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O problema da subjetividade em Mar

2.3 Discussão: a investigação dos significados do trabalho pela administração sob a lente teórica marxiana

2.3.2 O problema da subjetividade em Mar

O problema da subjetividade em Marx diz respeito à possibilidade e à adequação de utilizar o pensamento marxiano para investigar temas não objetivos, concernentes à subjetividade dos trabalhadores como, por exemplo, os significados do trabalho. O materialismo de Marx, bem como o corolário mais famoso, porém não necessariamente acertado, do seu suposto determinismo econômico, são, possivelmente, os principais argumentos contra essa utilização da sua teoria. Mas esses argumentos não se sustentam mediante a observação mais atenta da teoria marxiana, de seus pressupostos e suas determinações.

O materialismo de Marx, como já visto, não implica em um descarte da subjetividade. Se, como ocorre de fato, Marx não trata a alienação como simples sentimento psicológico (PETROVIC, 1991a, p. 14-15), isso não quer dizer que não haja um componente psicológico na alienação. A premissa materialista implica apenas que o ponto de partida para entender as questões sociais passa, necessariamente, pelas questões objetivas envolvidas na produção e reprodução material dos homens e das relações sociais decorrentes dessa produção e reprodução material. Por outro lado, se não renega a subjetividade, o materialismo e as determinações dele derivadas colocam o trabalho como aspecto central para compreensão da realidade.

Nesse sentido, Marx é um autor importante justo porque trata de temas da vida cotidiana sob uma perspectiva que não é, necessariamente, óbvia, isto porque o faz sob o ponto de vista do trabalho dos homens; não há componente abstrato da existência humana que não seja explicado pelo

trabalho e este é a base a partir da qual o desenvolvimento da teoria ganha corpo e sentido. (RANIERI, 2011, p. 127).

O que o materialismo permite, de maneira muito dialética, é o aprofundamento da investigação sobre os significados, pois pretende superar a mera representação – limite até mesmo da crítica e das denúncias moralistas porém abstratas – em busca de determinações concretas.

Um suposto determinismo econômico, por outro lado, implicaria necessariamente num fetichismo da economia e na consequente reificação dos trabalhadores. Esse é um ponto sobre o qual o próprio Marx tece críticas a respeito da economia política.

[Para David Ricardo] as nações são apenas oficinas de produção, o homem é uma máquina para consumir e produzir; a vida humana, um capital; as leis econômicas regem de forma cega o mundo. Para Ricardo os homens são nada, o produto é tudo. (MARX, 1844/2004c, p. 92).

Por outro lado, os momentos da estrutura econômica e da superestrutura41 jurídico-política não são tão apartados como alguns supõem, mas atuam reciprocamente e precisam, ambos, serem adequadamente compreendidos para que sejam corretamente compreendidas as dinâmicas sociais. “[...] as formas de produção e reprodução da vida apresentam-se também como formas de representação que têm por objetivo a ordenação dessa mesma vida humana.” (RANIERI, 2011, p. 138).

O materialismo de Marx não trata de opor uma concepção puramente material ao idealismo, mas de integrar dialeticamente o material e a consciência humana. Isso é evidente a partir da sua preocupação com a alienação e a emancipação humanas que também são experiências subjetivas. “Não se sustenta a crítica ao pensamento Marxiano que enxerga neste uma irrelevância dos elementos culturais e simbólicos, sobretudo em favor de um determinismo econômico que se expressa em uma teoria evolucionista fatalista.” (NETTO, 2011, p. 14-15).

