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4 “CANGACEIROS DE FARDA”: POLICIAIS NO SERTÃO

4.3 Alianças: policiais e poderes locais

“[...] uma das melhores fábricas de cangaceiros são as polícias estaduais, na maioria composta de egressos do crime, nas fileiras, e de homens broncos, cruéis ou adstritos às politiquices locais, nos comandos”.396

(Gustavo Barroso)

Em 1928, a imprensa noticiava com precisão os conflitos ocorridos na cidade de Maranguape entre o tenente Otávio Bezerra e o deputado oposicionista Antonio Botelho. A partir de algumas manchetes, percebeu-se o tom da tensa situação experimentada pela população maranguapense. No jornal “Gazeta de Notícias”, estampava- se a seguinte manchete: “O tenente Otávio Bezerra, agredindo o

deputado Antonio Botelho, ‘cumpriu o seu dever? ’” 397

; em “O Nordeste”, destacava-se “O tenente Otávio Bezerra açoita, a rebenque,

o deputado Antonio Botelho”.398 Dias antes do acontecido, o político Antonio Botelho fez circular um livro de sua autoria intitulado “Ele”, no qual tecia severas e ácidas críticas ao governo do presidente do Estado José Moreira da Rocha. Quase que imediatamente a oficialidade da Força Pública reuniu-se com o presidente para prestar solidariedade diante das “[...] calúnias difamatórias” do deputado-panfletista. Perante os oficiais da Força, Moreira da Rocha pediu que “[...] agissem sempre com cordura e que não praticassem violências, porque qualquer violência serviria, tão somente, para engrandecer o caluniador, que

passassem pelo difamador com todo desprezo”.399

Logo após o aparecimento do livro e da reunião entre o oficialato da Força e o presidente do Ceará, o tenente Otávio Bezerra foi destacado para servir como delegado militar em Maranguape, cidade natal do deputado Botelho. Não tardou para que o oficial descumprisse os pedidos do presidente. Durante uma manhã, no centro da cidade, o

396 BARROSO, Gustavo. Almas de lama e de aço: lampião e outros cangaceiros. Fortaleza:

ABC, 2012 [1928]. p. 49. 397 Gazeta de Notícias, 23/02/1928. 398 O Nordeste, 22/02/1928. 399 Gazeta de Notícias, 17/01/1928.

tenente, avistando o deputado, mandou um dos soldados do contingente desarmá-lo. Naquele instante, o político respondeu aos soldados afirmando que não portava arma de espécie alguma e abriu o paletó para comprovar, foi quando o tenente Otávio Bezerra:

[...] sai da coletoria e dirigindo-se ao Sr. Botelho ordena aos milicianos que o corrijam, ordens estas que eram dadas em palavras de baixo calão, que, absolutamente, não deviam ser proferidas por um representante da força pública.

Exaltadíssimo, o tenente Bezerra levanta um rebenque para o Sr. Botelho que, mais calmo, tratara, infrutiferamente, de solucionar o incidente, o que não o impediu, no entanto de receber várias rebencadas.400

O desarmamento era uma prerrogativa dos policiais da Força, especialmente do delegado militar; entretanto, conforme já foi dito, as leis e os regulamentos esclareciam que homens de “comprovada idoneidade”, o que deveria incluir o deputado estadual, poderiam andar armados, desde que fosse para a sua própria defesa. No que tange ao desarmamento do deputado, é oportuno notar que os policiais para satisfazer os interesses pessoais e políticos rasgavam a legislação policial. Interessante salientar que muitos dos membros da polícia, especialmente os oficiais, no labor diário, buscavam atender a ferro os desígnios dos seus protetores, seja o presidente do Estado, sejam os chefes políticos locais. Uma prova desta dedicação do tenente Bezerra na defesa de seu protetor são as declarações do deputado Antonio Botelho, quando afirmou que “[...] tinha uma convivência amistosa com o oficial, mas depois da publicação do livro o tenente Otávio Bezerra

deixou de cumprimentá-lo”.401 O desarmamento do deputado estadual

oposicionista configurou-se como uma forma de desmoralizar um inimigo político. Interessante notar que muitos policiais, como o tenente Bezerra, acabavam transferindo os conflitos alheios para o nível de suas próprias vidas.

