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3 DE COVA DA MOURA À UNIÃO EUROPEIA

3.2 Alto da Cova da Moura no século XXI

Segundo Francisco Cuberos-Gallardo, a entrada do bairro Alto da Cova da Moura no século XXI coincidiria com uma série de transformações estruturais que viriam a afetar profundamente a atitude dos atores envolvidos. Durante os últimos vinte e cinco anos, a invisibilização do bairro pelos orgãos de administração pública, ajudou a consolidar um problema com várias facetas, entre estas, um conflito de dimensões preocupantes sobre a titularidade dos terrenos.

O cenário de fundo era de uma cidade sob forte pressão de especulação imobiliária, cuja celebração da Expo’98 e a melhoria das infraestruturas havia contribuído para a valorização do solo, especialmente nas zonas centrais ou com boas conexões viárias. Neste contexto, segundo o autor, os terrenos do bairro de Cova da Moura experimentaram uma grande especulação no valor em potencial e passaram a ser alvos de desejos de consumo dos urbanistas e especuladores da indústria de construção civil (2017, p. 247-248).

Portanto, se nas épocas anteriores o sentimento era de abandono por parte das administrações públicas, no novo milênio, a sensação era de um crescente interesse por parte de diversas entidades (públicas e privadas) através de uma motivação ilegítima em torno da especulação imobiliária.

O bairro entrava assim em uma nova fase, aquela na qual a resistência organizada dos moradores não se deparava mais com a passividade institucional. Pois, foi ainda em 2000 que a Câmara Municipal de Amadora encomendou a um gabinete privado de arquitetura um estudo de caracterização e diagnóstico do bairro Alto da Cova da Moura. O estudo resultou, segundo Queiroz (2019, p. 141) em um Plano de Pormenor (2002) desenvolvido em uma perspectiva verticalizada e sem envolvimento da comunidade. O plano sugeria a demolição de 80% do bairro, condição à qual os moradores se opuseram de forma ostensiva.

A oposição frontal, por parte da população, encontrada pela implantação do plano de requalificação do bairro foi concretizada pela constituição de uma Comissão do Bairro que aglutinava várias associações locais – a Comissão de Moradores; a Associação de Solidariedade Social; o Centro Paroquial; e a Associação Cultural Moinho da Juventude (CUBEROS- GALLARDO, 2017, p. 248).

Em 2002, a Comissão do Bairro realizou um abaixo-assinado, no qual os moradores rejeitavam o Estudo Prévio para o Plano Pormenor aprovado pela Câmara Municipal de Amadora. Neste sentido, uniram-se no objetivo de contrariar o “Estudo” considerando ser mais adequado a reconversão do bairro respeitando a então realidade de ocupação do espaço, aproveitando o maior número de habitações existentes. O documento repudiava a “espoliação” do patrimônio edificado com luta e sacrifício sob a ameaça de destruição da sua vida comunitária de relevante valor social. 46

Posteriormente, em junho de 2005, durante um workshop (A requalificação do bairro é possível se a gente quiser) organizado pela ACMJ na Escola Secundária D. João V em Damaia (bairro contíguo a Cova da Moura), apresentou-se uma contraproposta que se assentava em uma perspectiva de reabilitação das construções existentes. As negociações para se chegar a este projeto foram marcadas por tensões e conflitos, tal como outros projetos levados a cabo no

46 Os moradores defendem que o bairro construído em um processo de “junta mõn” não deve servir à especulação

imobiliária que vem desumanizando e descaraterizando o país, sendo que lutam pela sua recuperação e reconhecimento como testemunho das competências e criatividade de uma comunidade de enraizados valores, em uma perspectiva de sustentabilidade para o contínuo desenvolvimento humano, tal como os exemplos dos bairros recuperados de La Boca de Buenos Aires – e o de Hundertwasser em Viena (abaixo assinado, 2002).

bairro, onde se propõe escutar as diferentes vozes, levando em consideração a heterogeneidade da composição da população.

A convicção de que o plano de requalificação não proporcionava a melhoria de vida dos moradores está presente nos discursos dos moradores até hoje. Muitos argumentam que se tratava de um projeto de gentrificação que pretendia rentabilizar a subida do valor dos terrenos da área, portanto o interesse não estava na população e sim na ganância expressa em muitos projetos de urbanização realizados no âmbito do capitalismo contemporâneo. A posição de apego ao bairro, ao modo de vida dos moradores tem-se traduzido em um discurso de reafirmação identitária.

Assim, segundo Cuberos-Gallardo, a partir das ações de mobilização no bairro, desenhou-se uma nova lógica, na qual a identidade cabo-verdiana passa a ser reativada como um eixo de resistência face à especulação subentendida nos planos institucionais de requalificação. Neste sentido, nestas duas últimas décadas, a história do bairro Alto da Cova da Moura tem sido uma sucessão de litígios estimulados pela onda especulativa dos proprietários dos terrenos e das empresas construtoras interessadas na área (2017, p. 248).

