• Nenhum resultado encontrado

As conexões entre significados do trabalho e a teoria marxiana Há, pelo menos, dois pontos de conexão entre a teoria marxiana e a investigação dos

2.3 Discussão: a investigação dos significados do trabalho pela administração sob a lente teórica marxiana

2.3.3 As conexões entre significados do trabalho e a teoria marxiana Há, pelo menos, dois pontos de conexão entre a teoria marxiana e a investigação dos

significados do trabalho. Ao conceito de trabalho em Marx, e sua centralidade ontológica, conectam-se as questões da consciência e da sociabilidade. À díade reificação-alienação conecta-se a utilidade dos significados do trabalho e da sua manipulação diante de interesses particulares.

O conceito de trabalho em Marx parte de um primeiro afastamento entre homem e natureza. No espaço criado por este afastamento se interpõe não a ação propriamente dita, no sentido de atividade, pois a atividade já existe nos animais ainda plenamente identificados com a natureza. O que se apresenta de novo nesse espaço é a consciência do trabalho, a consciência da mediação entre ser humano e natureza, um espaço de percepção e de expressão da vontade (ou intencionalidade). O trabalho humano, consequentemente, está ligado a essa consciência a seu respeito no qual opera o processo de atribuição de sentidos e significados. No homem sua atividade está entrelaçada com a sua consciência.

Provavelmente, uma das maiores contribuições da teoria de Marx está presente na forma como ele absorve a relação entre homem e natureza do ponto de vista da mediação da consciência, pois, na verdade, o que fala alto nesse caso nem é tanto o trabalho propriamente dito, mas a forma que ele assume quando a consciência se torna um fenômeno central na sua consecução. Isto é, toda atividade humana está determinada por certo gradiente de intencionalidade [...] (RANIERI, 2011, p. 130).

Essa consciência gerada pelo afastamento determina uma relação sujeito-objeto, ou seja, a exterioridade do objeto. Consequentemente, a superação dos problemas nessa relação dos sujeitos com seus trabalhos, como a alienação e, mais especificamente da fetichização e da reificação, seja no nível individual ou seja no nível social, precisa se dar no nível da consciência. Ou seja, como a alienação é um problema na exteriorização, a superação da alienação, em termos subjetivos, se dá pelo conhecimento adequado do objeto, ou seja, a superação do fetichismo (PETROVIC, 1991a, p. 12). A superação da alienação no trabalho, portanto, passa pela identificação de suas formas de representação fetichizadas – leia-se, a investigação dos seus significados socialmente compartilhados.

Ora, na teoria marxiana essas representações estão conectadas às condições materiais concretas que as determinam, às relações sociais de produção historicamente situadas e

datadas. Mas isso não significa um determinismo dessas condições materiais, ou seja, da forma como estão colocadas as classes sociais, as formas concretas e específicas de organização do trabalho, as tecnologias específicas utilizadas no trabalho. Tampouco a premissa materialista significa que a investigação deva se dar apenas ao nível dessa concretude das relações sociais. Trata-se do erro do determinismo econômico e/ou tecnológico, erroneamente associado à teoria marxiana. O modelo teórico de Marx, baseado tanto na totalidade quanto na dialética implica numa relação entre esses dois momentos. “[...] a propagação sinérgica das revoluções na tecnologia baseia-se, e ao mesmo tempo provoca transformações, nas relações sociais, nas concepções mentais e nos modos de produção [...] (HARVEY, 2013, p. 203).

Além disso, a centralidade do trabalho em Marx não serve apenas para as explicações estritamente econômicas, como a teoria valor-trabalho, serve também para caracterizar e explicar a sociabilidade e a constituição objetiva e subjetiva do ser humano. E essas são expressões representacionais, construídas social e historicamente inclusive no plano simbólico. Lembremos que, para Marx “[...] a essência humana não possui verdadeira realidade.”44,45

(MARX, 1843/2004b, p. 45).

Por outro lado, há relações muito concretas nas quais a reificação opera como uma mistificação útil para os interesses das classes que exploram o trabalho. A elaboração e divulgação de significados do trabalho, através de narrativas públicas, atua para naturalizar as relações sociais de produção vigentes. A asserção moral e ideológica sobre a centralidade do trabalho – que não se confunde nem com a centralidade ontológica do trabalho nem com a sua centralidade na teoria marxiana – é uma concepção mental necessária para determinados modos de produção, inclusive o capitalista (BENDASSOLLI, 2009, p. 3)46. Marx denuncia

