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Identificação das mistificações

3 Considerações metodológicas: recuperando o método de Mar

3.2 Os procedimentos da investigação marxiana

3.2.4 Identificação das mistificações

Todo o esforço anterior de análise das implicações e das contradições tem como objetivo desvendar as mistificações da realidade. Estamos agora, novamente, no campo da discussão aparência-essência. Marx rejeita tanto o idealismo metafísico – que permite às ideias moverem-se independentemente da realidade – quanto, também, o empirismo estrito – no qual apenas aquilo que é imediatamente apreensível do objeto constitui a sua verdade. Essa posição é sintetizada quando ele denuncia o economista político que “[...] se orgulha de seu apego às aparências que acredita serem últimas. Por que ter ciência então?” (MARX, 1868/2010f, p. 69).

A primeira batalha é contra as mistificações imediatas, expressas principalmente em metonímias, e também contra a armadilha de considerar metáforas como substitutas da própria ordem do real65. Por exemplo, a mão invisível de Adam Smith, uma das mistificações mais conhecidas da economia política, é caracterizada por Marx como “[...] uma relação que, como diz um economista inglês, paira sobre a terra igual ao destino dos antigos e distribui com mão invisível a felicidade e a desgraça entre os homens, funda e destrói impérios, faz povos nascerem e desaparecerem [...]” (MARX; ENGELS, 1845/2007, p. 39). O objetivo é

65 Sobre essa questão da substituição do real pela metáfora e a consequente incorporação das limitações contidas

fazer perceber quão absurdo é substituir a ação humana determinada, o trabalho dos homens sobre a natureza e sobre os próprios homens, pela figura de uma mão invisível.

Mas há um nível mais elevado no combate às mistificações, a recusa a universalizações abstratas que não venham acompanhadas da identificação clara de suas determinações ou de seus momentos particulares, ou o que Paço-Cunha (2010a; 2010b) caracterizou como abstrações arbitrárias. Já em 1844, Marx denunciava a reificação operada pela economia política que “[...] analisa o trabalho abstratamente como uma coisa.” (MARX, 1844/2004c, p. 77). Mas, se em 1844 ele apenas denuncia o problema, depois da formulação de sua própria perspectiva materialista entre 1845 e 1846, Marx já está em condições de não só denunciar o emprego das abstrações arbitrárias, mas também de apontar a saída para esse problema. É assim, por exemplo, que Marx critica o conceito de sociedade de Proudhon:

O que é, afinal, esse Prometeu ressuscitado pelo sr. Proudhon? É a sociedade, são as relações sociais fundadas no antagonismo das classes. Essas relações não são relações do indivíduo com o indivíduo, mas do operário com o capitalista, do arrendatário com o proprietário fundiário etc. Suprimidas essas relações, estará suprimida a sociedade, e o Prometeu não será mais que um fantasma sem braços ou pernas, isto é, sem fábrica, sem divisão de trabalho, sem tudo aquilo afinal que lhe foi atribuído em princípio para obter esse excedente de trabalho. (MARX, 1847/2017, p. 93-94).

Anos mais tarde a mesma formulação reaparece na introdução 1857:

A população é uma abstração se deixo de lado as classes que a compõem. Essas classes são, por sua vez, uma palavra sem sentido se ignoro os elementos sobre os quais repousam, por exemplo: o trabalho assalariado, o capital etc. Esses supõem a troca, a divisão do trabalho, os preços etc. O capital, por exemplo, não é nada sem trabalho assalariado, sem valor, dinheiro, preços etc. (MARX, 1857/2008b, p. 260).

O contrário de uma mistificação, portanto, é a identificação dos traços constitutivos do objeto, de suas determinações, e é a síntese dessas determinações que dará a concretude ao conceito, à reprodução mental do objeto. Esses exemplos permitem entender a diferença entre tomar um conceito como abstrato e tomá-lo como concreto, ainda que seja necessário utilizar- se de abstrações razoáveis para lidar com as determinações (por exemplo: classes sociais). Não há como fugir da abstração como a forma necessária pela qual a mente apreende o real, mas é necessário fugir da abstração como momento indiferenciado da universalidade.

