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3 DE COVA DA MOURA À UNIÃO EUROPEIA

3.1 Cova da Moura no Portugal da Comunidade Econômica Europeia

3.1.1 Autonomia nacional e globalização

Com efeito, de acordo com Fikes (2009, p. 42), os intensos debates gerados em torno do destino do país, como também, sobre as estratégias com objetivo de gerar o equilíbrio entre o mercado e o estado remontam desde 1979, ano em que a candidatura da integração de Portugal à CEE foi aceite e o Partido Social Democrata (PSD) subiu ao poder.

Os debates difundidos pela mídia eram representados através de discursos apoiados nos programas partidários, com forte tónica na autonomia nacional: o Partido Social Democrata (PSD), centro-direita, adepto das medidas neoliberais, o qual ostentava o discurso sobre “perdas a curto prazo com ganhos indispensáveis a longo prazo”, defendia o fim da dependência no setor agrário e das suas divisões informais; por sua vez, o Partido Comunista Português (PCP), centro-esquerda, contrariava este discurso, argumentando que temia o impacto da integração não somente no trabalhador – na medida em que as restrições sobre a produção doméstica afetariam os estilos de vida de subsistência da maioria da força de trabalho agrária – mas também, provocaria uma situação que lançaria o país na dependência de outras nações europeias em uma dimensão para além das migrações (ibid.).

Entretanto, de acordo com a autora, os debates em torno do destino financeiro do país e sobre o papel do governo local sobreviveriam a efetiva adesão de Portugal à Comunidade Econômica Europeia em 1986. O modelo de governação adotado pela Aliança Democrática (coligação então formada entre PSD, CDS e PPM) não priorizava as políticas de gerência estrutural local. A visão de mercado construída em termos do potencial de uma economia estimulada pelo consumo priorizava o consumidor:

“Government was imagined as a manager of Portugal’s extension of itself outward through individual consumers, in its connection with transnational markets, as opposed to inward and thus dealing with local economic structures” (FIKES, 2009, p. 43).

Considerando que a estrutura social do país era então constituída de uma pequena elite e uma maioria classe trabalhadora – trabalhadores agrários rurais e uma classe operária urbana (p. 42) –, esta maioria questionava as políticas do governo português no período pós-adesão.

34 Nome forte na representação do associativismo ligado às comunidades de imigrantes e de afrodescendentes em

Portugal. Foi presidente da Associação Guineense de Solidariedade Social (Aguinenso) e ex-deputado do PS - entre 4 de novembro de 1991 e 26 de outubro de 1995. Faleceu em 2015.

Nos seus protestos estavam manifestos o receio com relação à ausência de políticas públicas, em detrimento de um argumento consumista, como também, ao peso das expectativas criadas, as quais não condiziam com as suas realidades.

As tão esperadas melhorias eram subtraídas pelas ondas de aumento nos preços dos produtos alimentícios e dos medicamentos. Além do mais, a crescente valorização da propriedade, a qual em efeito dominó, alimentou a especulação imobiliária e o mercado de aluguel, foi tão profunda que se tornou quase impossível residir em Lisboa propriamente dita (FIKES, 2009, p. 43).

Na esteira de Antunes (2017, p. 316), nos anos 1992 e 1993, as pressões sobre o governo do PSD, com relação ao financiamento de um programa amplo de realojamento, eram bastante significativas. Várias iniciativas surgiram em torno da questão holística dos bairros de autoconstrução precária. A Câmara Municipal de Lisboa foi incisiva sobre a necessidade de o poder central criar uma política alargada, de escala metropolitana ou regional que permitisse o realojamento de toda a população residente naqueles nódulos.

No âmbito público, através da presença da comunicação social, a campanha Presidência

Aberta realizada pelo então Presidente da República Mário Soares focou na estratégia de “dar

voz” aos mais desfavorecidos, realçando a ausência de redes públicas, de infraestruturas, de equipamentos sociais e coletivos de proximidade, assim como as questões de insegurança, o tráfico de drogas e a toxicodependência (ibid.).

