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3 DE COVA DA MOURA À UNIÃO EUROPEIA

4.2 Migração internacional e diáspora transnacional

Em 2005 realizou-se em Lisboa a International Conference on Cape Verdean Migration

and Diaspora. Evento organizado pelo Centro de Estudos de Antropologia Social (CEAS).

Como acadêmico convidado, Trajano Filho alerta então para o fato de os termos como “transnacionalismo”, “estudos de gênero”, “cultura popular” entre outros serem desdobramentos de transformações que nem sempre são bem compreendidos pela gíria banalizada da teoria da globalização. Neste contexto cita Hannerz, Tambiah e Amselle, enquanto recorda que os fluxos de pessoas, capital, informação, coisas e valores no tempo e no espaço não são exclusivos da contemporaneidade. Pois, a seu ver, na realidade aquilo que se expandiu foi a rede por onde estas coisas e pessoas fluem (TRAJANO FILHO, 2011, p. 156).

Este contexto de fluxos intensos tem provocado um sentimento efervescente cuja força provém da experiência de perda nostálgica “dos tempos antigos” que uniam os indivíduos ao território no qual viviam. Argumentamos que “aquele sentimento” era o que conferia a autenticidade das culturas locais. Neste contexto, hibridez, crioulização, diáspora, mestiçagem,

desconsiderou a persistência do racismo e o seu impacto nas comunidades locais, nos estados-nação e no sistema global (HARRISON, 1995, p. 47).

sincretismo, transculturação são alguns dos termos que a partir dos anos 1980 passaram para o uso comum, na antropologia, no intuito de lidar com a crise enfrentada pelas unidades básicas de análise: cultura e sociedade (BRUNER, 1996; CLIFFORD, 1994; HANNERZ, 1997 citados em TRAJANO FILHO, 2011, p. 157).

De acordo com Trajano Filho, estes termos, e as teorias subjacentes, competem entre si para oferecer uma melhor representação daquilo que seria uma condição da contemporaneidade, ou seja, a interpretação das sociedades e das culturas. Contudo, o uso deste novo arsenal terminológico associado à produção de um novo espaço de movimento como uma macro unidade básica de identificação e pertencimento se encontra menos ancorada no território:

La intensidade y la multiculturalidade de los desplazamientos crean espácios intersticiales, regiones escurridizas que no ofrecem ningún seguro para anclar el poder totalizante del Estado. (…) las fronteras son espácios de intersección donde se interrelacionam vários Estados nacionales, son zonas o regiones donde imperam la indistinción y las mezclas (HANNERZ, 1997 citado em TRAJANO FILHO, 2011, p. 158).

É assim que, para o antropólogo, os bairros cabo-verdianos em Lisboa e nas cidades da Nova Inglaterra representam de certa forma estas zonas francas nas quais se está simultaneamente em Portugal, nos Estados Unidos e em Cabo Verde em uma situação na qual a cultura passa a ser compreendida como um sistema de significação em intercâmbios permanentes com outros sistemas de significação. Marcada por uma fluidez extrema, variabilidade interna e ambiguidades de vários tipos, atuando na integração das pessoas em um sistema de relações instáveis (ibid.).

Segundo Friedman (1990), a consequência desta desterritorialização da cultura nos coloca de frente com um paradoxo aparente: “junto com la homogeneización y com la dilución

de las diferencias culturales, la contemporaneidade será también el tiempo de una descontrolada fragmentación étnica y cultural” (citado em TRAJANO FILHO, 2011, p. 159).

Assim, entende-se que no mundo crioulizado, híbrido ou mestiço a migração internacional dá lugar ao transnacionalismo, aos transmigrantes e as comunidades da diáspora. Estes estudos argumentam que os novos migrantes constroem as suas relações sociais dentro de uma rede que se estende através das fronteiras dos Estados nacionais, enquanto constroem identidades, sentimentos de pertença e redes de solidariedade em um ambiente de competência das zonas francas de inter-relações.