A pressão especulativa em torno do bairro tem respaldo em uma série de planos urbanísticos subsequentes que insistem na abordagem higienista antecipada pelo PER e pelo Plano de Requalificação da Câmara Municipal de Amadora. Podemos assim enumerar a iniciativa comunitária URBAN II (2000-2006) a qual visava promover estratégias inovadoras, que potenciassem a regeneração económica e social em zonas urbanas críticas, facilitando a identificação das boas práticas e intercâmbio de experiências na União Europeia.

Esta iniciativa foi patrocinada por fundos europeus e tinha o objetivo de requalificar o ambiente urbano e valorizar o espaço público; integrar a população africana; revitalizar o ambiente social; e valorizar o contexto socioeducativo da população juvenil (MALHEIROS & MENDES, 2007 citados em CUBEROS-GALLARDO, 2017, p. 249).

Outro programa foi o dos Bairros Críticos, que vigorou entre 2005 e 2012, implementado pelo governo português e que incluía o bairro Alto da Cova da Moura juntamente com outras áreas consideradas com graves problemas de vulnerabilidade urbana e social. Segundo Wildemeersch & Lages (2018, p. 196), esta iniciativa trouxe esperanças renovadas para os moradores do bairro, na medida em que na sua abordagem pretendia-se recuperar áreas urbanas críticas através da combinação das ações participativa (dos moradores) e técnica (do

corpo de arquitetos e afins). Contudo, a crise econômica de 2008 não foi favorável para que esta iniciativa consolidasse.

Na ótica de Francisco Cuberos-Gallardo, em essência, todas estas iniciativas se provaram portadoras de um discurso político que construía os bairros abordados como espaços anómalos e casos de urgência, nos quais dever-se-ia intervir. A construção deste discurso implicou em uma superexposição pública dos problemas do bairro pelo país, de forma que em pouco tempo, Cova da Moura passou a ser um exemplo paradigmático negativo de exclusão urbana e de falta de integração cultural (2017, p. 249).

Desde a segunda metade da década de 1990, fatores como o aumento do desemprego, combinados com os efeitos do longo processo de abandono do bairro favoreceram a instalação de um discurso institucional que denunciava um processo de tráfico de drogas. A este discurso também se juntaram elementos como episódios recorrentes de violência, presença de armas de fogo e a execução periódica de intervenções ostensivas através de unidades da Polícia de Segurança Pública (PSP). Este cenário conflituoso foi apropriado pelos meios de comunicação social, que por sua vez, contribuíram para a difusão de uma imagem muito negativa do bairro, imagem com a qual a maioria dos moradores não se identifica (HORTA, 2000; CARVALHEIRO, 2008, FERNANDES, 2016).

Durante toda a década de 2000, um cenário eminente de demolição pairou sobre o futuro do bairro. Esta situação parecia cada vez mais possível, na medida em que outros bairros semelhantes à Cova da Moura haviam sido totalmente deitados abaixo na grande Lisboa (vide Alves, 2013). No contra-argumento de vozes importantes no bairro (como por ex. Lieve Meersschaert), “os processos de realojamento na área metropolitana de Lisboa mostram que os problemas associados aos bairros degradados não foram resolvidos. Apenas se transferiram de local e, em alguns casos, agravaram-se porque as pessoas não se identificam com os lugares para onde foram viver”.

A antropóloga Carla Queiroz (2019, p. 146) argumenta que assim se forjaram os principais argumentos fundamentais para a luta empreendida pelos atores sociais locais a favor da requalificação do bairro. A posição explícita contra a demolição se assenta na ideia de que qualquer deslocamento, causado por um processo de demolição e realojamento, acarreta consequências negativas nomeadamente na manutenção das malhas de redes sociais e dos laços de vizinhança que definem, em grande medida, a relação com o espaço exterior e definem os

mecanismos de pertença e de construção identitária consolidados ao longo da trajetória histórica do bairro.

Na esteira de Queiroz, não obstante a iniciativa Bairros Críticos – Iniciativa Operações de Qualificação e Reinserção Urbana de Bairros Críticos – tenha sido suspensa em 2012, sem ter gerado resultados efetivos, sem dúvida, marca o percurso histórico do bairro. A iniciativa proporcionou uma experiência inovadora em Portugal, que ao pretender operar ao nível de qualificação e reinserção urbana, propunha dar importância crucial às populações moradoras e as associações locais. Assim, na ótica de Queiroz, a complexa logística de organização de grupos de trabalho, gabinetes e comissões de estudo proporcionou iniciativas empreendidas e concertadas entre agentes.

