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3 A FORMAÇÃO MILITAR DOS POLICIAIS

3.3 Inferiores: cursos e concursos

A partir da década de 1920, intensificaram-se as matrículas de policiais nos cursos de sargentos na capital federal, bem como os concursos internos para os postos de cabos e sargentos na Polícia Militar cearense. Em 1925, o comandante geral informava sobre o recebimento da cópia das instruções para matricular policiais no curso da Escola de Sargentos de Infantaria do Rio de Janeiro308. Os policiais interessados submetiam-se a exames e, caso fossem aprovados, matriculavam-se. Em 1929, os policiais José Benigno Gondim, João Nogueira da Silva, Markan de Mattos Dourado, João Elmiro de Souza e Eduardo Olavo de Souza obtiveram êxito nos exames e foram matriculados na Escola de

Sargentos do Rio.309

Nas atividades de policiamento, de forma especial durante os anos de 1920, os sargentos da Força Pública ganhavam cada vez mais importância. Esta situação fez com que muitos inferiores passassem a exigir o devido respeito às suas insígnias. O jornal “Gazeta de Notícias”, de 1929, publicou uma história em que aparece a figura de um inferior que exigia respeito pelas divisas que possuía. Segundo o articulista, o fato aconteceu na rua D. Pedro, na capital, entre o sargento Borges e o guarda cívico 146. Naquele momento, o oficial inferior perguntava ao guarda:

- Você não conhece os dispositivos militares? Por que não me fez continência?

- Ora seu sargento... Sei o que é disciplina. Não o vi. O Sr. passou à retaguarda. Tanta vez eu tenho feito continência e o Sr. faz que não vê...

308

Ofício do Comandante-Geral da FPC ao Presidente do Estado do Ceará, 19/08/1925. APEIC.

Continuou por algum tempo a troca de palavras: - descortesia do sargento e justificação do guarda, até que se retiraram.

Indagamos de alguém: quem é? Por que tanta valentia?

- É o Borges. Era, há poucos dias, cabo do esquadrão. Passou a sargento e é isto que se viu. Muita gente por aqui quer talvez mostrar que sargento é sargento e guarda é guarda.310

O articulista da “Gazeta de Notícias”, conversando com os transeuntes, disse que uns acharam que a atitude do sargento Borges foi uma demonstração de “grandeza”, mas outros perceberam como “pose”. No entanto, pode-se aprofundar a análise da postura do oficial inferior em questão. Os sargentos, nas forças armadas, passaram a desempenhar papel importante, pois os inferiores ficavam responsáveis pela instrução dos militares que compunham os graus mais baixos na hierarquia da corporação. Talvez, isto explique a repreensão feita pelo sargento ao guarda que fazia a ronda em uma das artérias de Fortaleza, afinal a Guarda Cívica, no que se refere à disciplina militar, estava subjugada à Força Pública.

Entretanto, é interessante aventar outra possibilidade para a postura do sargento. É muito provável que o policial Borges tenha conseguido as suas insígnias através dos concursos e dos cursos exigidos para o posto de sargento. Na década de 1920, iniciou-se uma política que pretendeu instituir critérios de promoções através de concursos. Os concursos, segundo os comandantes, pretendiam acabar com as promoções baseadas em personalismos e instaurar a “meritocracia” por meio da competência demonstrada no conhecimento policial e técnico-militar. De certa forma, os policiais que passavam por este processo seletivo desenvolviam um sentimento de superioridade e muitas vezes gabavam-se das divisas exigindo respeito dos subordinados.

O jornal “Diário do Ceará” informava que o exame para oficiais inferiores obedecia “[...] ao mesmo critério seguido e adotado, no Exército”.311

As matérias do concurso podem revelar questões interessantes sobre a formação militar exigida dos sargentos da Força Pública do Ceará. Na formação dos sargentos da Polícia Militar, os

310

Gazeta de Notícias, 03/06/1929.

instrutores exigiam conhecimentos relativos à tática de combate, ao uso de armas, à logística militar e a instruções policiais. Os programas dos concursos tinham o objetivo de avaliar os candidatos, principalmente, nos assuntos militares e policiais. Os instrutores vislumbravam aprovar os policiais habilitados nos métodos militares e que demonstrassem conhecer o trabalho policial desempenhado pela Força Pública. Visando demonstrar que a Polícia Militar cearense era força auxiliar de 1.ª linha do Exército, os avaliadores divulgavam que, para ingressar nos quadros de oficiais inferiores, os aspirantes teriam que conseguir conciliar os conhecimentos policiais e militares. Esta postura permite que se perceba que os instrutores pretenderam divulgar que existiam, nos postos de sargentos da Força Pública, policiais militares preparados para atuar na manutenção da ordem do território cearense e na segurança nacional.

