• Nenhum resultado encontrado

ESTABANADOS NA DESDITA – OS TIPOS TRAPALHÕES

2.4 AMÁLGAMA DE DEFORMAÇÕES

Um nascido no Circo, um formado pela Revista, outro pelo Rádio. A formação de cada cômico também influenciou na composição de seus tipos. A mistura dos procedimentos técnicos dessas escolas traduziu-se na heterogeneidade dos matizes de Didi, Dedé, Mussum e Zacarias: um ingênuo, um irascível, um pretenso malandro e outro malandro de fato. Um feio preterido, um galã conquistador, um tarado grosseiro, um bebê delicado. Um gosta de samba, outro de cantar, dois são acrobatas. Em comum, apenas a aversão pelo trabalho.

Conforme analisaremos neste capítulo, cada tipo desem- penha uma função na estrutura da poética trapalhona. Eles formam “quatro pernas de uma mesa”, no dizer de Aragão, e

19 Em Os Trapalhões na Guerra dos Planetas (STUART, 1978), por exemplo, Didi dá uma pista sobre a vida pregressa do quarteto. Quando questionado sobre o motivo de querer permanecer em outro planeta fora da Terra, diz para seus amigos trapalhões: “Sei que vou sentir falta da amizade de vocês, feita no sufoco da vida, 15 anos de malho em cima da gente”.

a ausência de qualquer um deles esvaziaria a comicidade do grupo20.

2.5 HERÓIS (INFANTIS MA NON TROPPO)

21

“Eu sento para escrever uma história para as crianças de calça curta”

Renato Aragão22

Para as crianças, os Trapalhões não eram apenas cômicos, mas também heróis. Valentes, exterminadores de vilões e, eventualmente, até com superpoderes, os quatro eram veículos da projeção de heroicidade da audiência mirim. Seus filmes aliavam a comédia aos recursos do gênero de cinema de ação.

No entanto, por que os Trapalhões foram, pouco a pouco, contrariando a expectativa inicial de Aragão, tornando-se

20 Por esse motivo, embora por cronologia devessem integrar a filmografia de nossa análise, não analisamos os dois filmes feitos quando o grupo se separou: Atrapalhando a Suáte (SANTANA, 1983), com Dedé, Mussum e Zacarias, e O Trapalhão na Arca de Noé (RANGEL, 1983), com o Didi sozinho.

21 O filme Os Trapalhões na Serra Pelada (TANKO, 1982), por exemplo, está cheio de pitacos de humor para adultos. Numa cena, vê-se ao fundo de um ponto de ônibus um muro no qual se lê: “Motel Popular. Aceitam-se casais a pé”. Quando viajam no Rabo do Cometa (SANTANA, 1986), há uma cena de plateia (procedimento comum da linguagem revisteira) na qual um espec- tador pergunta para Mussum: “O quê você acha de sexo no cinema?”. “Não é muito confortáve, não. As cadeiris atrapalham”, ele responde.

22 DOCUMENTÁRIO RETRATOS BRASILEIROS: DIDI, dirigido por Sérgio Rossini e exibido pelo Canal Brasil.

ídolos infantis? As crianças gostavam de seus filmes talvez porque em suas aventuras tenha se dado a singular confluência de super-heróis com palhaços. Como se misturássemos o Zorro com o Carlitos ou os Três Patetas com os Vingadores. Ou porque nos filmes (e na TV) elas não eram idiotizadas, mas sim tratadas como adultos23.

Com exceção dos momentos em que Zacarias age como um bebê, os roteiros dos Trapalhões sempre os apresentaram como adultos envolvidos em circunstâncias da vida adulta: romances, casamentos, adultérios, dívidas, vinganças, enras- cadas, desemprego, falta de moradia, carestia. Em que pese tratar-se de filmes para crianças, as três produções de nossa análise dirigidas por Alvarenga Jr. lançam mão da sensualidade de top models na composição do elenco. Nos Heróis Trapalhões (ALVARENGA JR, 1988), por exemplo, a modelo Luma de Oliveira usa calças agarradas e miniblusas sem sutiã. Uma dessas blusas torna-se transparente depois que a atriz se banha vestida na cachoeira, exibindo os conteúdos. Xaron mergulha nua num rio na fábula dA Princesa Xuxa e os Trapalhões (ALVARENGA JR, 1989).

Além disso, mesmo sendo heróis infantis, os quatro nunca são um poço de virtudes. Trapaceiam, enganam, usam de meios nem sempre os mais lícitos, ainda que suas causas sejam sempre justas. São malandros, mulherengos (tarados, às vezes) e não gostam de trabalhar. No sistema social brasileiro, em que impera a impunidade, é largo o espaço para se desenvolver uma dramaturgia que ri da desonestidade não como uma prática exótica, não gargalhando de algo excepcional, mas identifican- do-se com aquilo que no país é comum.

