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3 Considerações metodológicas: recuperando o método de Mar

3.1 Sobre o método: dialética de Hegel, dialética de Mar

3.1.1 Descenso e ascenso

Ao nível do processo de investigação – e, em parte, do encadeamento de ideias na exposição – o método de Marx se caracteriza por duas fases: uma que pode ser denominada

58 Jones (2017, p. 417) sugere que, ao deixar de considerar apenas as contradições internas, necessárias e

inevitavelmente suprassumíveis, a dialética de Marx permite subordinar um elemento a outro numa relação hierárquica (que, no exemplo citado, seria a subordinação do momento da circulação ao momento da produção). Essa formulação desagua numa dialética determinista. Harvey (2013, p. 192-198) apresenta um argumento diferente. Ele alerta sobre o perigo de colocar um dos elementos como determinante de todos os outros na teoria social (p. 193) e sugere, utilizando como exemplo a ilustração base-superestrutura, que a intenção de Marx não era operar esses modelos “[...] de modo mecânico ou causal, mas sim dialético.” (p. 196). A representação de Harvey permite compreender a crítica da economia política e a aparente ênfase nas condições materiais de produção dada por Marx não como sintomas de seu determinismo, mas como uma porta de entrada utilizada por ele para compreender a sociedade.

de descenso e outra que pode ser denominada de ascenso (HARVEY, 2013, p. 17-18). Vejamos como o próprio Marx, em uma das passagens mais importantes para a compreensão de seu método, apresenta esse processo:

Parece mais correto começar pelo que há de concreto e real nos dados; assim, pois, na economia, pela população, que é a base e sujeito de todo o ato social da produção. Todavia, bem analisado, esse método seria falso. [...] Se começasse, portanto, pela população, elaboraria uma representação caótica do todo e, por meio de uma determinação mais estrita, chegaria analiticamente, cada vez mais, a conceitos mais simples; do concreto representado chegaria a abstrações cada vez mais tênues, até alcançar as determinações mais simples. Chegando a esse ponto, teria que voltar a fazer a viagem de modo inverso, até dar de novo com a população, mas dessa vez não como uma representação caótica de um todo, porém como uma rica totalidade de determinações e relações diversas. O primeiro constitui o caminho que foi historicamente seguido pela nascente Economia Política. [...] O último método é manifestamente o método cientificamente exato. O concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso. Por isso, o concreto aparece no pensamento como processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida, embora seja o verdadeiro ponto de partida e, portanto, o ponto de partida também da intuição e da representação. No primeiro método, a representação plena volatiliza-se na determinação abstrata; no segundo, as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto por meio do pensamento. Assim é que Hegel chegou à ilusão de conceber o real como resultado do pensamento que se absorve em si, procede de si; enquanto o método que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto não é senão a maneira de proceder do pensamento para se apropriar do concreto, para reproduzi-lo mentalmente como coisa concreta. (MARX, 1857/2008b, p. 260-261).

O descenso, portanto, seria a fase na qual parte-se da realidade aparente para chegar às suas categorias mais simples e fundamentais através de uma crítica rigorosa. De posse dessas categorias, o investigador reconstrói mentalmente a realidade a partir da síntese progressiva das determinações encontradas, na fase do ascenso. Nesse processo, parte-se da aparência da realidade e retorna-se à mesma realidade descobrindo-lhe a essência, dando-se, durante todo esse percurso, especial atenção ao desvendamento das mistificações da aparência (HARVEY, 2013, p. 17-18; 195).

Há aqui uma aparente dificuldade da qual precisamos tratar. Quando lemos no trecho anterior que “o último método é manifestamente o método cientificamente exato” (MARX, 1857/2008b, p. 260) temos a impressão que Marx reconhece apenas a fase de ascenso como método verdadeiro. Outra passagem, agora no prefácio para a Contribuição à crítica da

economia política, reforça essa impressão. Quando ele afirma que suprimiu a introdução aos Grundrisse “[...] porque, depois de refletir bem a respeito, me pareceu que antecipar

resultados que estão para ser demonstrados poderia ser desconcertante e o leitor que se dispuser a me seguir terá que se decidir a se elevar do particular ao geral.” (MARX,

1859/2008a, p. 47-48). Um leitor acostumado à filosofia de Hegel perceberia imediatamente que o movimento ‘do particular ao geral’ corresponde ao percurso hegeliano que conduz a conceitos de cada vez maior universalidade. Para tornar as coisas mais difíceis, esse mesmo movimento do particular ao geral corresponde à ordem de exposição, sendo essa a feição que as ideias de Marx tomam nos seus escritos (HARVEY, 2013, p. 17-18). Assim, tanto em Hegel quanto em Marx, embora ambos partam do objeto, haveria apenas a fase de ascenso.

Esse possível equívoco é esclarecido pelo próprio Marx:

A investigação tem de se apropriar da matéria em seus detalhes, analisar suas diferentes formas de desenvolvimento e rastrear seu nexo interno. Somente depois de consumado tal trabalho é que se pode expor adequadamente o movimento real. Se isso é realizado com sucesso, e se a vida da matéria é agora refletida idealmente, o observador pode ter a impressão de se encontrar diante de uma construção a priori. Meu método dialético, em seus fundamentos, não é apenas diferente do método hegeliano, mas exatamente seu oposto. (MARX, 1867/2013, p. 90).

Marx não suprime o descenso, mas, no caso concreto da sua crítica, ele põe, como ponto de partida do ascenso, as categorias que são resultado do “[...] caminho que foi historicamente seguido pela nascente Economia Política.” (MARX, 1857/2008b, p. 260). Ou seja, porque procede dessa maneira e porque incorpora a inovação metodológica da fase de ascenso é que Marx precisa tão fundamentalmente das categorias como ponto de partida da sua exposição. Sua crítica teórica incorpora tanto as categorias quanto a própria teoria criticada59, desvenda- lhes as mistificações e reproduz mentalmente a realidade a partir de um movimento de evidente síntese dialética.