44 Ao mesmo tempo, Marx observa historicamente essa relação subjetiva do homem com o trabalho, operando

portanto no campo dos sentidos do trabalho, para apreender a partir das mutações do mundo feudal para a ordem capitalista aquilo que dá (ou dava) sentido ao trabalho. O trabalho que possui sentido para Marx (1) funciona como mecanismo de integração e sociabilidade; (2) possui conteúdo significativo; e (3) ocorre dentro de uma esfera de autonomia, de não subsunção ao capital. Nas palavras do próprio Marx “no interior de tal circunstância [os resquícios da ordem feudal], o trabalho parece ainda ter um sentido SOCIAL, um significado de VERDADEIRA vida comunitária, ainda não chegou à INDIFERENÇA em relação ao seu conteúdo e à plena existência para si mesmo, ou seja, à abstração de todos os outros seres e, dessa forma, ao capital MOBILIZADO.” (MARX, 1844/2004c, p. 126, grifos do autor).

45 Essa necessidade de atualização histórica se desdobra na necessidade também de atualizar a própria teoria

marxiana. É o caso, por exemplo, da tese de que superada a propriedade privada, supera-se imediatamente sua consequente alienação humana. A experiência do socialismo real mostrou que essa superação não ocorre de maneira imediata (NETTO, 1981, p. 34).

46 “A centralidade subjetiva, psicológica, do trabalho consiste em uma

CONSTRUÇÃO DISCURSIVA que foi naturalizada para melhor ACOMODAR e JUSTIFICAR as condições nas quais o trabalho foi continuamente colocado no capitalismo desde seus primórdios no século XVIII e em seus respectivos arranjos institucionais. [...] essa centralidade funcionou como um tipo de metanarrativa pública sobre o sentido e o valor do trabalho na vida humana e que, a partir de meados do século XX, ela vem sendo desmontada, dando margem ao

esse tipo de apropriação das concepções mentais quando desvenda o relato idílico e distorcido sobre a acumulação primitiva. A exaltação da propriedade privada e, mais especificamente do nosso interesse, do trabalho como fontes de riqueza serviram para legitimar essa acumulação necessária ao surgimento da ordem capitalista. “[...] Direito e ‘trabalho’ foram, desde tempos imemoriais, os únicos meios de enriquecimento, excetuando-se sempre, é claro, ‘este ano’47. (MARX, 1867/2013, p. 786).

Parece-nos apropriado questionarmos também quão funcional é essa associação simbólica do trabalho ‘duro’ com a riqueza para pacificar a força de trabalho dando-lhe como perspectiva um sonho que somente difícil e excepcionalmente pode tornar-se realidade. A necessidade concreta para o controle ideológico sobre os significados do trabalho está em que

é preciso ter sempre à disposição força de trabalho acessível e em quantidade suficiente. E ela tem de ser não apenas acessível, mas também disciplinada e dotada de certas qualidades (isto é, qualificada e flexível, quando necessário). [...] O ‘despotismo’ do controle do trabalho depende de certa mistura de coerção e persuasão [...] (HARVEY, 2013, p. 304; 311).

A disputa entre as classes, que é de natureza material e concreta, espelha-se também na superestrutura. Uma vez que na divisão social do trabalho, a parte conceitual fica com os capitalistas e seus representantes, os administradores, “[...] toda a estrutura das concepções mentais, das relações sociais, da reprodução da vida, da relação com a natureza etc. é transformada segundo posições de classe.” (HARVEY, 2013, p. 212).

O sucesso dessa manipulação das concepções parece tão real que a redução do homem a um trabalhador-mercadoria, denunciada por Marx como implícita na economia política dos séculos XVIII e XIX, não é mais sequer ocultada. Mostra-se claramente na forma da autovalorização instrumentalizada do homem-empresa, empreendedor de si mesmo (do tipo Você S.A.) (BENDASSOLLI, 2009, p. 29).

Ao incorporar, o desejar isso, os atributos das organizações esse trabalhador imediatamente identifica-se com o objeto e dá lugar à sua própria reificação. Esse valor tem grande impacto na acumulação e reprodução do capital e, portanto, sua manipulação mediante os significados do trabalho condiciona concretamente a apropriação do excedente da produção. Está na superestrutura, portanto, uma parte da resposta para compreendermos como e por quem o valor é estabelecido e apropriado.

surgimento de vários ethos sobre aquele mesmo sentido e valor do trabalho na vida humana.” (BENDASSOLLI, 2009, p. 3, grifos do autor).

47 Marx continua, descrevendo como (1) contra o poder feudal instituiu-se a racionalidade por meio de

mecanismos como o direito civil e a burocracia, por exemplo; e (2) contra as corporações de ofício apelou-se para a liberdade e, logo adiante, às técnicas de administração para subjugar os trabalhadores. (MARX, 1867/2013, p. 787).

3 Considerações metodológicas: recuperando o