23 “Quanto mais eu dirigia o trabalho para o adulto, mais a criança vinha”. Renato Aragão in O MUNDO MÁGICO DOS TRAPALHÕES, Produção Editora Abril. São Paulo: Editora Abril, 2005. 1 DVD.

O riso não tem a priori uma função pedagógica. Duarte (1995) chama a atenção para o papel graciosamente deseducador do palhaço. Para a autora, enquanto a sociedade busca corrigir e disciplinar as crianças, no Circo, o bufão tem o papel, engraçado e sedutor, de explorar a delícia das potencialidades anárquicas dos pequenos.

N’Os Vagabundos Trapalhões (TANKO, 1982), Bonga recolhe bitucas de cigarro do chão para acendê-las na frente do menino Pedro24. No filme Os Três Mosquiteiros Trapalhões (STUART, 1980), o quarteto suborna o Capitão do barco com dinheiro, em troca de informações sobre o paradeiro de Foca, o vilão foragido. Nessa fábula, Dr. Cerqueira Lima, industrial afortunado, não quer que sua filha Fernanda se case com Duque, um galã pobretão. A mãe da moça entrega um colar de esmeraldas para Duque para que ele inicie seus negócios. Entretanto, a joia cai nas mãos de bandidos, mancomunados com o empresário Richer, sócio de Cerqueira Lima e candidato à mão de sua filha. O colar precisa ser retomado em um curto espaço de tempo. Para isso, Duque e Fernanda contam com a ajuda de três mosquiteiros (Dedé, Mussum e Zacarias), empregados encarregados da caça aos insetos na mansão, e de Didi-Zé Galinha. Ele é apaixonado pela aristocrata Fernanda, mas não é correspondido no seu amor. A caminho de resgatar o colar valioso, os Trapalhões percorrem o Brasil, de Foz do Iguaçu até o Amazonas, onde recolhem pedras sem valor encontradas fortuitamente que, no final, descobrem ser diamantes. O colar é devolvido e, como pagamento, os mosquiteiros Trapalhões pedem ao Dr. Cerqueira que permita o casamento de sua filha com Duque.

24 Em Bonga, o vagabundo (LIMA, 1969), filme anterior à carreira trapalhona de Aragão, o protagonista chega a dar um cigarro para um menor que se prazenteia com longas tragadas.

Descendentes em linha direta dos diabinhos e do perso- nagem do Vício nas moralidades medievais, os Trapalhões são livres de escrúpulos, vergonha ou culpa. Ainda que o público reprove algumas de suas ações, os bufões acabam sempre por serem absolvidos, uma vez que a plateia enxerga nessas situa- ções um reflexo de ocorrências comuns à realidade brasileira. O riso da comédia popular, ao mesmo tempo que critica, pode ratificar a estratificação social. Desde Aristófanes até o Teatro de Revista, um político atacado pelo escárnio da cena pode ser reeleito pelo mesmo público que dele riu no teatro e consagrou a peça. Ao desoprimir tensões e exorcizar pudores, o riso concede licença a que a vida prossiga o seu curso.

De volta à saga d’O Monstro Trapalhão (STUART, 1980), vemos um banquete oferecido aos Trapalhões por empresários estrangeiros. Quando Didi-Jegue vai tirar a caneta do paletó para assinar seu cartão de visitas, desvendamos o produto do seu roubo silencioso: colheres de prata, saleiro, cinzeiro, taças de cristal, peças de faiança que não param de sair de sua roupa. Momentos depois, ele pede a caneta ao investidor russo e percebe que, inadvertidamente, o estrangeiro também se põe a tirar talheres roubados do próprio bolso. E diz: “Tá vendo, gente? Depois diz que é só ieu. É costume internacioná”.

Além dessas manifestações pouco exemplares, os trapa- lhões fumam e bebem. Mussum, que não bebe pouco, é um alcoólatra assumido. Todavia, apesar desses pequenos vícios, hoje considerados politicamente incorretos, o humor do grupo sempre foi ingênuo. Suas piadas nunca saíram do padrão aceito à época como “familiar”. Em que pese seus apelidos, atualmente, serem tomados por preconceituosos, sua linguagem nunca incorporou palavrões. E seus filmes sempre orbitaram a esfera do que, naquele momento, era “moralmente” tolerado. Mesmo

nos episódios em que terminam com as beldades, raríssimas são as vezes em que os Trapalhões aparecem beijando-as. Tal qual nos entrechos de commedia dell’arte, os romances e beijos na boca ficam sempre por conta dos galãs.