O papel dos agentes locais foi decisivo durante o processo, destacando a comunicação e articulação como um dos aspectos mais positivos da iniciativa, na medida em que resultaram em vários projetos de intervenção social, educativa, urbanística bem como melhorias no sistema de recolha de lixo e limpeza das ruas e a reconstrução do Polidesportivo Águas Livres (QUEIROZ, 2019, p. 143-144), espaço muito importante para a realização de diversos eventos desportivos (como torneios) e de cunho cultural (o Festival de Música de Kova M), como também algumas edições anteriores da Festa de Kola San Jon.

Em 2006, a Comissão do Bairro, em parceria com a Faculdade de Arquitetura de Lisboa, realizou um inquérito junto aos moradores do bairro Alto da Cova da Moura abordando as perspectivas de requalificação no âmbito da iniciativa lançada pelo governo. No mencionado inquérito conclui-se que 78.4% dos inquiridos manifestava vontade de permanecer no bairro, 14% desejava mudar-se para outro local e 3% optava por regressar à sua terra natal 47 (QUEIROZ, 2019, p. 142).

Em 2010, a Câmara Municipal de Amadora promoveu a abertura de um concurso para a elaboração de um novo plano de pormenor, no qual para além da Câmara Municipal e do Instituto de Habitação e de Reabilitação Urbana, também fez parte a Comissão do Bairro. A mesma empresa que havia proposto a demolição de 80% do bairro ganhou novamente a proposta, mesmo com o voto contra da Comissão do Bairro. Nesta proposta a proporção recomendada para demolição compreendia 60% do bairro.

A ideia de que a proposta não faz nenhum sentido é compartilhada pela maioria dos moradores com os quais tive a oportunidade de abordar o assunto, muitas vezes em conversas informais ou em reuniões de diferentes tipos realizadas na associação. A antropóloga Júlia Carolino, que trabalhou no Moinho até bem pouco tempo confessa que esta é uma questão muito complicada. Por um lado, porque as políticas de realojamento são historicamente marcadas por um processo ostensivo e coercitivo, por outro lado, a trajetória do bairro ensinou aos moradores e às associações a desenvolverem estratégias de enfrentamento e negociação, muitas vezes em situações de dissenso interno, através dos quais as soluções não são sempre consensuais (vide WILDEMEERSCH & LAGES, 2018).

A Comissão do Bairro havia deixado de operar em 2015. Entretanto, a família Canas, proprietária da maior parte do terreno onde jaz o bairro, veio de novo a reclamar a posse em 2016 reacendendo assim a polêmica em torno da questão urbanística do bairro. Por sua vez, a Comissão do Bairro retomou as atividades em 2017. De acordo com Queiroz (2019, p. 144), as associações locais sempre mantiveram um papel crucial em prol do desenvolvimento social e comunitário local bem como na defesa dos interesses dos moradores, principalmente na contínua promoção de formas individuais e coletivas de luta e resistência pela não demolição do bairro.

Estas formas de luta e resistência enfrentam a difusão abusiva de imagens que representam o bairro como um gueto perigoso, através de estratégias que priorizam uma série de iniciativas com vista a combater o estigma. São medidas que procuram difundir uma imagem alternativa do bairro, valorizando a história do bairro dignificando a sua população através de uma reativação da sua identidade.

Segundo Cuberos-Gallardo, deve-se notar que frente a estas estratégias coletivas e maioritárias apoiadas em grande parte pelo Moinho, tem surgido algumas vozes dissonantes, mesmo que em minoria, de atitudes de alguns moradores que se mostram críticos ao processo de afirmação crescente da caboverdianidade. Estes discursos aparecem em consonância com críticas desenvolvidas em torno da ideia de que a singularidade cultural do bairro pode ser um dispositivo para agravar os seus problemas (2017, p. 250).

Devemos ter em mente que o bairro é heterogêneo quanto à sua composição populacional, mas que a maioria dos seus moradores tem lançado mão de forma inequívoca das estratégias de reafirmação identitária em torno da Associação Moinho da Juventude, que vai além da caboverdianidade. Assim dentro do traçado do bairro, as ruas foram rebatizadas com

nomes que evocam lugares, expressões ou personalidades relevantes à história não somente de Portugal e Cabo Verde, mas também Angola, São Tomé e Príncipe, Guiné Bissau e Moçambique, constituindo assim um desafio radical ao modelo de ordenação urbana predominante e uma afirmação da legitimidade dos moradores sobre o território.

Assim, tanto os nomes das ruas como o nome dos estabelecimentos comerciais apresentam uma recuperação e visibilização de palavras em crioulo. A língua maioritária nas ilhas, como também nas cidades de Guiné-Bissau (TRAJANO FILHO, 1998), largamente considerada como um dialeto vulgar no discurso convencional, mas que em Cova da Moura ou Kova M, tal como nas sociedades crioulas de Cabo Verde e Guiné-Bissau é portadora de um sentimento de orgulho e reafirmação identitária (CUBEROS-GALLARDO, 2017, p. 151-152).