• Nenhum resultado encontrado

Nas décadas de 1910 e 1920, a instituição policial militarizada do Estado instituiu os grupos de bandidos que atuavam nas fronteiras como os seus principais inimigos. No discurso oficial, boa parte do contingente da Polícia Militar deveria ser direcionada para a “repressão ao banditismo” nas fronteiras. Reiteradamente, nas mensagens dos presidentes do Estado e nos relatórios dos comandantes gerais, encontram-se balanços anuais sobre as atividades dos policiais militares no combate a grupos de bandidos no sertão cearense. As ações contra o “banditismo” eram apresentadas pelas autoridades públicas como a principal missão dos contingentes da Força Pública destacados no interior do Ceará.

Ao ler a documentação oficial, percebe-se que o “banditismo” aparece de forma homogênea e sem ligações com a política local. Os bandidos eram apresentados, genericamente, como sujeitos ignorantes e cruéis voltados apenas para efetuar saques e roubos nas cidades do interior; enquanto as autoridades policiais apareciam como paladinos da ordem que, sofregamente, empenhavam-se para efetivar o árduo serviço de combate aos “grupos de celerados”. Entretanto, ao dialogar com outros documentos, observa-se que, neste cenário, os sujeitos assumiam papéis mais complexos do que a visão reducionista de “policiais versus bandidos”.415

No Ceará da Primeira República, o “banditismo” estava longe de ser um fenômeno politicamente neutro, pois estava intimamente relacionado às alianças com os poderes políticos; havia uma estreita relação de interesses entre bandidos, chefes locais e representantes da ordem.416 Ao contrário do que deixa transparecer o discurso oficial, neste universo, estavam envolvidos múltiplos sujeitos imersos em conflitos, acordos, tensões e negociações.

415

VANDERWOOD, Paul J. El bandidaje en el siglo XIX: una forma de subsistir. História Mexicana, Ciudad de México, v. 34, n. 1, p. 41-75, 1984.

416 Para um debate historiográfico em torno do banditismo, ver: SLATTA, Richard. Eric J.

Hobsbawm's social bandit: a critique and revision. A Contracorriente, North Carolina, v. 1, n. 2, p. 22-30, 2004; FERRERAS, Norberto. Bandoleiros, cangaceiros e matreiros: revisão da historiografia sobre o banditismo social na América Latina. História, São Paulo, n. 22 (2), p. 211-226, 2003.

Na leitura da documentação coletada e da bibliografia

sobre o cangaço417, enxergou-se que muitos chefes políticos locais

utilizavam-se dos bandidos profissionais para formar suas forças armadas particulares; os bandidos, ao ser contratados pelos sertanejos abastados, tornavam-se seus cangaceiros. Estes homens eram utilizados pelos chefes políticos nas suas disputas pelo poder local, nas questões envolvendo terras e na proteção contra possíveis ataques de inimigos, que, às vezes, poderiam ser os policiais da Força Pública do Estado. A contratação de cangaceiros poderia ser por tempo determinado, mas alguns permaneciam como empregados nas propriedades, e outros retornavam para atuar como bandidos autônomos ou aliando-se a outros potentados. Os chefes sertanejos ainda contavam com jagunços, que eram homens de sua confiança e que, em certa medida, compartilhavam o poder do seu chefe. Os espaços de domínio dos chefes políticos necessitavam da presença de homens armados, o que acabava indo de encontro às ações policiais de repressão contra o “banditismo”. Por isso, era de fundamental importância que os chefes políticos dispusessem, também, da conivência dos policiais e da condescendência dos presidentes do Estado.

Nos jornais, encontram-se vestígios de que as ações contra o “banditismo” realizado pelos policiais da Força Pública do Ceará davam-se de forma seletiva. Sabendo que o poder dos potentados sertanejos era garantido pelo número de homens em armas, a polícia não interferia nos negócios dos chefes políticos situacionistas. No sertão, os policiais recebiam ordens para não incomodar os mandões locais que apoiavam o governo, por isso a Polícia Militar não prendia seus cangaceiros nem apreendia suas armas; muito pelo contrário, fazia “vistas grossas” e, dependendo de quem fosse o mandão, o presidente fornecia contingente da polícia estadual e material bélico para fazer a proteção do potentado. O discurso genérico de “repressão do banditismo” utilizado pelas autoridades constituídas escondia os objetivos da polícia do sertão, o combate deveria ser efetuado

417 MACEDO, Joaryvar. Império do bacamarte: uma abordagem sobre o coronelismo no

Cariri cearense. Fortaleza: UFC, 1990; FACÓ, Rui. Cangaceiros e fanáticos: gênese e lutas. Rio de Janeiro: UFRJ, 2009; MACEDO, Nertan. Sinhô Pereira: o comandante de Lampião. Rio de Janeiro: Artnova, 1975; MONTENEGRO, Abelardo. Fanáticos e cangaceiros. Fortaleza: Henriqueta Galeno, 1973. Para obter mais informações, ver as Referências.