Esta dedicação de alguns membros do oficialato da Força aos chefes políticos do Estado devia-se, também, à lógica de distribuição de benefícios, como, por exemplo, a concessão das patentes

400

Gazeta de Notícias, 23/02/1928.

de oficiais, que eram, na Primeira República, antes de tudo, um benefício de cunho político. Os próprios policiais faziam críticas às formas de concessão de patentes entre o oficialato da Força. Em 1928, foi aberta sindicância para apurar as denúncias feitas pelo tenente Rosal, que afirmava que o 2.º tenente Antônio Pereira do Nascimento estava denegrindo a imagem dos oficiais da Força Pública no interior do Ceará. No auto de perguntas, o 1.º sargento Joaquim de Oliveira informou ao encarregado da sindicância que o oficial Nascimento “[...] andava falando” que muitos membros do oficialato envolviam-se com líderes políticos para obter as almejadas divisas de oficiais “[...] dentro da polícia”.402

Na Primeira República, os chefes políticos situacionistas nem sempre possuíam propriedades extensas, mas eram homens de reconhecido poder social e econômico, tendo prestígio junto ao governo estadual. Os chefes sertanejos, a partir da influência que exerciam junto ao governo do Estado, poderiam conseguir um galão de tenente para um sargento “dedicado” ou as insígnias de capitão para um tenente disposto a decidir eleições através da coerção ou a perseguir adversários políticos. Ao apoiar os mandões situacionistas, os policiais estavam longe de atender apenas aos interesses do presidente do Estado, pois sabiam que no interior poderiam não apenas negociar a ascensão na hierarquia da instituição militar estadual, mas também abiscoitar generosas recompensas em dinheiro ou cargos importantes a partir da prestação dos mais diferentes serviços aos chefes locais. Afinal, os policiais tinham consciência de que poderiam tirar “[...] vantagens da exploração da covardia e [da] perversidade dos políticos” 403

do sertão do Ceará.

Em 1928, um dos articulistas do jornal “O Nordeste”, buscando demonstrar o poder exercido pelos policiais da Força Pública sobre os chefes políticos “graúdos” no sertão, afirmava que:

Não raro, o militar, ao chegar a uma localidade matuta, aproveitava-se do prestígio da farda, para tomar dinheiro emprestado, ou comprar fiado, sendo escusado adiantar que não saldará mais a dívida.

402

Sindicância contra o 2.º Tenente Antonio Pereira do Nascimento, 1927, APEIC.

Se, então, esse militar tem as funções de delegado, e vai destacado a pedido de qualquer das facções, os graúdos desta sofrem-lhe as ‘facadas’, sem o direito de soltarem um gemido.404

Em troca dos agrados “concedidos” pelos chefes “graúdos” do interior, os policiais faziam muitos serviços que contrariavam a missão de mantenedores da ordem, mas a dedicação aos chefes políticos poderia render cargos importantes nas prefeituras, fazendo com que muitos oficiais conseguissem certa projeção social. Há exemplos de policiais que, devido às “boas relações” com os chefes locais, chegaram a ocupar a cadeira de prefeito de cidades do interior do Ceará. Em 1921, “A Tribuna”, no seu editorial, denunciava que o tenente Miguel Arcanjo, prefeito do município de Milagres, acobertava os desmandos praticados por seu amigo José Inácio, que era um dos mais influentes

chefes políticos do Cariri.405 O periódico ainda salientava que o oficial-

prefeito vivia “[...] intrigado com todos os seus colegas destacados

naquela cidade, por não quererem concordar com ele [...]”.406

A doutrina militar que pregava o “espírito de corpo” entre os membros da corporação era totalmente posta de lado por alguns policiais no sertão. Tendo como referência a postura do tenente Arcanjo, parece que, antes, vinham os interesses políticos e, depois, talvez, em segundo plano, as lições militares ensinadas na caserna.

Entretanto, não foram todos os policiais que ficaram contra o tenente-prefeito Miguel Arcanjo, pois, na coletoria de rendas do município de Milagres, encontrava-se um seu colega do oficialato da Força Pública, o capitão Manoel Firmino Araujo, que, naquele ano, foi bastante elogiado pelo presidente do Estado, Justiniano de Serpa, pelo fato de a arrecadação da cidade ter sido “regularizada” e

“sensivelmente” elevada.407

É difícil não enxergar o poder de negociação exercido pelos policiais destacados pelo interior do Estado. Na dinâmica da política local, estavam em jogo barganhas que poderiam mudar a vida destes homens que, na sua grande maioria, pertenciam aos

404

O Nordeste, 25/05/1928.