Contudo, Trajano Filho chama a nossa atenção pelo fato de discordar das visões consolidadas nesta literatura. Para ele a dissonância reside na tendência em considerar a cultura

crioula do arquipélago como se estivesse mais próxima do complexo cultural do Caribe ou do Mundo Atlântico (vide por ex. GILROY, 1993; CARLING & BATALHA, 2008; CUBEROS- GALLARDO, 2017). Por conseguinte, neste caso defende cautela com a literatura sobre o transnacionalismo e as comunidades híbridas da diáspora africana nas Américas. O antropólogo insiste que, por detrás da semelhança com as culturas da diáspora, a formação social que surgiu nas ilhas de Cabo Verde está fundamentalmente ligada às sociedades da costa ocidental africana devido a semelhanças estruturais de várias ordens. Primeiro, por ter compartilhado durante muito tempo a mesma estrutura de reprodução social com os conglomerados mestiços das vilas fortificadas dos rios da Guiné. Segundo, por compartilhar atributos estruturais da cultura política das sociedades africanas ligados à formação e reprodução de unidades sociais:

Con algunas cualificaciones, el argumento de la existência de una continuidad profunda entre las culturas políticas de las sociedades africanas tradicionales y la sociedad criolla de Cabo Verde puede ofrecer una explicación de sustrato para el caso de la diáspora caboverdiana y para los sentidos atribuidos por los campesinos locales a las cosas que reciben del exterior (TRAJANO FILHO, 2011, p. 161).

Os argumentos de Trajano Filho encontram seu suporte na esteira do modelo proposto por Kopytoff (1987), no qual as unidades políticas africanas se constituíram por um processo de ocupação de fronteiras em contextos marcados pela baixa densidade populacional e pela existência de reservas suficientes de terras livres 62. Nesta senda, uma cultura política de alcance pan-africano teria surgido, em um tempo relativamente recente, abrangendo um ecúmeno onde operam disposições e motivações concernentes a grupos de camponeses, pastores e artesãos, quando estes deixam as suas aldeias de origem, acompanhados por parentes e dependentes, para fundar novas unidades políticas em territórios ainda inexplorados (ibid.).

Segundo o autor, as tradições orais africanas mencionam frequentemente o caso genérico do caçador audaz que abandona a sua aldeia natal em busca de caça mais abundante. Também contam histórias exemplares sobre pessoas que, derrotadas em disputas por sucessão a cargos e posições de autoridade política e ritual, deixam a sua terra natal para fundar uma nova comunidade nos ditos vazios institucionais através do uso criativo de formas de organização e de práticas culturais antigas. Portanto, a configuração social que surge destes processos é caracterizada por unidades sociais ambíguas, a partir do ponto de vista étnico, marcadas por uma grande fluidez, por identificações e sentimentos de pertença múltiplos e

62 De acordo com Trajano Filho, Kopytoff (1987) ressalta que a natureza “vazia” destes espaços é uma

caracterização a partir daqueles que pretendem ocupá-los, e que raramente os espaços desabitados entre sociedades estabelecidas estão de fato vazios. São concebidos assim por outros diferentes que buscam ocupá-los (2011, p. 162).

muitas vezes contraditórios. Nesta esteira, Trajano defende que os atributos estruturais das sociedades que surgem no processo de ocupação de fronteiras na África têm alguma semelhança com os designados nos estudos de comunidades da diáspora e de migrações transnacionais. Com efeito, estas não carregam nenhum pressuposto sobre uma descontinuidade radical com o passado, como sugerem muitos estudos sobre o ecúmeno global (TRAJANO FILHO, 2011, p. 162).

Antes pelo contrário, o modelo de fronteiras explica que a reprodução destas sociedades assume uma forma conservadora. A cultura política que produz grupos, dispostos a recomeçar a partir da fronteira, sintetiza nestes espaços novas unidades socioculturais que mantém continuidades com as comunidades anteriormente estabelecidas. O resultado imediato é a manutenção de aspectos culturais duradouros difundidos através das diferentes unidades que constituem o ecúmeno pan-africano (ibid., p. 163).

Contudo é auspicioso ter em mente a ideia de ecúmeno não só na cultura política que emerge dos processos de ocupação de fronteiras, mas também em um conjunto de práticas e disposições incorporadas na conformidade de um etos compartilhado. Trata-se aqui de identificar algumas caraterísticas interrelacionadas que valorizam a noção de espaço veiculada menos por suas caraterísticas físicas, do que pela configuração das relações sociais.

Para este propósito, neste trabalho levamos em consideração dois perfis dos aspectos interrelacionados adotados por Trajano Filho a partir das propostas de LeVine (1976): a) a tendência em caracterizar as reações sociais em termos do fluxo de bens materiais compreendidos entre elas; e b) uma relativa ausência de ansiedade com relação à separação e o desejo de maior intimidade nas relações sociais, de modo que a separação física entre marido e mulher, pais e filhos seja menos dolorosa e desestabilizadora, a fim de garantir que as relações sociais perdurem por longos períodos de separação graças à ênfase colocada nas obrigações materiais (citado em TRAJANO FILHO, 2011, p. 163).