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P.R.K.Cete, entre o palco e o microfone O lençol servia de rotunda, os sapatos, as roupas e as

ESTABANADOS NA DESDITA – OS TIPOS TRAPALHÕES

93 THE OXFORD ILUSTRATED HISTORY OF THEATRE, 1995.

2.9 ZACARIAS, O CAIPIRA ADAMADO

2.9.1 P.R.K.Cete, entre o palco e o microfone O lençol servia de rotunda, os sapatos, as roupas e as

perucas de sua mãe eram os adereços. Bidu chamava os vizi- nhos para vê-lo atuar no palco que improvisava nos fundos de sua casa. O ingresso eram dois tostões, arrecadados para ajudar o asilo. Quem levasse um pacote de velas tinha entrada permanente (a iluminação da ribalta improvisada era feita com velas). Às vezes, fazendo da banana um microfone, outras, incorporando personagens dos filmes de aventura e capa-e-es- pada, o menino imitava vozes, inflexões e trejeitos. Primogênito dos onze filhos do seu Mariano, comerciante e dono de uma torrefação de café, e de dona Virgínia, Mauro Faccio Gonçalves nasceu em Sete Lagoas, Minas Gerais, em 1934. Era garoto de ouvir muito rádio e prestar atenção no mundo que as vozes movimentavam dentro da grande caixa de sons. Cresceu numa numerosa família de classe média alta, alternando o convívio com os personagens de um bucólico universo rural com a fauna humana que desfilava pela cidade.

Ao mesmo tempo acanhado e arteiro, dividia suas habi- lidades entre as Artes Plásticas e o palco. Mauro foi o único trapalhão que fez Teatro. Ficou conhecido pela facilidade com que imitava vozes de gente e de animais, bem como pelas peças de seu grupo de teatro amador, o Flor-de-Lys, com o qual excursionava de caminhão pelo circuito das grutas, angariando dinheiro para campanhas benemerentes. Ali fazia cenários, maquiava, escrevia. Seu primeiro sucesso foi como o

caipira Firmino, na comédia Não Te Conto Nada, onde estreou a risadinha que carregaria para seus tipos futuros. Entre outras, destacou-se ainda em Lágrimas de Mãe, Nhô Manduca e Morre

um Gato na China.

Aos 20 anos, ingressou na Rádio Cultura, destacando-se em programas como Cresça e Apareça e, ao lado de Mara Lopes,

Em Barbosal é Assim118, resumo dos acontecimentos políticos e sociais da semana sete-lagoana que parava a cidade nas manhãs de sábado. Em 1957, aos 23 anos, foi para Belo Horizonte cursar Arquitetura, mudando depois para Belas Artes. Para sobreviver na capital, trabalhava na Rádio Inconfidência, como ator de radionovelas. Com o tempo, passou a integrar também o elenco da TV Itacolomi, como o jeca Caticó, e, em papéis dramáticos, passou a atuar no Teleteatro. Largou o curso superior e, no radialismo, acumulou as funções de locutor e de cômico119. Foi premiado como o melhor comediante da rádio mineira suces- sivamente de 1960 a 1963. Nesse ano, vai para o Rio de Janeiro, a convite do diretor Wilton Franco, e exibe sua graça na tela da Excelsior, no programa Viva o Vovodeville. Mais tarde, em 1968, toma assento no banco de Manuel de Nóbrega (1913-1976), na praça da TV Record.

Em 1970, na capital carioca, volta ao palco sob a direção de Amir Haddad (1937) com a comédia A Dama do Camarote120,

118 Apesar de diversas fontes citarem o programa como Em Barbosal Era

Assim, segundo Mariza da Conceição Pereira, esse é o nome de um livro a

respeito do programa, de autoria do radialista Geraldo Padrão. O verbo do título da atração seria conjugado no presente.