Analisando o conteúdo do concurso de 1929312, percebe-se

que ele atribuía importância ao conhecimento das especificidades geográficas do Ceará, especialmente a corografia das cidades do Estado. Possivelmente, eram destacados os municípios que serviam de sede dos destacamentos e as cidades que faziam fronteira com outros Estados. Os policiais militares, em muitas cidades, eram os únicos agentes do Estado responsáveis pelos trabalhos policiais, por isso o conhecimento da história, da demografia e das povoações das cidades dos sertões cearenses tornava-se imprescindível para os policiais. Entretanto, é provável que muitos sargentos tivessem dificuldades em acompanhar e compreender as aulas ministradas pelos oficiais instrutores.

Imagem 8 – Turma de Sargentos da Força Pública do Ceará (1924)

Fonte: MIS (2014)

É importante não superestimar a formação dos sargentos. Torna-se oportuno questionar o preparo militar dos sargentos da Força, pois muitos dos aspirantes a inferiores da corporação, de acordo com os dispositivos regulamentares de ensino, deveriam ser egressos da deficiente Escola Regimental, afinal esta instituição também era, conforme já trabalhado, uma espécie de curso preparatório. Deve-se ressaltar ainda que, na leitura da documentação, percebeu-se que, na Escola, além da constante ausência de professores, faltavam materiais didáticos para as aulas. Partindo destes indícios, pode-se inferir que a formação militar de muitos graduados que passavam pela Escola poderia ser bastante deficitária. Esta situação não se restringia apenas aos graduados e inferiores, pois, como será trabalhado, o treinamento policial e militar de muitos oficiais deixava a desejar.

Os sargentos, corriqueiramente, assumiam o comando de destacamentos nas cidades do interior. Nos anos de 1920, a presença de sargentos à frente da administração dos destacamentos foi se intensificando, pois muitos oficiais passaram a atuar como delegados militares em comissão. Por isso, exigia-se a noção de escrituração militar nos concursos para sargentos, notadamente a organização de tabelas de vencimentos, roteiro de guarda, distribuição de contingentes, dentre outras tarefas burocráticas. Os sargentos ainda eram requisitados para a realização de serviços administrativos nos quartéis, nas delegacias e nas repartições públicas em geral. Tanto que, em 1930,

criou-se um Curso de Administração para os sargentos da Força Pública. As aulas do curso eram ministradas por um oficial da polícia, ocorriam no intervalo de um mês e realizavam-se nas dependências do quartel no

período noturno.313

Ainda na análise do programa do concurso de 1929 para sargentos, percebe-se que os conteúdos exigidos relacionavam-se com o trabalho conjunto que a Força Pública do Ceará desempenhava com outras forças armadas. Na década de 1910 e 1920, muitas foram as expedições envolvendo policiais cearenses, militares do Exército e policiais de outros Estados do Nordeste. Algumas tiveram projeção nacional, como em 1926, quando os oficiais da Força Pública e do Exército coordenaram e organizaram forças policiais militares para combater os tenentes “revoltosos” da Coluna Prestes. A Polícia Militar cearense deveria desenvolver atividades com forças policiais dos Estados vizinhos, pois as forças policiais militares de alguns Estados do Nordeste, através de convênios interestaduais (1912, 1922 e 1926), estabeleceram uma série de estratégias para o controle das fronteiras e o combate dos grupos de bandidos que atuavam no sertão nordestino.

