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3 DE COVA DA MOURA À UNIÃO EUROPEIA

4.3 Crioulização, descrioulização e recrioulização

A atual cidade de Lisboa é uma metrópole global, onde o “cosmopolitismo”, a diversidade dos imigrantes e dos turistas são inegáveis. Costuma-se dizer que Lisboa está cada

dia mais escassa de lisboetas. Malheiros et al. (2013) confirmam esta tendência ao admitirem

que, a partir dos anos 2000, nota-se um crescimento significativo de imigrantes em situação regular em Portugal. Admite-se que a grande maioria se concentra nas áreas metropolitanas das duas maiores cidades do país, sendo Lisboa, a capital, a região mais afetada. Em 2005, as

maiores comunidades de cidadãos estrangeiros em situação regular no país eram a brasileira, seguida pela ucraniana e pela cabo-verdiana (p. 33).

No entanto, aquele que se vê na necessidade rotineira de utilizar o sistema de transportes públicos, nomeadamente ônibus (autocarro), metrô e comboio (trem), percebe de forma inconfundível uma presença heterogênea na moldura humana cuja mobilidade também depende deste sistema. Os imigrantes cabo-verdianos, os angolanos, os guineenses, os são-tomenses, os moçambicanos, os senegaleses (entre outras nacionalidades africanas), como também os afrodescendentes (digo os portugueses descendentes de africanos), os brasileiros, e em menor número os imigrantes originários dos países da Ásia como a Índia, a China, o Paquistão e o Bangladesh (vide MALHEIROS et al., 2013) compõem esta moldura humana da qual emana uma miscelânea de línguas diferentes e desconhecidas ao falante do português, do francês ou do inglês.

Quem, porventura segue, de Lisboa, pela linha ferroviária em direção a Sintra, ou pelo transporte fluvial em direção à margem sul do Rio Tejo, nos horários de ponta, não ficaria menos surpreso. Pois a maioria destes imigrantes trabalha em Lisboa, mas muitos deles habitam em bairros populares distribuídos ao Norte pela cintura externa de Lisboa: Sta. Cruz Damaia; Reboleira; Amadora; Rio de Mouro; etc., ao Sul: nas cidades de Almada; Seixal; Barreiro; etc. e ao Oriente: os Olivais e Chelas. E nesta malha de trajetos e trocas diárias, na qual a mobilidade se faz mais importante do que as fronteiras, emergem “novas” identidades e agentes constantes em luta permanente para promover a visibilidade e a representatividade de uma vertente de Portugal que insiste em ser silenciada e excluída ao longo da recente história do país. Esta presença continua sendo apagada das narrativas oficiais e das construções de auto representações nacionais (ALMEIDA, 2000, p. 191).

Portanto, saindode Lisboa a partir das estações do Rossio ou do Oriente em direção à Sintra, em menos de vinte minutos, chega-se à estação de Sta. Cruz Damaia. Daquele local, tanto para quem vai à Buraca, ou ao bairro Alto da Cova da Moura a língua que mais se ouve entre os transeuntes é o crioulo de Cabo Verde, coexistindo com a língua portuguesa falada pelos nacionais. Uma vez em Cova da Moura, a presença da língua crioula de Cabo Verde, mais especificamente na versão do badiu (ou crioulo de Santiago) é quasi dominante. Note-se que em Cova da Moura a língua crioula de Cabo Verde está presente nas conversas entre portugueses e os cabo-verdianos (a maioria dos moradores do bairro), como também entre os outros imigrantes.

Neste contexto, o crioulo de Cabo Verde se faz presente nos vários restaurantes e cafés onde se escuta música de Cabo Verde, nos jovens escutando Rap Kriól em seus carros estacionados nas ruas, nos transeuntes em geral. Durante o trabalho de campo no bairro, nunca tive dificuldades em iniciar uma conversa em crioulo de Cabo Verde, seja com os funcionários do ACMJ, com os pais e adultos nas proximidades, ou mesmo com as suas filhas e filhos nascidos em Portugal. Sejam descendentes de cabo-verdianos (sampadjudus ou badius), de guineenses, angolanos ou são-tomenses a língua que predomina em Cova da Moura é o Kriól. Eventualmente, estes indivíduos também se comunicam em português, e muitas vezes, as conversas começam em uma língua e terminam em outra. Ao nosso ver, estes aspectos observados no cotidiano do bairro revelam a existência de processos sociolinguísticos de recrioulização e descrioulização.

Em uma das principais vias de acesso ao bairro, a Rua Principal, no local próximo a uma das saídas da estação de comboios de Damaia, encontra-se o Mercadinho Africano Kebab pertencente a dois irmãos indianos. Naquele estabelecimento, como em outros da mesma rua, é comum encontrar jovens e adultos, a maioria do sexo masculino, falando e escutando música alta, enquanto jogam cartas e/ou assistem jogos de futebol, bebendo e petiscando ao cair da tarde. As vezes que acedi aquele ambiente percebi que os atendentes (os irmãos indianos), ora se comunicavam em português, ora em crioulo de Cabo Verde com os seus clientes. Na realidade, boa parte dos clientes chegam ao local e já abordam os vendedores falando em crioulo de Cabo Verde.

Portanto, aqui nos referimos a um cenário linguístico de heteroglossia 63 (BAHKTIN, 1981), no qual foi tão natural quanto inevitável prestar atenção à agência dos indivíduos, por ressaltarem a importância da fusão de horizontes sociolinguísticos e por revelarem interessantes interdependências entre as diferentes línguas faladas. Evidentemente, interessa-nos o conceito de comunidade de fala no sentido em que legitima o fato da língua representar, incorporar, construir e constituir participação ativa na sociedade e na cultura (MORGAN, 2004, p. 3).

Outro exemplo caro a esta discussão está relacionado com o universo do Rap Kriól, estilo muito apreciado em Portugal. Os jogos e desafios entre os “MCs mirins”, refiro-me às brincadeiras entre as crianças e adolescentes do bairro que frequentam o Moinho, quase sempre

63 Segundo Bahktin, nas comunidades de fala onde existem múltiplos contatos entre classe social, status, e

eventualmente, origem nacional, as ideologias de linguagem geralmente refletem heteroglossia (cf. BAHKTIN, 1981), ou seja a transição entre estilos ou códigos linguísticos que existem dentro e entre as comunidades (MORGAN, 2004, p. 18).

em crioulo badiu 64, são muito frequentes. Nas ocasiões em que acontecem estes “desafios”, educadores como Flávio Almada (ele mesmo um MC: LBC Souljah) apoiam e encorajam os jovens. Durante as improvisações, os critérios observados sugerem forte relação com os componentes da consciência moral, política, social e cultural do indivíduo.

Jovens artistas portugueses e fãs de Hip Hop e Rap frequentam o bairro nos finais de semana. Quando lá se encontram, muitos deles falam em crioulo, inclusive entre si. A possibilidade de participar em uma das rodas de improviso que acontecem nas ruas, esquinas ou cafés do bairro é bastante valorizada. Percebe-se mesmo em Portugal, uma preocupação em conhecer a língua crioula badiu no universo do Rap. Neste sentido, a habilidade dos sujeitos transitarem entre diferentes comunidades de fala constitui um elemento essencial para a construção e manutenção de redes de relações.

No caso de Cova da Moura, à semelhança de outras comunidades de imigrantes em Portugal, esta habilidade sugere que um sistema comunicativo mutualmente simbólico e ideológico desempenha um papel importante entre aqueles que compartilham saberes e práticas através de contextos sociais diversos (cf. HORTA, 2000). Pois, é na comunidade de fala, ou através dela, que a identidade, ideologia e agência são atualizadas na sociedade (MORGAN, 2004, p. 3; BUCHOLTZ & HALL, 2004: 2005).

Portanto, no que tange a localização dos cabo-verdianos, na sociedade portuguesa, a relação com as diferentes esferas do poder público, bem como, entre os diversos grupos ou comunidades de fala entre si, achamos pertinente entender mais profundamente o fenômeno sociolinguístico do crioulo de Cova da Moura e seus respectivos processos intrínsecos de recrioulização e descrioulização. Nesta esteira, a partir de um recorte de comunidade transnacional e diaspórica nos atentamos para as relações de construção de identidade, naturalmente envoltas na linguagem, na música e em outras formas de expressão e o papel que estas formas da tradição parecem desempenhar na formação de subjetividades e coletividades culturais.

Anthony Giddens (2003) argumenta que as identidades se formam através de processos sociais determinados pela estrutura social. Assim, o processo de construção de identidade

64 Vale notar que a variante do crioulo falada em Cova da Moura difere das faladas na ilha de Santiago de Cabo

Verde. Em Cova da Moura, percebe-se a presença de termos originários de outros idiomas africanos e europeus, bem como a nomenclatura dos vernaculares locais, no caso de Lisboa. Outro fenômeno que acontece também em Cabo Verde, com as suas particularidades históricas, e igualmente em Cova da Moura é a adoção dos termos clássicos do Hip Hop norte americano nas letras das músicas e no modo de falar dos jovens.

constitui um componente básico da realidade subjetiva, que por seu turno, se encontra em relação dialética com a sociedade. Ou seja, não obstante a sua determinação pela estrutura social, as identidades reagem sobre esta, fazendo a sua manutenção, modificação ou mesmo remodelação. Portanto, as identidades individuais reagem sobre os constrangimentos exercidos pela estrutura sociolinguística, sendo aquelas, tipos de identidades que se originam a partir das “estruturas sociais específicas”, podendo ser identificados como produtos sociais e elementos estáveis da realidade social objetiva (BERGER & LUCKMAN citados em LOPES, 2016, p. 273), sempre permeados por relações de poder.

Mary Bucholtz e Kira Hall (2004) se posicionam a favor de importantes desenvolvimentos na tradição de pesquisa antropológica sobre linguagem e identidade. Partindo de uma perspectiva que concebe ambos o semelhante e o diferente como processos fenomenológicos emergentes da interação social, as autoras propõem que analisemos as formas pelas quais as similaridades e as diferenças são organizadas hierarquicamente nos contextos sociais. Argumentam que o fato de grande parte das pesquisas sobre identidade na antropologia sociocultural se basear em evidência linguística atesta o papel crucial que a linguagem desempenha na formação de subjetividades culturais. Neste sentido, o argumento a favor do valor analítico de abordar a identidade como um fenômeno relacional e sociocultural, o qual emerge e circula em locais de contextos discursivos de interação local é pertinente, na medida em que, a linguagem é a mais flexível e disseminada (p. 369). Além do mais, segundo Morgan (2004, p. 4), nas ciências sociais tem-se notado uma crescente conscientização sobre a importância da natureza do discurso na representação do conhecimento, da cultura, identidade e política locais.

No caso desta tese, parte da etnografia situa-se em uma comunidade (Cova da Moura) cujos membros são conscientes das diferenças sociais e culturais, i.e., parte essencial da sua história recente consiste em um processo de negociação das fronteiras subjetivas e coletivas. Na realidade, nos referimos às condições de transmigração, às questões de identidade social, como também, a memória de noções imaginadas e experienciadas de casa [lar] ou terra-mãe:

nhá doce lar, kes dez grünzin di téra, nhá terrinha 65, as quais fazem parte do tecido cultural heterogêneo que abrange a diáspora cabo-verdiana dispersa pelo mundo (cf. CARLING & BATALHA, 2008).

Entretanto, apesar de o bairro de Cova da Moura ser um dos preferidos pelos cientistas sociais de quase todos os matizes, e de haver uma produção notável de trabalhos nas mais variadas disciplinas sobre o lugar, poucas são as pesquisas que atentaram para as estratégias usadas no campo da linguística a fim de analisar como as pessoas constroem, procuram, e resistem nas suas comunidades cotidianamente. Um exemplo a citar, Kesha Fikes (2000; 2007; 2009) realizou pesquisa junto a comunidades cabo-verdianas tanto no arquipélago, quanto em Portugal. Na sua abordagem, a autora avalia como os transnacionais dependem dos referentes e dos usos da língua crioula para estruturar as suas afiliações em múltiplas comunidades de fala, as quais representam ambas a resistência em participar, e a busca por inclusão em uma comunidade de fala afro diaspórica. Na mesma medida, a autora questiona como os cabo- verdianos usam os mesmos referentes para indexar a metrópole portuguesa em contraste com o Cabo Verde rural.

A esta altura, torna-se essencial compreender a configuração da diversidade sociolinguística do bairro de Cova da Moura de acordo com uma perspectiva dinâmica da identidade, como não unitária e não detentora de estados psicológicos ou categorias sociais permanentes, que contrasta com a visão tradicional. Nos referimos, certamente, a um processo de crioulização. Pois, a identidade, nestes casos, é inerente às ações e não às pessoas. Como produtos de ação social situada, as identidades podem cambiar-se e recombinar-se para atender novas circunstâncias (BUCHOLTZ & HALL, 2004, p. 376).

Entretanto, como alerta Trajano Filho (2003, p. 3), o uso atribuído à locução “processo de crioulização” vai além do termo usado pelos linguistas para se referir a um tipo de compromisso linguístico cujo resultado é a emergência de uma língua crioula 66. Nas ruas, cafés, bares, barbearias e instituições do bairro é possível também escutar variantes da língua crioula de base portuguesa faladas na Guiné-Bissau e no sul do Senegal, cujo surgimento pressupôs o contato intensivo e regular entre populações com diferentes tradições culturais e línguas variadas (p. 3). E não só. Eventualmente, também se escuta o francês, o inglês e os respectivos crioulos derivados. Portanto, se no caso de Cabo Verde, o crioulo convive com o português. Na Guiné-Bissau, o crioulo convive com o português e com as várias línguas africanas faladas no país, como manjaco, wolof (jalofo), mandinga, biafada e banhum.

66 A emergência de uma língua crioula – a língua nativa de uma comunidade de fala cuja origem é um pidgin ou

um jargão. O pidgin, segundo Trajano Filho, tem sido definido como uma língua auxiliar que surge para resolver as necessidades de comunicação entre pessoas que falam línguas diferentes e mutuamente ininteligíveis, apesar de estarem em estreito contato (2003, p. 2).

Em Cova da Moura, não se convive com todas estas variantes e idiomas intensamente, mas devido ao seu papel de plataforma de apoio à mobilidade de uma parcela dos migrantes africanos dentro do espaço Schengen, é possível reconhecer, esporadicamente, falantes destas línguas, para além de vários outros idiomas do leste europeu e do árabe que vão se fazendo presentes cada vez mais no país.

Contudo, a crioulização, enquanto fenômeno sociolinguístico, é consequência de um determinado tipo de compromisso alcançado por grupos pertencentes a comunidades de fala diferentes e econômica, social e politicamente desiguais. Neste sentido, pressupõe-se uma interdependência e um relativo equilíbrio de forças entre as partes envolvidas (TRAJANO FILHO, 2003, p. 3).

Assim, concordamos que em Cova da Moura, embora haja uma grande diversidade de comunidades de fala, o acordo linguístico pende para uma variante da língua crioula cabo- verdiana (kriól badiu) falada pela grande maioria dos moradores do bairro. Algo semelhante acontece durante a mobilização dos moradores do bairro, com o apoio da ACMJ, quando celebram datas festivas através das práticas performativas cabo-verdianas, nomeadamente, batuko e kola San Jon (vide Caps. IV e V).

Juntamente com as intricadas mudanças linguísticas que resultam em uma língua crioula, a crioulização também implica invariavelmente em um processo de mudança cultural, o qual resulta de um complexo fluxo de valores, práticas, saberes, crenças e símbolos que, por sua vez, dá luz a uma identidade social terceira. Trata-se de uma unidade internamente heterogênea que emerge do compromisso social e linguístico alcançado pelos diferentes grupos que habitam o bairro. Neste contexto, para além dos atributos exteriores que indicam a dominação dos modos de vida dos europeus, persiste um substrato africano fundamental na estruturação das formas culturais de reprodução do arquipélago na diáspora.

Neste cenário é inevitável avaliar algumas caraterísticas principais da sociedade cabo- verdiana, entre estas, a sua capacidade de produzir emigrantes – o equivalente crioulo insular da produção dos homens de fronteira no continente. Percebemos, neste sentido, que, por múltiplas razões, estas caraterísticas são expressões econômicas dos obstáculos estruturais que fazem com que a sociedade empurre alguns de seus membros para a emigração. Como sabemos, através da literatura produzida em torno da sociedade cabo-verdiana, esta não compartilha de forma plena uma cosmologia nem uma filosofia moral com as sociedades do continente. Contudo, existem vários elementos que através da oralidade alimentam as crenças, os quais

podem ser encontrados nas narrativas dos habitantes das comunidades rurais no interior das ilhas de Santiago, Fogo, Santo Antão, São Nicolau, entre outras.