405 O chefe político José Inácio conquistou notoriedade e fama no Cariri por ser um dos

maiores protetores de bandidos, como o célebre Sebastião Pereira (ou Sinhô Pereira), que atuou nos sertões do Nordeste. Ver: MACEDO, Nertan. Sinhô Pereira: o comandante de Lampião. Rio de Janeiro: Artnova, 1975.

406

A Tribuna, 29/11/1921.

estratos mais baixos da sociedade. Conforme apontado no segundo capítulo, para muitos policiais, ser da polícia e vestir uma farda poderia possibilitar experiências e contatos sociais até então inimagináveis, permitindo que saíssem do estado de pobreza em que viviam. Para alguns oficiais apoiar um potentado sertanejo poderia render cargos importantes nos municípios, como o de prefeito e o de coletor de rendas. Por isso, não era raro encontrar policiais envolvendo-se nos mais diferentes tipos de negociatas com chefes políticos do interior.

O tenente Miguel Arcanjo e o capitão Manoel Araujo, imersos na política sertaneja, sabiam que a distribuição dos cargos públicos nos municípios do sertão dependia da influência dos chefes políticos locais. Os poderosos locais possuíam uma vasta parentela que, normalmente, ocupava os principais cargos públicos, como os de delegado e de subdelegado, de prefeito, de juiz municipal, de professor, de coletor, entre outros. Segundo Queiroz, a parentela era “[...] formada por um grande grupo de indivíduos reunidos entre si por laços de parentesco carnal, espiritual (compadrio), ou de aliança (uniões matrimoniais)”.408

O grupo formado pela parentela, muitas vezes, chegava a ser numeroso, extrapolando os limites geográficos, o que permitia reunir uma extensa rede de reciprocidade, direitos e deveres entre os membros. Não há indícios que permitam afirmar peremptoriamente, mas é muito provável que os oficiais Arcanjo e Araujo, da Força Pública, estivessem ligados por algum tipo de laço ao chefe político José Inácio.

Os policiais da Força que trabalhavam nos municípios ficavam em posições privilegiadas, as quais lhes permitiam aproximações estreitas com os chefes sertanejos, que, quase sempre, necessitavam dos serviços do contingente ali estacionado. Em 1927, o jornal “O Ceará” trazia uma matéria cujo título era: “Mais uma vez, a

força policial serve à politicagem”. O correspondente, na cidade de

Tauá, narrava uma luta armada entre os “Coutinhos” e Manoel Sinhô. Dentre os apoiadores deste último, encontrava-se o já conhecido tenente Aristides Rosal, mas, desta vez, estava sendo acusado de comandar um

grupo de cangaceiros contra membros da família “Coutinho”.409

O bacharel Matias Coutinho informava, através de telegrama, que o

408 QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. O coronelismo numa interpretação sociológica. In:

FAUSTO, Boris (Org.). Estrutura de poder e economia (1889-1930): o Brasil republicano. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. p. 12-14. v. 1. t. 1. p. 164.

tenente Rosal auxiliava o potentado Sinhô “[...] em todas as suas ações criminosas”, mantendo “[...] cangaceiros roubando e matando os [...] gados, montando em animais [da] propriedade [...]”. Matias Coutinho revela que o oficial Rosal, juntamente com Manoel Sinhô, estava “[...] prendendo, açoitando, insultando os [seus] parentes e vaqueiros, como sucedeu, há dias, com Antonio Bento de Macedo, preso na fazenda ‘Vaca Brava’, bem como um seu filho e mais Antonio Rodrigues, que

foi barbaramente açoitado a ‘pneu’”.410

Os chefes políticos se devoravam entre si em lutas sangrentas e comumente contavam com a participação dos policiais da Força Pública que se postavam a favor dos mandões que pertenciam à facção política da situação; pois, conforme será visto no quinto capítulo, o policial sofreria medidas punitivas caso ficasse contra os chefes da situação.

As rixas do oficial Rosal com a família “Coutinho” parecem vir de longa data. Em 1926, a prisão do tenente Aristides Rosal fora decretada pelo juiz da cidade de Independência, no sertão norte, pois era suspeito de ter matado Francisco Tomás e roubado o gado de Alfredo Coutinho. As notícias dos jornais não chegaram a revelar qual potentado estava por trás das ações do oficial Rosal, mas há indícios de que algum “graúdo” da cidade de independência estava acobertando a atuação do policial. Neste caso, em particular, o tenente Rosal contratou o afamado advogado Raimundo Gomes de Matos, que conseguiu a sua liberdade por meio de habeas-corpus. A partir da contratação daquele bacharel, pode-se perceber que certos oficiais da Força Pública, como o tenente Rosal, gozavam da amizade de homens poderosos nas localidades interioranas.