No final da década de 1920, procurou-se investir nos cursos profissionais para os inferiores da Força Pública. Em 1927, através de mensagem à Assembleia Legislativa, o Presidente José Moreira da Rocha salientava que:

Há ainda [na Força Pública do Ceará] um curso profissional em que, ao lado das disciplinas básicas e preparatórias, são dadas aos alunos as noções necessárias à arte militar. Graças a esse curso, que visa preparar os futuros oficiais, os inferiores poderão receber conhecimentos técnicos, que a instrução moderna exige nas corporações militares, mormente sendo [a Força] reserva do Exército.314

Conforme as propostas dos cursos profissionais, havia a preocupação de treinar os aspirantes aos postos de inferiores nos conhecimentos técnico das armas usadas no Exército. De acordo com o convênio entre o Estado e a União, o treinamento prático com armas

313

Diário do Ceará, 14/02/1930.

314

Mensagem do Presidente do Ceará José Moreira da Rocha à Assembleia Legislativa, 1927, p. 30.

deveria tornar-se presente no cotidiano dos policiais da Força Pública do Ceará. Além do adestramento nas armas utilizadas nas atividades cotidianas de policiamento, como o mosquetão e o fuzil mauser, os policiais teriam que passar a conhecer e a manejar armas de guerra como: metralhadoras e granadas. Reflexo desta preocupação em formar uma força militar de guerra está na organização de dois pelotões de metralhadoras: leves e pesadas. Estes pelotões deveriam ser convocados em situações extraordinárias e eram comandados por tenentes auxiliados

por sargentos.315 Teoricamente, os sargentos nos pelotões de

metralhadoras deveriam ficar responsáveis pela intendência e pelo material bélico; no entanto, quando se analisa as ações da polícia no sertão, percebe-se que muitos sargentos atuaram no comando das unidades de metralhadoras.

Ao observar a atuação dos policiais, percebeu-se que havia uma distância entre o que se pretendia e o que realmente era alcançado nos cursos profissionais ministrados aos policiais militares. Grande parte dos policiais tinha dificuldade de manejar o armamento utilizado na Força, especialmente as metralhadoras Hotchkiss adquiridas depois do convênio com o Ministério da Guerra. O conhecimento sobre o funcionamento das armas tornava-se mais complicado para os policiais quando os manuais não chegavam ou vinham incompletos. Frequentemente, os policiais não compareciam às aulas de instrução sobre as armas e de tiro ao alvo, ou por desinteresse, ou porque permaneciam anos destacados nas cidades do interior, sem receber as devidas instruções de aperfeiçoamento sobre o material bélico usado na Polícia Militar. Nos prédios que serviam de caserna nas cidades do sertão, não se encontravam espaços adequados para que os policiais fizessem o treinamento com armas, as quais, muitas vezes, inexistiam, deixando o contingente, literalmente, desarmado.

Os concursos e os cursos de sargentos pretenderam, com seus programas de ensino, constituir um quadro de oficiais inferiores treinados nas lides policiais e militares. No discurso oficial, a preocupação em treinar os sargentos ligava-se ao número insuficiente de oficiais para cobrir os serviços burocráticos e os trabalhos de policiamento das cidades do Estado. No período pesquisado, as reclamações relativas à falta de oficiais eram uma constante nos ofícios e relatórios dos comandantes. Estas queixas recrudesceram na década de 1920. Segundo o alto comando, isto acontecia porque o raio de ação dos

policiais da Força Pública aumentou com os convênios policiais interestaduais. Estes estipulavam que as forças policiais conveniadas deveriam atuar, também, nos territórios dos Estados limítrofes. Assim, na ausência de oficiais, os sargentos conhecedores do ofício policial poderiam auxiliar comandantes ou comandar composições e destacamentos policiais nas cidades do sertão. Os comandantes apontavam que, a exemplo da dinâmica do Exército, os sargentos poderiam ficar responsáveis pelo ensino dos recrutas e dos soldados, pois se tornava muito dispendioso e complicado para a Força Pública do Ceará destinar oficiais para estas funções. As tentativas de constituir um quadro de oficiais inferiores preparados para atuar na manutenção da ordem pública do Estado não foram bem-sucedidas, pois a formação técnico-militar recebida pelos sargentos na Força Pública demonstrava inúmeros problemas, como os apresentados nos parágrafos acima.