A produção em geral é uma abstração, mas uma abstração razoável, pelo fato de que põe realmente em relevo e fixa o caráter comum, poupando-nos, portanto, as repetições. Esse caráter geral, entretanto, ou esse elemento comum, discriminado pela comparação, está organizado de uma maneira complexa e diverge em diversas determinações. (MARX, 1857/2008b, p. 242).

Colocado de outra maneira, Marx explica num exemplo simples e concreto a respeito da produção, o problema da universalidade abstrata (e até mesmo autônoma) que já havia formulado desde A sagrada família (MARX; ENGELS, 1845/2003, p. 72).

Em resumo: todos os graus de produção possuem em comum certas determinações que o pensamento generaliza; mas as chamadas condições gerais de toda produção não são outra coisa senão esses momentos abstratos, os quais não explicam nenhum grau histórico real da produção. (MARX, 1857/2008b, p. 246).

Quando Marx rejeita uma formulação abstrata mistificadora, seja da sociedade, seja do indivíduo, ele sinaliza que a superação das mistificações decorre da busca por um pensamento que opere em um nível mais concreto e pleno de determinações.

Nessa cruzada contra as mistificações, Marx também se vale de um procedimento comum nas técnicas de análise de conteúdo, a paráfrase (FLICK, 2009, p. 291-294). Em A

ideologia alemã, por exemplo, ele reescreve um trecho de Max Stirner para, utilizando-se da

identificação das implicações e das contradições, revelar-lhes o sentido mistificador.

Quadro 2 (3) – Desvendamento de mistificação através de paráfrase

Texto analisado (Max Stirner) Paráfrase de Marx REALISTA, a criança era cativa DAS COISAS

DESTE MUNDO até o momento em que, pouco a pouco, conseguiu descobrir o que havia POR DETRÁS DESSAS MESMAS coisas. O adolescente era IDEALISTA, inspirado por pensamentos, até o momento em que se esforçou para tornar-se homem, o homem egoísta, que dispõe das coisas e dos pensamentos a seu bel-prazer e coloca seu interesse pessoal acima de tudo. Enfim, e o idoso? Quando eu me tornar um, então ainda haverá tempo suficiente para falar disso.

A criança era REALMENTE cativa DO MUNDO DE SUAS COISAS até o momento em que, pouco a pouco (uma escamoteação tomada de empréstimo para o desenvolvimento), ela conseguiu DEIXAR ESTAS MESMAS COISAS ATRÁS DE SI. O adolescente era imaginativo, carente de pensamentos devido ao entusiasmo, até o momento em que o homem ergueu- se por sobre ele, o BURGUÊS egoísta, com quem as coisas e os pensamentos dispõem de tudo a seu bel- prazer, porque o seu interesse pessoal coloca tudo acima dele. Enfim, e o idoso – ‘Mulher, o que eu tenho a ver contigo?’

Fonte: Adaptado de Marx e Engels (1845/2007, p. 132).

Vejamos, agora, como procede Marx na análise e a elucidação do conteúdo da passagem em questão:

Stirner concebe as diferentes fases da vida apenas como ‘autodescobertas’ do indivíduo, ‘autodescobertas’ estas que se reduzem sempre a uma determinada relação de consciência. Aqui, portanto, a vida do indivíduo se resume à diversidade da CONSCIÊNCIA. Naturalmente, as modificações físicas e sociais que ocorrem com os indivíduos e que produzem uma consciência modificada não guardam nenhum interesse para Stirner. É por isso que, em Stirner, a criança, o adolescente e o homem encontram sempre diante deles o mundo já pronto, do mesmo modo como eles simplesmente ‘encontram’ a ‘si mesmos’; absolutamente nada é feito para cuidar que qualquer coisa que seja possa ser encontrada. Mas nem mesmo a relação da CONSCIÊNCIA é concebida corretamente, e sim apenas em sua distorção especulativa. Razão pela qual todas essas figuras têm também uma atitude filosófica diante do mundo – ‘a criança como REALISTA’, ‘o adolescente como IDEALISTA’, o homem como unidade negativa de ambos, como