119 Segundo depoimento de Mara Lopes, em 2012.

120 Comédia de costumes de Djalma Castro Viana. O elenco da montagem original era composto por Alfredo Murphy (César), Elza Gomes (Ema), Eny Ribeiro (Alda), Henriqueta Brieba (Ema), Hildegard Angel (Alda), Mauro

na qual vive um secretário pederasta. A peça lhe valeu o prêmio de Ator Revelação121 e com ela excursionou por dois anos. Já na TV Tupi, além de atuar como dublador de filmes e desenhos animados, criou um novo tipo. Baseando-se numa pessoa real que conheceu em seu rincão122, compôs um garçom mineiro, tímido e safado, que aprontava mil confusões com seus clientes, de nome Moranguinho. Foi com esse tipo de voz marcante, no programa Café Sem Conserto, que conquistou a confiança de Renato Aragão para ingressar n’Os Trapalhões, em 1974. No projeto do cearense, Moranguinho transformou-se em Zacarias. Com seu aspecto provinciano, ingênuo e ressabiado, era a expressão mais infantil dentro do quarteto e com a qual as crianças menores mais se identificavam. Além disso, por sua compleição meiga e romântica, Zacarias acabou por encarnar a anima123 dos Trapalhões.

Gonçalves (Murilo), Paulo Ramos (Geraldo), Regina Rodrigues (Alda), Ribeiro Fortes (César) e Samir de Montemor (César). A peça ganhou ainda os prêmios Molière de Figurino e de Cenografia para Joel de Carvalho.

(http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_teatro/Enc_ Cias/dsp_dados_evento.cfm?id_evento=408883&st_evento=A%20Dama%20 do%20Camarote, acessado em 28/8/2012)

121 Ainda na década de 1970, Gonçalves atuou no musical De Ontem, de Hoje,

de Sempre, com Nádia Maria. Ele voltou ao Teatro como encenador em 1984,

ao dirigir a comédia A Noite pelo Avesso, de Jésus Rocha, no Rio de Janeiro. 122 Nossos depoentes sete-lagoanos disseram desconhecer qualquer figura da cidade de nome Zacarias. A escritora e pesquisadora Mariza da Conceição Pereira, que elencou mais de 100 tipos folclóricos do município para seu livro

Tipos Populares do Ontem e de Hoje de Sete Lagoas, afirmou não ter encontrado

qualquer personagem com esse nome. Entretanto o próprio cômico afirma ter se inspirado num tipo real em entrevista à repórter Leilane Neubarth para o programa Globo Repórter, exibido pela Rede Globo em 23/12/1988. 123 Componente feminino da personalidade dos seres humanos. “A anima,

Ao longo de sua carreira, o ator sete-lagoano também fez pornochanchadas: Tô na Rua, ô, Bicho (ARAÚJO, 1971), O Fraco

do Sexo Forte (FIGUEIROA, 1973) e Deu a Louca nas Mulheres

(MACHADO, 1977). Em 1975, lançou um disco de piadas (nada infantis), ao lado do tipo Lucrécia124. Mas nada se igualou ao tipo que legou à poética trapalhona. Zacarias era um menino que não cresceu; amado e querido pelo público dos quatro brincalhões. Mauro morreu num domingo, dia de Trapalhões, 18 de março de 1990, aos 56 anos, de infecção pulmonar, encerrando a formação quadrilátera de seu grupo. Seu desfalque apenas confirmou que “a empatia com o público decorre fortemente da diversidade oferecida pelos quatro componentes” (LUNARDELLI, 1996, p. 67).

2.9.2 O trapalhão delicado

125

Zacarias é o único trapalhão que não é mulherengo. Ao contrário dos outros três companheiros, não parece se

C. G. Jung, Vol. VII, §328 apud http://jogodeareia.com.br/psicologia-analitica/

anima-e-animus/, acessado em 28/8/2012).

124 Nega maluca com a qual formava dupla num quadro da TV Tupi. Em 1983, já com seu trapalhão consolidado, lançou o disco Com Você Quero Brincar, com canções politicamente corretas que ensinavam as crianças a não colocar o dedo no nariz, a comer direito e a não chupar chupeta. Bem díspar das molecagens deseducativas dos Trapalhões (Segundo http://trapalhaozacarias.webnode. com.br, acessado em 27/8/2012.

