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Alienação e fetichismo na empresa que traz nas mãos o futuro Desde o final do século XIX e certamente durante todo o século XX a organização,

4 Enfrentando o objeto: a miséria do management 66 Havendo o capital antigamente falado muitas vezes, e de muitas maneiras, nestes

4.4 Significação objetiva do trabalho: novas formas, velhas determinações

4.4.1 Alienação e fetichismo na empresa que traz nas mãos o futuro Desde o final do século XIX e certamente durante todo o século XX a organização,

sobretudo no seu formato capitalista de empresa, recebeu grande atenção da administração, podendo ser tomada (erroneamente, a nosso juízo) como o seu objeto. Inicialmente concebida como uma associação de pessoas para alcançar objetivos pelo emprego coordenado do seu trabalho, a organização deixou de ser vista em função das relações sociais e de trabalho e passou a dominar, ela mesma, a maneira como enxergamos essas relações (PERROW, 1991). A organização foi reificada, isto é, uma abstração que corresponde ao conjunto das ações e relações de trabalho foi naturalizada como um ente ou, para usar um termo mais filosófico, como uma coisa-em-si.

92 Referência ao texto de Marcos 2:21: “Ninguém cose remendo de pano novo em vestido velho; do contrário o

Vejamos, por exemplo, como um dos mais importantes profetas do management, Peter Drucker, coloca a empresa em primeiro plano na lista de preocupações da sociedade:

Pode até dizer-se sem muito exagero que a corporação é realmente social e politicamente a priori [...] a sociedade deve insistir na preservação da ‘preocupação contínua’ [a corporação] e deve, se necessário, sacrificar os direitos individuais dos acionistas, credores, trabalhadores e, em última análise, até mesmo dos consumidores. (DRUCKER, 1946/1993, p. 21, tradução nossa).

No cotidiano, a reificação (des)aparece através de metonímias ou substituições na fala corrente que ocultam agentes e seus interesses concretos. Fala-se, por exemplo, em ‘objetivos da empresa’ quando se trata, na verdade, de interesses dos proprietários e dos administradores ou então de um ‘mercado insatisfeito’, quando se trata apenas de capitalistas contrariados. Nesse contexto, até mesmo as noções de desenvolvimento e progresso passam a se identificar imediatamente com o desenvolvimento da eficiência e da produtividade das empresas, que passam a ser a unidade básica de significação da sociedade.

No entanto, quando as empresas passam de objeto a sujeito da sociedade, obriga os trabalhadores a fazerem o caminho oposto, isto é, a deixarem a posição de sujeitos para tornarem-se objetos. Essa objetificação é experimentada concreta e subjetivamente pelos indivíduos na forma de alienação. Por outro lado, também é concreta e objetivamente experimentada pelo capital na forma dos problemas clássicos da administração da força de trabalho: absenteísmo, adoecimentos, baixa motivação, falta de comprometimento etc. A saída que o management oferece para essas velhas questões é reinterpretar o problema da alienação como um problema de significado e propósito no trabalho.

Ora, o management vem tentando humanizar as empresas há muito tempo. Bakan (2008) mostra como, diante do crescimento do poder e da insensibilidade desalmada das grandes corporações, foi necessário que elas se tornassem mais pessoais, algo não só passível de ser compreendido pelas pessoas, mas também passível de ser amado.

A General Motors, por exemplo, usou propagandas que, nas palavras da agência responsável, visavam ‘personalizar a instituição chamando-a de FAMÍLIA’. ‘A palavra corporação é fria, impessoal e objeto de mal- entendidos e de falta de confiança’, [...] mas ‘Família é pessoal, humano, amigável. Essa é a nossa visão da General Motors – um grande lar agradável’93

. (BAKAN, 2008, p. 20, grifo do autor).

Mas então, qual seria a novidade da empresa que traz nas mãos o futuro? Por um lado, nenhuma, mas, por outro lado, é possível perceber uma reinterpretação da humanização da

93 Curiosamente, a General Motors propôs aos trabalhadores brasileiros um pacote de flexibilizações que

incluem: terceirização irrestrita para qualquer função, jornada de trabalho intermitente, aumento da jornada de trabalho, redução de 21% do piso da categoria, redução de um terço do adicional noturno e o não pagamento da participação nos lucros e resultados dentre outros itens (FERNANDES, 2019).

empresa na forma de um fetichismo mais pronunciado. O que o management propõe agora não é somente a filiação a uma empresa humanizada nos seus próprios termos, mas a humanização da empresa pela filiação do próprio trabalhador. Em outras palavras, a empresa que traz nas mãos o futuro não se apresenta como uma personalidade humanizada, porém pronta e acabada, à qual o trabalhador deve vincular-se. Apresenta-se como a expressão da própria subjetividade do trabalhador vivo. Isso, evidentemente, só pode se dar de maneira fluida, processual e, por isso mesmo, carece de toda a flexibilidade que puder ser aportada ao sistema. Mas, essa forma processual é a força e também o calcanhar de Aquiles dessa mistificação.

Com a empresa que traz nas mãos o futuro, o management parece querer recuperar a noção hegeliana de realização humana por meio da alienação – que, aqui, seria melhor compreendida pela expressão exteriorização. Diz Hegel:

[...] a consciência-de-si só é ALGO, só tem REALIDADE, na medida em que se aliena a si mesma: com isso se põe como universal, e essa sua universalidade é sua vigência e efetividade. (HEGEL, 1807/2014, p. 332, grifos do autor).

Conclui, então, o management que, se a maneira pela qual as pessoas podem ser no mundo é exteriorizando seus propósitos, para canalizar essa força é preciso apenas “ancorar a vida social deles [os trabalhadores] e seu senso de valor próprio à empresa.” (ARTIGO 2-121).

A própria noção do que é a empresa e do que são seus processos – inclusive de trabalho – precisa ser então ‘descongelada’, ‘flexibilizada’ para dar lugar às formas cada vez mais individuais de expressão objetiva da subjetividade dos trabalhadores. E, no entanto, tudo isso é feito sob todos os determinantes inflexíveis de reprodução e acumulação do capital, tais como o tempo de trabalho, como vimos ao examinarmos a empresa que traz nas mãos o futuro.

Faltou ao management apenas reconhecer a crítica e a inversão fundamental feita pelos jovens hegelianos e, em particular, por Marx. Emprestar a uma abstração, como a empresa, a própria humanidade precisa ser seguido de uma reapropriação, ou subjetivação, do objeto. Do contrário, trata-se apenas de fetichismo mistificador, experimentado subjetivamente como alienação ou a perda de si mesmo.