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3 DE COVA DA MOURA À UNIÃO EUROPEIA

3.1 Cova da Moura no Portugal da Comunidade Econômica Europeia

3.1.3 Uma encruzilhada de “poeira étnica”

Em 1995, o bairro Alto de Cova da Moura apresentava o delineamento em forma de cogumelo (arredondado ao Leste, e recortado ao Ocidente). Os padrões de ocupação e construção do bairro, como tantos outros na área metropolitana de Lisboa, sugeriam uma ruptura na organização do tecido edificado, fazendo com que fosse amplamente referido como um enclave em contraste com a cidade.

Ana Paula Beja Horta (2000, p. 173) inicia o trabalho de campo no bairro em fevereiro de 1995. Na sua etnografia, sobre o Alto da Cova da Moura, a antropóloga identifica um processo, o qual ela denomina de “racialização do bairro”. De acordo com a sua narrativa, se observássemos atentamente poderíamos identificar duas áreas construídas distintas na sua configuração. Próximo à Rua Principal, as casas eram grandes, geralmente com uma área de jardim à frente e bem construídas. Alguns dos lotes estavam separados por muros ou cercas de metal. Algumas casas apresentavam imagens de N. Senhora de Fátima e outros santos católicos em azulejos decorativos. Outras ostentavam o nome do proprietário na fachada externa (e.g. Vivenda Nosso Lar). As ruas nesta área eram pavimentadas, muito embora sem calçadas.

Contudo, segundo a autora, na medida em que se aproximava da área sul do bairro foi surpreendida por ruas muito estreitas e sujas, “um labirinto de casas amontoadas umas nas outras”. As construções tinham dimensões variadas: umas minúsculas, outras grandes; muitas delas aparentemente inacabadas, sendo que em algumas casas, o trabalho de construção ainda estava em andamento: “o clima se encontrava envolto no som da construção, o cheiro a cimento, tijolos e escombros”. Horta afirma que havia lixo por todos os lados, na medida em que os contentores de lixo eram poucos e se encontravam todos abarrotados (ibid.).

Com relação à rotina no bairro, Horta descreve as atividades comerciais desempenhadas pelas mulheres, como a venda de frutas e legumes na rua, ou em pequenos estabelecimentos que também comercializavam outros produtos alimentícios (arroz, milho feijão, enlatados, refrigerantes, doces, confeitos), bebidas alcoólicas, tabaco e cigarros. Algumas mulheres vendiam roupas e tecidos africanos, enquanto outras passavam por ela em direção ao cabeleireiro ou, bem vestidas, a caminho dos empregos em Lisboa.

Horta também se refere aos idosos sentados ao sol, comendo laranjas e contando os causos da vida entre eles, enquanto observavam as crianças pequenas brincando ao seu redor. Quanto à ausência de homens adultos, explicava-se pelas jornadas longas de trabalho exigidas nos empregos mantidos na área metropolitana de Lisboa. Pois, segundo os moradores, eles saíam de manhã cedo e retornavam somente depois das oito horas da noite. Contudo, alguns deles se encontravam trabalhando na construção das suas casas no bairro. Havia muitos cafés, pequenos negócios vendendo quase tudo, “desde caixões a viagens a Cabo Verde”.

Com relação à população jovem, a autora afirma que havia muitas crianças no bairro. Estas, muitas vezes estavam na rua, brincando de construir pequenas barracas à frente de suas casas, onde guardavam os seus brinquedos (HORTA, 2000, p. 173).

Quanto à receção da investigadora pelas pessoas do lugar, percebe-se, na sua narrativa, certa inquietação na possibilidade de os moradores suspeitarem que ela pudesse ser jornalista ou agente de polícia atuando sob disfarce. No entanto, Horta atesta que não fora destratada por ninguém. Muito pelo contrário, as pessoas a abordavam com curiosa simpatia quando desejavam saber qual era realmente a razão das suas visitas ao bairro.

Na medida em que a autora percebia a grande diversidade étnica na configuração dos moradores do bairro – portugueses brancos e afrodescendentes, cabo-verdianos, angolanos, guineenses, santomenses, e em menor número, senegaleses e zairenses – aumentava a curiosidade em saber como os diferentes grupos se relacionavam. Porém, confessa que, nas conversas mantidas com os moradores, nas quais era possível formular tais questões, as respostas dadas inicialmente eram desconcertantes e suscitavam dúvidas (2000, p. 174).

Primeiramente porque, nas narrativas, parecia não haver diferenças entre os moradores. De acordo com estes, todos se davam bem com seus vizinhos, independentemente das suas origens étnicas. Outros ainda afirmavam que ali “todas as pessoas eram iguais”. Porém, este discurso seria alterado gradualmente, na medida em que a pesquisadora ia se familiarizando com seus informantes. Eventualmente aconteciam discussões, entre os moradores em torno das relações interpessoais e das afiliações (nas associações), nas quais os envolvidos deixavam transparecer as tensões étnicas e a inveja, às vezes de forma explícita, outras, de forma dissimulada (ibid.).

Quando a pesquisadora passa a conviver com os moradores do bairro em uma rotina mais regular, as confidencialidades começam a surgir. A interação com as pessoas pertencentes a uma população “etnicamente mista” foi revelando, de forma gradual, uma sobreposição de realidades complexas. Assim, sob os discursos permeados pelo vocabulário de igualdade e boa vizinhança percebiam-se tensões, as quais eram visíveis na configuração espacial do lugar – a exemplo das autoconstruções precárias, das casas sem janelas, dos arruamentos muito estreitos, das travessas e becos, em contraste com os jardins frontais das casas com fachadas coloridas e garagens com acesso para as ruas pavimentadas (HORTA, 2000, p. 174).

Eventualmente, outros símbolos surgiriam nas confidências dos informantes, como marcos estabelecendo uma suposta “fronteira” entre estas duas áreas. Tal como a história de que existiriam, na realidade, dois bairros diferentes em Cova da Moura separados pelo velho

moinho de vento 36. Contudo, o que estava na base da produção das fronteiras sociais entre os moradores do bairro não era transparente, nem facilmente identificável. Muito pelo contrário: “em Cova da Moura existem bué (muitas) de estórias” (ibid.).

Na tentativa de entender como as fronteiras sociais eram produzidas no bairro, a autora lança mão do modelo proposto pela antropóloga Sandra Wallman (1979; 1986), no qual, duas áreas multiétnicas, pertencentes a cidade de Londres, são contrastadas em termos de estrutura e organização. Por um lado, a área ao extremo leste de Londres (Bow) caracterizada no modelo como tendo um sistema fechado e homogêneo, no qual a etnicidade é usada para maximizar e aceder uma ampla gama de recursos. Neste caso, as fronteiras étnicas tendem a ser mais resilientes às mudanças e oportunidades econômicas e sociais. Por outro lado, a área Battersea caracterizada por um sistema aberto, heterogêneo e localista, onde os vínculos locais são os princípios que regem as relações entre os moradores. Fazendo com que a manutenção da fronteira seja mais flexível e a capacidade de adaptação, maior do que em um sistema fechado (HORTA, 2000, p. 174-75).