125 Pouco antes de os Trapalhões estrearem na Globo, Mauro Gonçalves seria protagonista da pornochanchada Deu a Louca nas Mulheres (MACHADO, 1977), na qual seu tipo Zacarias, ainda sem nenhuma conexão com os Trapalhões é assumidamente gay e faz muito sucesso entre as mulheres. Ressalte-se que, nesse primeiro momento dentro do grupo, o cômico levou seu nome de trapalhão para outra produção fora do quarteto: “Zacarias Kotonete, tímido vendedor numa empresa de tratores, é demitido por ter enfeitado um

interessar pelas garotas. A masculinidade dá lugar aos gestos afeminados: desmunheca, suspira, fala como uma mulher. Sua indumentária é sempre espalhafatosa, de cores berrantes e acessórios, às vezes, extravagantes (botões, suspensórios, coletes). Frequentemente está de calças curtas, macacão ou vestido de marinheiro.

Nas sagas trapalhonas, os disfarces femininos cabem sempre ao Zacarias. No filme Os Três Mosquiteiros Trapalhões (STUART, 1980), Dedé, Mussum e Zacarias se comprometem em ajudar a inamoratta Fernanda. Dedé afirma: “Quero ser o padrinho desse casamento”. Mussum diz: “Eu carrego as alianças”. “E eu? Quê que eu vou ser?”, pergunta Zacarias. “Dama-de-companhia”, responde Mussum. Em A Filha dos

Trapalhões (SANTANA, 1985), divididos entre os Trapalhões os

papéis perante a menina, fica estabelecida a função de pai para Didi, de padrinho para Dedé e de tio para Mussum. Uma assembleia entre o quarteto decide que Zacarias será a mãe. Nos shows que os Trapalhões faziam em eventos, empresas, escolas, ginásios, cinemas, circos e teatros, Brasil afora, Zacarias fazia

deles com plumas e paetês, a fim de vendê-lo a uma fazendeira. Carlão, seu colega, aconselha-o a procurar um trabalho mais adequado ao seu delicado temperamento. Por ter prestado um favor a Julieta, Zacarias é convidado por ela a trabalhar na loja Femine, especializada em roupas íntimas femininas, e que só admitia mulheres como funcionárias. Na loja, Zacarias faz tremendo sucesso entre as vendedoras, conquistando também a proprietária, Carmen, e suscitando ciúmes entre elas, que resolvem disputá-lo no palito. Zacarias fica revoltado por ser considerado um homem-objeto. Carlão, invejoso da sorte do amigo, resolve imitá-lo mas é expulso da Femine pelas mulheres, que só querem o amor de Zacarias. Este, localizado por uma japonesa, seu antigo amor na empresa de tratores, é finalmente readmitido em seu antigo emprego, onde todos os fazendeiros estão querendo tratores com a decoração especial que só Zacarias sabe criar” (http://www.ostrapalhoes.net/filmo- grafia/anos-70/a1977-deu-a-louca-nas-mulheres/, acessado em 20/8/2012).

um número em que aparecia dublando a cantora Madonna. No quadro da Liga da Justiça, na TV, a ele cabia o papel de Robin.

Não é raro no Circo o palhaço extrair efeito risível do travestismo. A comédia, desde tempos remotos, utiliza-se como fonte de riso de todas as categorias que apresentem situações de papéis sociais invertidos. Assim,

[...] será obtida uma cena cômica se a situação se inverter e os papéis forem trocados. [...] É assim que rimos do réu que dá uma lição de moral ao juiz, da criança que pretende dar lições aos pais, enfim daquilo que se classifique sob a rubrica do ‘mundo às avessas’ (BERGSON, 2001, p. 69-70).

