas do tripé capital internacional/Estado/capital nacional se impuseram numa

metrópole regional e periférica, formula-se a hipótese de que, nesse contexto, foram-lhes necessárias adaptações a conjunturas movediças, conquanto encontraram, nas estruturas desiguais e na incompletude da metrópole, possibilidades para desenhar estratégias de médio prazo, que permitiram operações de curto prazo que redesenharam a configuração do espaço metropolitano tanto na sua área concentrada como nas suas bordas. Para debater essa hipótese, apresentaremos argumentos desta- cando sucessivamente:

1) Características do ambiente regional periférico sob influência da aglomeração do Recife, definindo, assim, seu caráter metropolita- no (institucionalizado desde 1973 como uma das regiões metro- politanas do país) e algumas tendências recentes desse ambiente, que o tornou mais atrativo aos investidores.

2) As reconfigurações seletivas, operadas pelo tripé tanto no centro da aglomeração como em algumas das suas bordas, ressaltando casos paradigmáticos que permitem desvendar as coalizões hege- mônicas e seus modos de operar, deixando o grosso da aglome- ração num pesado status quo, no contexto da incompletude e da desigualdade.

A região de influência da metrópole recifense: