• Nenhum resultado encontrado

ESTABANADOS NA DESDITA – OS TIPOS TRAPALHÕES

2.6 DIDI, O MENDIGO RENUNCIADOR

2.6.13 Os lazzi 64 do Did

Por meio de nossa análise das cenas trapalhonas, levan- tamos 29 lazzi utilizados pelo Didi: Quando está desconfiado, franze

a sobrancelha esquerda, fazendo-a levantar-se pelo canto. O tipo

também utiliza esse lazzo após a palavra: Então... e faz o gesto, conclamando a cumplicidade do público e prenunciando o início

64 Plural de lazzo: “Elemento mímico ou improvisado pelo ator que serve para caracterizar comicamente a personagem. Contorções, rictus, caretas, comportamentos burlescos e clownescos, intermináveis jogos de cena são seus ingredientes básicos” (PAVIS, 2008, p. 226).

de um ardil. Provocado, coloca as costas das mãos debaixo das axilas

e movimenta os braços como se batesse asas, projetando o tórax para frente. Aplaude como chipanzé. Faz o sinal de Buon apetit com a mão ou mesmo como se recolhesse da boca seu beijo, com o olho direito fechado, para imediatamente depois estalar os dedos como num passe de macumba, ou como se jogasse esse beijo para o ar. Outra variação

é, na sucessão desse beijo, fazer um sinal de espera com a palma da mão. Não sabe atirar e com o peso da arma atira para o chão.

Estica o pé e bate com as costas da mão na ponta do pé, endireitando-o. Ao comer, empurra o maxilar com um soco, de baixo para cima, para ajudar na mastigação. Faz do garfo um pente. Afia a espada no braço direito esticado, como se a arma fosse uma faca de açougue e o braço um afiador. Outras vezes, faz o mesmo sem a espada, mimando o braço esquerdo como uma arma. Diante de um vilão muito alto, ajoelha e se benze como se passasse em frente ao crucifixo. Abre a boca, puxando os dois maxilares em direções opostas, como se fosse rasgá-la, quando quer se “suicidar”65. Faz uma conta matemática, mima pegar

do chão um número que cai, dizendo: “Escorregou um zero, vai um...”. Quando está mentindo, encobre metade do rosto com as costas das mãos e pisca um dos olhos, como se escondesse um dos lados da face, em sinal de que vai começar alguma trapaça. Alguém estica a mão para cumprimentá-lo, ele estala os dedos sobre a mão do interlocutor, descrevendo um semicírculo de um lado para o outro, ininterrupta- mente e rápido, como se fosse uma bola de ping pong. Levanta e desce a sobrancelha rapidamente. Depois de um beijo da estrela, encara a câmera vesgo e boquiaberto. Estala os dedos batendo a mão para baixo, como se estalasse um chicote, do modo como fazem aqueles que dão um passe na umbanda. Esse sinal indica o início de um ardil, ou

65 Esse lazzo lembra os gestos do bebê nos primeiros meses de vida, quando está na fase oral e enfia a mão inteira na boca sem nenhum cuidado.

que tudo vai indo bem. Tenta colar com cuspe pedaços de peças que

acabou de quebrar, tais como: jarros, telhas, potes e pratos. Nervoso, ri em vibrato com a voz alterada para um tom grave. Quer aplaudir ao mesmo tempo que segura um objeto (uma bolsa, por exemplo) e termina por derrubá-lo. Olha para a câmera subindo e descendo as sobrancelhas, sinalizando que teve uma ideia ou que descobriu o ardil de seu oponente. Passa o indicador na pele de uma moça sexualmente apetecível e em seguida chupa o dedo, como se provasse de um sorvete. Rebola aos pulinhos com as mãos sobre a cintura quando ameaça seus oponentes, para, em seguida, fugir. Roça o indicador alongado debaixo da papada, quando precisa indicar alguma coisa ou uma saída para alguém de maneira disfarçada. Cospe os dentes para fora, depois de levar um soco. Fecha as duas pálpebras com os dedos, uma por uma, mas não consegue manter as duas fechadas e quando fecha uma a outra insiste em reabrir. Nesse lazzo, mantém sempre um olho

semiaberto como se fosse involuntariamente, mas, dessa forma, pode espiar desconfiado. Diante do perigo, emudece abruptamente

e não consegue mais falar. Chora em snif...snif. Quando alguém está mentindo, acena com o pé direito esticado como se, disfarçadamente, estivesse negando uma afirmação. Embaraçado, imita sucessivos latidos agudos e estridentes de um cachorrinho.

A vagabundagem e a energia na luta pela justiça são as características ambivalentes que, completando-se, acompa- nham o desajustado Didi. Aos 59 anos66, o mendigo renunciador

66 Os 50 anos do Didi foram tema da Escola de Samba paulistana X9, em 2011, com o enredo “De eterna criança a Embaixador da Esperança: Renato Aragão, Didi Trapalhão”. Em 1988, a Escola de Samba Unidos do Cabuçu, do Rio de Janeiro, havia apresentado o enredo “O Mundo Mágico dos Trapalhões”. Na ocasião, logo depois de iniciado o desfile, os cômicos se recusaram a permanecer em cima do carro alegórico. Os quatro desceram e desfilaram no chão, junto com os foliões da escola.

sobreviveu aos Trapalhões67 e, em 2019, ainda faz palhaçada em especiais de Televisão e em seus canais nas redes sociais68. Cearense e maltratado, esperto e independente, rei da facécia e do improviso, é um ícone da cultura popular de massa e segue a despertar interesse e identificação em diferentes gerações e faixas etárias, ao encarnar os assuntos e as quimeras dos desca- misados. Didi é o tipo midiático de carreira ininterrupta mais longeva da Televisão e do Cinema brasileiros, e sua figura emble- mática permanecerá como referência para futuras gerações69.

67 Com a morte de Antônio Carlos, Aragão afastou-se da TV. Depois de uma temporada de 1995 a 1998 trabalhando na TV portuguesa SIC, ainda ao lado de Manfried, Renato volta à Globo em 1998 com um programa solo, de viés mais infantil, A Turma do Didi, inicialmente sem a presença de Dedé, que só volta ao show em 2008. Em 2010, o programa passou a se chamar As

Aventuras do Didi e foi exibido até 2013 no canal aberto, permanecendo em

reprise no canal por assinatura Viva até o momento. Em 2017, Renato atuou numa única temporada de uma tentativa da Globo de reviver o programa Os

Trapalhões original, dessa vez, ao lado de jovens atores, como Lucas Veloso e

Mumuzinho, além de Manfried Santana. No cinema, a dupla ainda perdurou nos filmes: O Noviço Rebelde (YAMASAKI, 1997), Simão, o Fantasma Trapalhão (NETO, 1998) e O Trapalhão e a Luz Azul (BOURY, 1999). Depois, Renato seguiu sozinho como Um Anjo Trapalhão (BOURY, TRAVESSO, 2000), Didi, o cupido trapa-

lhão (NETO, BOURY, 2003), Didi quer ser criança (BOURY, 2004), Didi, o caçador de tesouros (FIGUEIREDO, 2006), O cavaleiro Didi e a Princesa Lili (FIGUEIREDO,

2006), O guerreiro Didi e a Ninja Lili (FIGUEIREDO, 2008) e, mais uma vez ao lado de Dedé, em Os Saltimbancos Trapalhões: rumo a Hollywood (TIKHOMIROFF, 2017). 68 https://www.instagram.com/renatoaragao/.

69 Por seu trabalho diante do programa de TV e da campanha social Criança

Esperança, Renato Aragão tornou-se embaixador do UNICEF em 1991. No

Festival de Gramado de 2008, o cômico recebeu um troféu Kikito especial pelo conjunto de sua obra. Em abril do mesmo ano, recebeu uma homenagem especial da Academia Brasileira de Cinema. Em março de 2012, foi o home- nageado do 3º Festival Risadaria em São Paulo.