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Identificação das implicações

3 Considerações metodológicas: recuperando o método de Mar

3.2 Os procedimentos da investigação marxiana

3.2.2 Identificação das implicações

A partir da base textual, Marx procede a análise desses textos no nível lógico- argumentativo desenvolvendo as ideias contidas no próprio texto para identificar suas implicações de maior alcance. Sem perder de vista os objetivos da crítica – identificar as mistificações dos argumentos analisados e caracterizar as relações sociais como históricas, no sentido de sua transitoriedade –, o ponto de partida é a exposição detalhada do objeto investigado. No caso específico de Marx, esse objeto era simultaneamente, a economia política e a sociedade industrial capitalista que essa ciência pretendia explicar.

Nos seus textos, Marx faz inúmeras referências e, em alguns casos, extensas citações, de pensadores que o antecederam. Somente quando demonstra compreender as ideias daqueles autores é que Marx inicia sua crítica, identificando fragilidades e contradições internas nos argumentos criticados para depois, no momento de síntese, apresentar sua própria explicação. É um caminho característico: partindo de um determinado aspecto da realidade e da sua formulação teórica analisada, desenvolvem-se as consequências desses aspectos até o seu limite, para evidenciar seus verdadeiros sentidos (GORENDER, 2013). O procedimento é situar as premissas, os argumentos, enfim, o terreno criticado para então superá-lo. Marx esclarece: “[...] a primeira crítica de toda ciência está necessariamente implícita nas premissas

62 Consideramos aqui apenas o primeiro volume de O capital, pois, tendo sido o segundo e o terceiro volumes

da ciência por ela combatida [...]” (MARX; ENGELS, 1845/2003, p. 43). Eis uma passagem que ilustra esse procedimento, quando ele se detém sobre o interesse privado:

não queremos arrazoar com a visão de mundo do interesse próprio, mas sim obrigá-la a ser coerente. Não queremos que ela reserve para si a sabedoria das coisas do mundo e deixo para os demais as fantasias. Façamos com que o espírito sofista do interesse privado se detenha por um instante em suas próprias consequências. (MARX, 1842/2017, p. 100).

Esse procedimento é inteiramente diferente daqueles de fundo positivista. Não propõe um conjunto novo de premissas, mas desenvolve as já existentes e explora suas contradições para identificar novas implicações63. O conhecimento novo deve partir da crítica do velho. No sentido prático que Marx sempre procurou dar à sua teoria, ele dizia que

[...] todos terão de admitir para si mesmos que não têm a ideia exata do que o futuro será. Por outro lado, é precisamente a vantagem da nova tendência que nos não antecipemos dogmaticamente o mundo, mas apenas desejemos encontrar o novo mundo através da crítica do velho. (MARX, 1843/2010b, p. 142, tradução nossa).

Outros exemplos ilustram como Marx desenvolve as próprias implicações dos argumentos criticados para desvendar seus fundamentos implícitos e suas mistificações. Nos debates sobre a lei do furto da madeira, ele chama a atenção para o fetichismo com que se tratava a questão, opondo o que parecia ser o direito das árvores ao direito consuetudinário dos necessitados que seriam convertidos imediatamente em criminosos com a nova norma.

Não há maneira mais elegante e ao mesmo tempo mais simples de derrubar o direito das pessoas em favor do direito das árvores novas. Se, por um lado, o parágrafo for aprovado, será necessário cortar uma massa de pessoas sem intenção criminosa da árvore verdejante da moralidade e lançá-la qual madeira seca no inferno da criminalidade, da infâmia e da miséria. Se, por outro lado, o parágrafo for rejeitado, haverá a possibilidade de que algumas árvores novas sofram maus-tratos [...] Os ídolos de madeira obtêm a vitória e as vítimas humanas são abatidas. (MARX, 1842/2017, p. 79-80).

Marx fazia esses jogos de linguagem para mostrar os fetichismos e reificações nos argumentos analisados. Eis como ele sintetizou a dinâmica das relações sociais de produção no período de concentração fundiária: “assim, através de sucessivas transformações, a propriedade fundiária teve como resultado na Escócia a expulsão dos homens pelas ovelhas.” (MARX, 1847/2017, p. 109).

Desenvolver as implicações dos argumentos criticados permite não só desvendar suas mistificações, mas também expor fundamentos implícitos que, por enfraquecerem o argumento ou simplesmente por serem reprováveis, não aparecem nas formulações originais.

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Também nesse ponto vê-se a assinatura hegeliana. Engels assim a reconhece: “desde a morte de Hegel, não houve quase nenhuma tentativa de se desenvolver um ramo da ciência em sua própria coerência interna.” (ENGELS, 1859/2008, p. 281).

Marx fez isso desde o início nas suas críticas à economia política. Em 1844, por exemplo, ele demonstrava o caráter antissocial e mesmo hostil dos indivíduos submetidos ao modo de produção capitalista (corporificado por Marx na própria economia política). “Na economia política, em todos os lugares encontramos o antagonismo hostil dos interesses, a luta, a guerra, como base da organização social.” (MARX, 1844/2004c, p. 98). Ou, ainda, “os únicos motivos que colocam em movimento a economia política são a AVAREZA e a GUERRA ENTRE OS AVARENTOS, a COMPETIÇÃO.” (MARX, 1844/2004c, p. 111, grifos do autor). Superando o

momento filosófico da década de 1840 e chegando à sua crítica social mais ácida e concreta em O capital, Marx verificava uma implicação tétrica do capitalismo:

As autoridades sanitárias, as comissões de inquérito industrial, os inspetores de fábrica repetem reiteradamente a necessidade dos 500 pés cúbicos [medida mínima de ar por trabalhador para manter sua saúde] e a impossibilidade de impô-los ao capital. Com isso, eles declaram, na realidade, que a tuberculose e outras doenças pulmonares que atingem os trabalhadores são condições vitais do capital. (MARX, 1867/2013, p. 553).

Apoiando-se em Roy Bhaskar, Duayer (2015) identifica a crítica ontológica marxiana precisamente com o procedimento que estamos descrevendo. Para aqueles autores, a crítica ontológica “[...] consiste em tomar as ideias do outro e mostrar que tais ideias são insubsistentes (falsas, superficiais etc.) em seus próprios termos. Depois disso, cabe mostrar por que essas ideias, mesmo sendo falsas e/ou superficiais, têm circulação social.” (p. 134).