Dificilmente, com o soldo que recebia como oficial da Força Pública o tenente Rosal teria condições de pagar os honorários de um experiente advogado. As alianças políticas estabelecidas pelos policiais da Força poderiam lhes garantir, quando necessitassem, a defesa realizada por um “ilustre” advogado da capital, como o “Dr.

Gomes de Matos”411

, que conseguiu, rapidamente, a liberdade do oficial da Força Pública. Neste caso em específico, deve-se duvidar da perícia profissional e do sucesso do bacharel, afinal, em boa medida, os mandões locais tinham, em suas mãos, a legitimidade do exercício da justiça, possivelmente por conta da repercussão do caso na imprensa da capital, a contratação do advogado Matos tenha ocorrido para manter as

410

O Ceará, 07/06/1927.

aparências da normalidade de um processo judicial; é muito provável que o caso em questão já estivesse resolvido através do poder exercido pelo chefe político. O tenente Rosal e outros companheiros de farda, convivendo cotidianamente com chefes políticos do sertão, aprenderam que o prestígio e o reconhecimento advinham da capacidade de fazer favores.

Para finalizar, torna-se importante salientar que, na leitura da documentação, percebeu-se que existia a organização de grupos formados por oficiais que prestavam serviços para os chefes políticos do sertão. Para os anos de 1920, alguns nomes foram coletados através do cruzamento dos jornais e de uma sindicância administrativa contra o tenente Antonio do Nascimento, que chegou a denunciar alguns policiais envolvidos com chefes políticos.412 Este grupo pode ser mais extenso, mas era composto pelos tenentes Aristides Rosal, José Gonçalves Bezerra, Manoel Firmo e o capitão Peregrino Montenegro, que ficaram conhecidos por participar de diversas alianças políticas com os chefes sertanejos. Não se conhecem as motivações que levaram o tenente Nascimento a fazer as denúncias, mas aquele oficial, certamente, não pertencia àquela equipe, o que abre margem para se pensar na existência de grupos de policiais rivais atuando no sertão. É muito provável que estes policiais guardassem lealdade ao grupo e, a partir de uma dinâmica própria, determinassem “padrões e normas de conduta”

distantes dos padrões regulamentados pela instituição.413 Talvez, a

formação destes grupos rivais, que se digladiavam no sertão, explique o surgimento de rixas dentro da Força Pública, especialmente entre os policiais que estampavam nos ombros os galões de oficiais.

Muitos policiais da Força estavam longe de agir de acordo com as prescrições dos regulamentos militares da instituição policial militar. Nos parágrafos acima, percebeu-se que desempenhavam suas atribuições funcionais com sua conduta se orientando antes pelos fortes interesses e influências que envolviam a sua vida de maneira imediata, e não por uma ideologia militar institucional, muito menos por distantes e

abstratos controles legais.414 Vários dos policiais espalhados pelo sertão

atendiam aos interesses das lideranças políticas e econômicas estaduais,

412 Sindicância contra o 2.º Tenente Antonio Pereira do Nascimento, 1927. APEIC.

413 BRETAS, Marcos; PONCIONI, Paula. A cultura policial e o policial civil carioca. In:

DULCE, Pandolfi et al. (Orgs.). Cidadania, justiça e violência. Rio de Janeiro: FGV, 1999. p. 154.

414

FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. O código do sertão. In:______ homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: UNESP, 1997. p. 21-62.

atuando como braços armados do Estado ou de setores privados, distanciando-se, assim, da missão de mantenedores da ordem pública. O fuzil que os homens de farda portavam servia para resolver violentamente questões envolvendo propriedades, desavenças políticas e eleições, fazendo com que muitos policiais ganhassem a reputação, entre a população, de criminosos. Parcela significativa dos membros da polícia, especialmente dentro do oficialato, no labor diário, buscava atender, com tenacidade, os interesses dos seus protetores, seja o presidente do Estado, sejam os chefes políticos locais. Por conta dos desmandos, dos crimes e do envolvimento com a política local, os policiais da Força Pública eram, corriqueiramente, comparados aos bandidos recrutados pelos chefes políticos, ganhando a alcunha de “cangaceiros de farda”. Neste cenário, desenrolava-se aquilo que seria, segundo os comandantes e os presidentes do Ceará, a principal missão dos policiais da Força Pública – a “repressão ao banditismo”. Nos próximos capítulos, pretende-se abordar a participação dos policiais militares no combate contra o “banditismo”.