Também existem importantes expressões para a cultura local, elementos como o mar,

sodadi (a saudade), traz d’horizonti (a terra distante), si ka badu ka ta biradu (o retorno), os

quais têm o poder de dilatar o impulso para aventurar em terras distantes 67. Na profícua música tradicional cabo-verdiana todos estes temas são transversais, porém, para os sentimentos descritos acima, o gênero musical por excelência é a morna. Canção eternizada nas mais doces e diversas vozes cantadas desde os botecos das periferias e bares das cidades até aos palcos da

World Music, com destaque à inigualável Cesária Évora (1941-2011). Um dossiê sobre a morna

como candidata a Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade foi submetido junto à Unesco no ano de 2018. A morna foi reconhecida Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade em dezembro de 2019 pela UNESCO.

Adicionalmente, segundo Trajano Filho (2011), fatores ambientais como as severas secas cíclicas, registradas desde 1508, gerando terríveis fases de fome, e todas as moléstias que as acompanham, exercem grande influência na saída de gente do país. Por conseguinte, entende- se que estes fatores econômicos, políticos e culturais, os quais servem como as causas da emigração, representam a expressão cabo-verdiana do ecúmeno cultural africano (p. 165).

A economista italiana Marzia Grassi (2006), durante uma pesquisa sobre o movimento migratório temporário, realizada no âmbito dos fluxos do comércio informal pelas rabidantis (mulheres comerciantes santiaguenses), constata uma necessidade de se movimentar para

escapá vida (emigrar) expressa nas opiniões dos entrevistados. Segundo a autora, trata-se de

um processo secular no qual a emigração é vivida como uma inevitabilidade, uma esperança e um sonho de realização. Um “espírito em movimento” que emerge na tomada de decisões sobre a vida, considerando opções de movimento em um espaço geográfico global, sem fronteiras físicas limitadas (p. 3).

No contexto atual do bairro Alto da Cova da Moura, como em muitos outros bairros de maioria cabo-verdiana na área metropolitana de Lisboa, não só a língua, mas igualmente outros processos socioculturais, exemplificados no texto de Trajano Filho, continuam operando em um ambiente heterogêneo, onde os imigrantes de diferentes origens, e seus descendentes, coexistem e convivem com a língua e as práticas culturais tradicionais crioulas em solo

67 Vários autores abordam este tema nas suas pesquisas por ex. Antônio Carreira (1972; 1977; 1983; 1984),

estrangeiro – como se tratasse de um dispositivo de afirmação identitária reativado através da performance. Seja através da performance linguística, do canto e de outros elementos vocais, ou através da performance musical, da polirritmia presente na emergência e manutenção dos ritmos percussivos do batuko e do kola San Jon. E mais importante, na expressão corporal através da dança, do caminhar pelos trajetos físicos e simbólicos, no arfar e no suor dos corpos, na expressão de prazer beirando a estafa nos rostos das coladeiras, das batucadeiras e na música dos tamboreiros.

4.4 Os estigmas da informalidade, ilegalidade, criminalidade e violência nos discursos, nas políticas e práticas da “integração” migrante em Portugal.

Em Portugal, as questões em torno da implementação de políticas públicas direcionadas às populações migrantes foram negligenciadas durante muito tempo. Nesta esteira, a supressão de direitos (e.g. direitos a habitação, mobilidade física e social, educação, representação política, etc.) ou o exacerbamento dos requisitos inerentes à concessão destes direitos ao nível local, estão relacionados com a herança deixada pelo sistema político do Estado Novo, a nomear: “a fraca penetração do aparato do estado em certas áreas da estrutura administrativa e a ubiquidade de relações informais na elaboração de políticas locais” (RUIVO, 1993 citado em HORTA, 2000, p. 103).

As atitudes racistas e as formas mascaradas de racismo, bem como as práticas e os discursos discriminatórios emanados pelas instituições estatais locais, os quais têm provocado uma condição de extrema exclusão social de populações migrantes em Portugal, faziam parte da pauta aberta na cobertura dos meios de comunicação de massa desde meados da década de 1990. Vários fatos e acontecimentos, abordados neste capítulo, estão na razão da deslocação dos debates públicos e políticos da histórica retórica da negação do racismo para um debate mais focado em questões chave concernentes à natureza das políticas e medidas necessárias para lidar com as comunidades migrantes (HORTA, 2000, p. 2).