especialmente contra os homens recrutados como cangaceiros pelos políticos oposicionistas.418

Em vários momentos, os jornais cearenses apontaram o governo estadual e a Polícia Militar do Ceará como os principais responsáveis pelo “banditismo” do Nordeste. Na década de 1920, iniciou-se uma campanha para a intervenção de forças do Exército nacional no Nordeste e, em especial, no Estado cearense. Alguns políticos, comerciantes e intelectuais clamavam pelo arbitramento de uma força militar neutra, ou seja, sem ligações com políticos locais para combater os grupos de bandidos, e apresentavam como solução a fixação de tropas federais em pontos estratégicos no sertão

nordestino.419 Estes mesmos setores alegavam que as tentativas

regionais eram bloqueadas por interesses políticos e pessoais, afirmavam que os policiais apenas cumpriam as ordens dos governos estaduais para proteger os mandões sertanejos espalhados pelo sertão nordestino. Não por acaso, em alguns jornais420, a Polícia Militar do Ceará era apresentada como uma instituição desmoralizada e inoperante, e os policiais cearenses eram vistos como violentos, interesseiros, partidários e venais.

Neste capítulo, pretende-se discutir, primeiramente, como o discurso oficial apresentava o conjunto de operações de “repressão ao banditismo” realizado pelos policiais da Força Pública. Em seguida, as atenções se voltam para as ações desempenhadas pela Polícia Militar, tanto em âmbito estadual como interestadual. Por último, o foco será assestado para a análise dos meandros das relações entre policiais, cangaceiros e chefes políticos. Neste momento do trabalho, é interessante perceber que, em meio ao discurso de militarização, de autonomia e de profissionalização, propalado pelos comandantes gerais da Força Pública, escondia-se uma corporação policial militar especializada, principalmente, em defender os interesses das facções políticas dominantes. O que estava em jogo não era a manutenção da ordem pública, mas o monopólio da violência, afinal a Polícia Militar

418

E. P. Thompson, ao analisar a “Lei Negra” na Inglaterra do século XVIII, mostrou que a repressão de ações consideradas como “criminosas” era perspicazmente utilizada para atender aos interesses de grupos políticos, servindo, acima de tudo, para perseguir inimigos. Ver: THOMPSON, E. P. Senhores e caçadores: a origem da lei negra. 2. ed. Tradução de Denise Bottmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

419

Ver especialmente o jornal “O Nordeste” do ano de 1927.

ampliava não apenas o poder bélico-militar do Estado, mas, especialmente, o seu poder político no sertão.

5.1 As expedições de 1915: o “extermínio do banditismo”

As operações de “repressão ao banditismo” e o controle das fronteiras da Força Pública no sertão cearense intensificaram-se no governo Benjamim Liberato Barroso (1914-1916). Ao assumir a presidência do Estado, Benjamim Barroso deparou-se com diversos bandos nos sertões cearenses. Vários destes bandos formaram-se durante as deposições de Nogueira Acioli e de Marcos Franco Rabelo, bem como na “Sedição de Juazeiro”. Deve-se lembrar que, na sedição de 1914, muitos chefes políticos locais, especialmente do Cariri, contrataram, aramaram e municiaram bandidos profissionais com a ajuda financeira do governo Federal.421 Após as convulsões políticas e sociais dos primeiros anos da década de 1910, muitos dos bandidos recrutados continuaram servindo como cangaceiros dos poderosos chefes políticos locais do interior. Em 1915, foram organizadas as primeiras expedições policiais que tiveram como principal objetivo exterminar os grupos de cangaceiros dos chefes políticos oposicionistas do interior do Estado. Neste momento, o centro de operações da Polícia Militar foi o combate dos recalcitrantes aliados de Franco Rabelo.

A operação policial mais afamada, durante a década de 1910, foi a expedição comandada pelo oficial de alto coturno Ernesto Medeiros. Na documentação da Força Pública, consta que Ernesto Medeiros era 2.º tenente do Exército Nacional. O major Alfredo Weyne, em suas memórias, recorda-se que o tenente Medeiros, nos quadros do Exército, serviu na guarnição de Recife. Aquele major ainda se lembra de que Ernesto Medeiros era afilhado do presidente deposto em 1912,

Nogueira Acioli. 422 O 2.º tenente Medeiros ingressou na Polícia Militar

cearense logo após a “Sedição de Juazeiro”, que ocorreu nos primeiros meses do ano de 1914, a qual provocou a deposição do presidente Franco Rabelo. No final de 1914, Medeiros foi nomeado tenente coronel da Força Pública do Ceará e ficou no comando do 2.º Corpo Policial, responsável pelo policiamento do sertão.423 Não se deve estranhar o

421 Ver a seção 1.2 Braço armado: polícia, deposição e sedição.

422 WEYNE, Alfredo Nunes. Pedaços do meu passado: memórias. Fortaleza: IOCE, 1981. p.

113.

423

Minutas de Ofício do Secretário de Justiça e Segurança Pública ao Comandante-Geral da FPC, 29/09/1914, APEC, Lv. 131.