negatividade absoluta, o que fica evidente na frase conclusiva anteriormente citada. Aqui é revelado o segredo da ‘vida humana’; aqui é posto em evidência que ‘a CRIANÇA’ era apenas um disfarce do ‘REALISMO’, ‘o ADOLESCENTE’ um disfarce do ‘IDEALISMO’ e ‘o homem’ uma tentativa de solução dessa CONTRADIÇÃO FILOSÓFICA. Essa solução, essa ‘NEGATIVIDADE ABSOLUTA’, dá-se apenas – como se percebe desde já – com a condição de que o homem confie cegamente nas ilusões tanto da criança quanto do adolescente, ACREDITANDO, com isso, ter dominado o mundo das coisas e o mundo do espírito. (MARX; ENGELS, 1845/2007, p. 132, grifos do autor).

Superadas as aparências enganadoras, é possível então identificar de que trata efetivamente o texto analisado e, em certos casos, os interesses que estão por trás das mistificações. O esclarecimento, por meio das implicações e contradições é finalizado com uma análise lógica que termina por revelar a relação verdadeira sobre o que se trata. Retornando ao exemplo extraído dos comentários de Marx quanto à lei referente ao furto da madeira, ele termina por expor que, por trás de toda a discussão sobre a madeira, escondia-se na verdade, uma discussão sobre a propriedade. “Assim como isso representa um atentado evidente contra a árvore, representa um atentado evidente contra o proprietário da árvore. [...] Portanto, quem furta madeira cortada furta propriedade.” (MARX, 1842/2017, p. 80-81). Embora esse expediente apareça menos na crítica à ciência e à teoria – até mesmo porque, na crítica à economia política, Marx se ocupou de teóricos que considerava honestos intelectualmente – a desmistificação também permite verificar os enganos a que a própria ciência e os cientistas estão submetidos. Quando tratou da transição entre a economia política para a economia “vulgar” Marx verificou que

Não se tratava mais de saber se este ou aquele teorema era verdadeiro, mas se, para o capital, ele era útil ou prejudicial, cômodo ou incômodo [...] o lugar da investigação desinteressada foi ocupado por espadachins a soldo, e a má consciência e as más intenções da apologética substituíram a investigação científica imparcial. (MARX, 1867/2013, p. 86).

Por fim, porque parte da ontologia materialista histórica e porque adota o método de ascenso como momento necessário de retorno ao objeto concretamente determinado, o combate às mistificações finda necessariamente por caracterizar a prática social como critério de verdade. Esse momento é o corolário da relação (acoplamento) entre a dialética da realidade e a do pensamento, e funciona como um controle da abstração para que esta não se autonomize separando-se do objeto. As abstrações são necessárias, mas apenas e exatamente na medida em que permitem melhor conhecer a realidade concreta, ou seja, quando mesmo que se descreva algo que não se pode “tocar com as mãos” ou “ver com os olhos”, essa abstração designa a realidade concreta e efetivamente existente (ALTHUSSER, 2013, p. 42). A única maneira, portanto, de separar abstração necessária de abstração arbitrária é pela

equivalência do materialismo – no nível teórico – à prática social como critério de verdade – no nível metodológico. Separada da necessidade de se provar na práxis, ou seja, quando a divisão do trabalho científico alcança níveis elevados, a ciência fica suscetível de ser invadida por toda sorte de mistificações sob a forma de fetichismos alienantes (CARVALHO, 2017, p. 46).

4 Enfrentando o objeto: a miséria do management

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