Em Os Trapalhões na Serra Pelada (TANKO, 1982), Curió, Boroca, Melexete e Bateia são garimpeiros, explorados pelo alemão Von Bermann, interessado em casar-se com Lilian, a filha de seu advogado, Rufino, e em apossar-se da fazenda do honesto Ribamar. A propriedade localiza-se em local estratégico, e Von Bermann quer transformá-la em área de contrabando de ouro. Chicão, filho do velho Ribamar e namo- rado de Lilian, vem em seu auxílio contra o explorador alemão e, com a ajuda de um tenente, salva-lhe do cativeiro e retoma suas terras, distribuindo parte delas aos garimpeiros. Curió recusa a oferta de Chicão e volta para São Paulo, ao lado do indiozinho Kaú. No caminho, descobrem uma gigantesca pepita de ouro. Zacarias Bateia, de jeito dengoso e mimado, aparece de brinco de pena na orelha durante o filme.

Embora, na poética trapalhona, assuma características femininas, brincando de bonecas, fazendo manha, em nenhum momento Zacarias é apresentado como gay ou tem um compor- tamento que se aproxime disso. Aliás, nenhum trapalhão zomba

da feminidade do mineiro. O alvo das piadas de conotação sexual de Didi é sempre Dedé.

A feminilidade do tipo não é agressiva como a da maioria dos personagens travestis da TV brasileira. De maneira geral, Zacarias é o mais meigo, terno, bem-educado e gentil do quar- teto. O que não significa que ele seja sempre dócil. Em todos os filmes trapalhões, há os momentos nos quais o tipo torna-se hostil. Afinal, o palhaço, longe de ser um bibelô de prateleira, também é violento (VIGOUROUX-FREY, 1999; MINOIS, 2003; BOLOGNESI, 2003). É o que acontece quando Zacarias se aborrece. Sua insolência aproxima-se do comportamento dos bebês quando são contrariados. Nesses momentos, se atira no chão, esperneia, grita. Logo em seguida, volta a ser o boneco sereno e delicado.

Zacarias é um tipo romântico e sonhador, que brinca de “bem-me-quer” com as pétalas de flores, mas, nas pouquíssimas vezes em que ele aparece formando um par romântico com uma mulher, tanto na TV quanto no Cinema, cria-se um ruído na mensagem; há uma espécie de estranhamento em se ver um personagem tão adamado divisando uma mulher. É como se ao Zacarias, com sua meiguice e seus trejeitos, não coubesse a consumação de seu amor platônico em gestos, como num beijo, por exemplo.

É o que acontece n’O Casamento dos Trapalhões (ALVARENGA JR., 1988), quando o palhaço mineiro descobre que está apaixo- nado por uma mulher. A obra apresenta o camponês Didi, cansado de morar em meio à bagunça com seus três irmãos Dedé, Mussum e Zacaria126, partindo para a cidade em busca de uma noiva. Lá, ele arruma briga com o vilão Expedito para conquistar Joana,

126 A partir de 1987, o nome do tipo passou a ser grifado Zacaria, sem o S final, a pedido de seu criador. Segundo Lunardelli (1996), o cômico era espírita e essa seria uma orientação de seu guia espiritual, para não difamar

que carrega consigo para o campo. Depois de alguns conflitos para colocar a casa em ordem, Joana acaba por se adaptar à vida com seus cunhados. Eles hospedam seus quatro sobrinhos cantores e, quando vão à cidade vê-los cantar, enquanto os rapazes paqueram quatro lindas meninas, Dedé, Mussum e Zacaria acabam por arrumar três noivas. Joana engravida e as respectivas noivas de cada trapalhão e de seus sobrinhos fogem para viver com eles na fazenda. Aproveitando-se da situação, Expedito convence os pais das meninas a ir buscá-las no campo e castigar os trapalhões, mas, quando vê que tudo não passava de uma emboscada do vilão, o delegado leva Expedito preso. Após o nascimento da filha de Didi, os rapazes voltam à cidade para se casar.