Alves (2013, p. 55) argumenta que a discussão sobre a periferia e o seu reconhecimento como espaço racializado de precariedade habitacional e de exclusão sócio espacial e econômica enfrentava sérias barreiras. Apesar das evidências e das vozes que se faziam ouvir, a abertura de um debate sobre a discriminação racial parecia não ser pertinente em “um país barricado em espaços particulares da história e da memória”.

No imaginário da sociedade que agora se via moderna, europeia, desenvolvida, universalista e tolerante, a narrativa histórica edificada ao longo dos séculos, através de discursos sobre o colonialismo e sobre o outro, teimava em resistir:

“Não obstante, este processo corre em paralelo com a consolidação de Portugal enquanto parte integrante da Comunidade Europeia, espaço também este meta-geográfico com modelos sociais próprios que deveriam funcionar como referência para todos os países membros. Portugal era agora um país que se havia refundado sob o mito da modernidade e do luso-tropicalismo e consequentemente onde a naturalização do argumentário racial teve como corolário a (in)visibilização do racismo enquanto processo ontológico à formação da nação” (ALVES, 2013, p. 55, grifos no original).

Entrementes, as concertações operadas no âmbito do legislativo pelo estado português seriam efetivadas pelo surto de novas leis e políticas nas áreas da imigração, da emancipação de género, do desenvolvimento urbano e do multiculturalismo. Fikes argumenta que, na essência, houve uma transformação no conceito de governo. A governação, desde então, adota uma perspectiva mais focada na população e propensa ao gerenciamento social (2009, p. 43).

Esta virada na performance governamental trouxe consequências. Para além de produzir novas comunidades, também teve um efeito na hierarquização destas comunidades, na medida em que eram classificadas como moralmente positivas ou negativas. Estas distinções emergem através de versões da participação cívica, na qual se espelhavam os novos projetos sociais do governo (ibid.).

Considerando as questões legais que versam sobre a legalização da imigração e da atribuição da nacionalidade aos imigrantes e seus descendentes (Lei da Nacionalidade n.º 37/81), Fikes afirma que estas medidas legais apontavam explicitamente para a existência de novas comunidades e as novas categorias sociais às quais pertenciam (p. 43). As leis sobre imigração e nacionalidade de 1981, apesar de traçar o esboço daqueles a quem seria negada a nacionalidade portuguesa, definia racialmente os limites do cidadão português como um sujeito (2009, p. 45).

Figura 9: Vista panorâmica da Rua do Outeiro, acesso Sul do bairro, enfeitada com bandeirinhas e faixa anunciando as festas de Kola San Jon em junho de 2018. Foto: álbum do autor.

Neste sentido, as mencionadas leis revelaram-se um grande obstáculo para os pedidos de cidadania após os dois períodos de anistia para legalização de migrantes não documentados ocorridos em 1992 e 1996. Enquanto as leis anteriores extinguiam efetivamente quaisquer privilégios legais concedidos aos africanos imigrantes provenientes das ex-colônias, nos períodos de anistia procurava-se lidar com o presente pós-colonial. O foco incidia no cômputo da força de trabalho migrante não documentada, cuja estimativa excedia, em grande parte, a população com situação de residência legalizada (SOS RACISMO, 2002 citado em FIKES 2009, p. 45).

Na prática, os períodos de anistia não atenderam todos os pedidos de legalização. Além do mais, as leis anteriores fechavam as eventuais brechas, as quais poderiam servir como alterativa para aqueles que não haviam sido contemplados. Entretanto, as políticas de imigração eram influenciadas pelo mercado de trabalho: “as taxas eram estabelecidas para predeterminar o número de operários a serem legalizados de acordo com as demandas no setor de construção e dos serviços públicos” (2009, p. 45).

Neste contexto, de acordo com SOS Racismo (2002 citado em Fikes, 2009, p. 45), cada período de legalização gerou grandes reservas de mão-de-obra operária indocumentada. Possibilitou estimativas mais aproximadas sobre a população imigrante residente, enquanto favorecia a estipulação e reforço de medidas transparentes e legítimas para penalizar a evasão à deportação. Assim, ampliando a janela de criminalização da residência não documentada. Em suma, as duas anistias demarcaram as distinções entre os sujeitos legais e ilegais de modo que a figura do imigrante foi simbolicamente criminalizada, independentemente do seu estatuto de legalidade.