Chegaríamos ao mesmo ponto partindo da noção de história que contraria qualquer forma de determinismo, mas implica no reconhecimento do caráter contingente e socialmente construído (que não deve ser confundido com idealmente construído), inclusive no plano simbólico. Em suma, a posição materialista não nega que haja uma relação dialética entre o

41 A expressão superestrutura não é exatamente uma determinação marxiana, mas uma ilustração utilizada por

ele para explicar seu materialismo. Essa posição é atestada pelas raríssimas ocorrências dessa ilustração nos textos de Marx, notadamente na Contribuição à crítica da economia política. (MARX, 1859/2008a, p. 47-48). Nossa utilização aqui, no contexto da discussão sobre algumas críticas ao pensamento de Marx que inviabilizariam sua aplicação à investigação dos significados do trabalho, se dá justamente pela ênfase dada a essa ilustração estrutura-superestrutura pelos críticos de Marx que desejam apontar seu determinismo econômico e seu materialismo como uma desconsideração completa pelas questões subjetivas e de concepções mentais.

material e a consciência, mas combate a crença idealista de que o ideal cria e/ou determina o real.

A questão da subjetividade em Marx é abordada, por exemplo, na dialética objetivação-subjetivação e na experiência de completude do ser humano (genérico) ao subjetivar as obras (trabalho) de outros seres humanos (objetivações) que o precederam. Essa concepção marxiana sintetiza o materialismo (objetivação anterior) e a construção social, a incorporação subjetiva dessa objetividade anterior como meio de ser, de experimentar a completude (MARX, 1844/2004c).

Marx demonstrou compreender a importância dessas concepções ideológicas na sua relação dialética com as questões sociais/materiais de produção. Essa ligação indica que há importância/relevância no entendimento destas últimas e proveito na sua investigação para compreender a sociedade como um todo (materialidade e subjetividade). “Na época da emergência triunfante do capitalismo, as concepções ideológicas prevalecentes tinham de ser aquelas que assumiriam uma atitude afirmativa em relação às tendências objetivas desse desenvolvimento.” (MÉSZÁROS, 2016, p. 37). Ou seja, Marx preocupa-se também com as concepções mentais e representações, com tudo aquilo que povoa a superestrutura simbólica. Sua própria abordagem teórico-metodológica enfatiza a dialética aparência-essência e seu objetivo teórico é a denúncia dos fetichismos e reificações42. A investigação dos aspectos simbólicos não é uma fuga do plano concreto já que estas são questões reais. A superestrutura correspondente às concepções mentais (coletivas/sociais) é o reino dos significados (do trabalho, inclusive). E é nessa superestrutura que tomamos consciência das questões e as enfrentamos43.

A teoria marxiana busca explicar a vida social a partir da produção e reprodução da vida material. Sua base, portanto, está localizada na estrutura ou infraestrutura econômica. As teorias críticas, inspiradas em Marx, tratam da crítica à produção e reprodução cultural, situando-se, portanto, na superestrutura ideológica. O estudo dos significados do trabalho

42 “A luta por concepções mentais apropriadas (tidas em geral como ‘meramente’ superestruturais, embora Marx

diga especificamente que esse é o reino em que os homens ‘tomam consciência’ das questões e ‘as enfrentam’) tem um papel importante nisso. Por que outra razão Marx se esforçaria tanto para escrever O CAPITAL? Por isso, esse momento em que Marx situa concepções mentais, consciência, intencionalidade e comprometimento não é de modo algum uma aberração em relação à dinâmica da evolução social e da transformação da natureza, e da natureza humana, por meio do trabalho. Ao contrário, ele é fundamental. [...] No centro da sensibilidade crítica de Marx reside a ideia de que os seres humanos podem muito facilmente se tornar prisioneiros de seus próprios produtos e projetos, para não falar de suas falsas concepções de mundo.” (HARVEY, 2013, p. 116- 117, grifo do autor).

43 “[...] convém distinguir sempre a transformação material das condições econômicas de produção – que podem

ser verificadas fielmente com ajuda das ciências físicas e naturais – e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas sob as quais os homens adquirem consciência desse conflito e o levam até o fim.” (MARX, 1859/2008a, p. 48).

situa-se na articulação entre a infra e a superestrutura, posto que o trabalho em si é concreto e infraestrutural, ao passo que seus significados e representações são superestruturais.

2.3.3 As conexões entre significados do trabalho e a teoria marxiana