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ESTABANADOS NA DESDITA – OS TIPOS TRAPALHÕES

2.3 O RISO DO CAMPONÊS

O universo rural de alguma forma permeia toda a obra

trapalhona, seja no Cinema, seja na Televisão. Mais do que o

espaço do campo, a alma do camponês é o alicerce psicológico dos quatro trapalhões: o roceiro do morro, o vaqueiro do sertão, o caipira. Mesmo na colina carioca, as características rurais de sua população perduraram até pouco tempo, pois a favela foi formada, nas suas primeiras gerações, por migrantes do interior e de outros estados14.

O programa de TV Os Trapalhões, localizando a casa de seus protagonistas na cidade, trazia dilemas das classes subalternas, muitos dos quais eram problemas de adaptação do migrante agrário diante da explosão demográfica: o desenraizamento de seus costumes, a inaptidão para o progresso segundo os padrões urbanos, a impessoalidade nas relações de trabalho, a fragmentação do sujeito, a exploração do patrão15. Em muitos de seus filmes, os trapalhões viajam do campo, do sertão ou de pretérita época rústica para a cidade grande ou para a moder- nidade contemporânea, com a qual sempre se decepcionam, pois nunca se adaptam aos costumes, ao barulho, à agitação e

14 Mais do que a cidade, o universo rural está presente em 80% dos filmes por nós analisados. Mesmo nas produções em que há as presenças do espaço da cidade e do espaço do campo, a zona rural ocupa a maior parte da fábula. Daí a identificação popular de uma época (décadas de 1970-1980) em que a maioria da população ainda morava no campo.

15 Segundo dados do IBGE, entre as décadas de 1960 e 1970, a população rural brasileira foi de 54,92% para 44,02%, número que continuou caindo avassaladoramente até o fim do grupo Os Trapalhões.Cf. dados disponíveis em http://seriesestatisticas.ibge.gov.br/series.aspx?vcodigo=CD91&t=po- pulacao-por-situacao-de-domicilio-populacao-presente-e-residente e em http://www4.fct.unesp.br/nera/atlas/caracteristicas_socioeconomicas_b. htm#migracao. (acessados em 08/09/2011).

à discriminação sofrida. Essa mudança faz com que se sintam permanentemente deslocados.

A ingenuidade do matuto diante das práticas cotidianas da urbanidade é um dos temas recorrentes da graça trapalhona. No Incrível Monstro Trapalhão (STUART, 1980), Didi-Jegue incor- pora um inventor, Dr. Jegue, que pesquisa em seu laboratório um combustível mais eficiente e vive em conflito com os mecânicos Quindim, Jassa e Dedé, pois é tido por eles como alienado e covarde. Os quatro são amigos do piloto de corridas Carlos Alberto e de sua namorada Ritinha, por quem Jegue é apaixonado. Um dia, Dr. Jegue tem uma grande ideia ao ver uma ilustração do Super-Homem na parede e acaba por inventar uma fórmula que o transforma em um monstro potente. Com a utilização dessa poção, Jegue vence nas pistas as artimanhas de Hugo, desleal concorrente de Carlos. Quando Jegue descobre um combustível poderoso, empresários estrangeiros querem comprar sua fórmula, em vão, pois Jegue considera traição a seu país vendê-la para outra nação e acaba entregando-a ao governo brasileiro. Depois do sucesso na manutenção do combustível em solo nacional, quando a fábula se deslinda, Dr. Jegue termina com Ritinha.

Diferentemente de seu Arlequim muitas vezes ignorante, nesse filme, Didi é inteligente, culto e dá aulas de Química para seus companheiros de oficina automobilística. Seu conheci- mento, entretanto, vai até o limite da sabedoria popular: é o conhecimento prático da experiência, da vida. Sua voz é a do povo que, de quando em quando, ecoa pela boca dos tipos trapalhões. Quando o empresário árabe abre sua mala com 100 milhões de dólares, o cearense, na sua sinceridade, afirma: “Esse dinheiro não quero não”. “Mas, Jegue, é dólar!”, replica Dedé. “Sim, mas como é que eu vou comprar pão na padaria com isso?”.

A alegria corrosiva do grupo está ligada, de certa forma, à origem rural de seus tipos. Sua fonte pode estar nas festas rurais brasileiras que aliam o riso à liturgização da fecundidade (MINOIS, 2003). Nessas festas, a vivacidade risonha e agressiva libera as grosserias corporais de suas danças. A licenciosidade se faz presente nas letras de muitas músicas do cancioneiro rural, sertanejo ou caipira16. São canções de mote malicioso cujas danças, em alguns casos, reproduzem com o corpo a ignomínia desbragada de sua poesia. É a celebração da vida na festa da colheita liberando o corpo por meio da palavra.

A zombaria mordaz, aliás, está no cerne de todas as cele- brações rurais da Cultura Popular (BAKHTIN, 1987). O mundo oficial é percebido como uma realidade pouco séria para o homem bronco do campo. “A política, a história oficial, a lite- ratura beletrista, a ciência e os avanços tecnológicos são vistos com descrédito e desconfiança” (SILVA, 1998, p. 42) pela visão popular. É por isso que ninguém é poupado pelo riso das mani- festações dramáticas da Cultura Popular. Apaixonados, donos de terra, capatazes, coronéis, doutores e barões, professores e capitães, clérigos e militares, comerciantes e oficiais: todos são vítimas do deboche.

O costume camponês de apelidar as pessoas por impropé- rios, muitas vezes relativos a defeitos físicos (nanico, perneta, maneta, meia-sola, catatau), também se apresenta no vocabu- lário de denominações do quarteto trapalhão. Reco-reco, bolão,

azeitona17, guarda-chuva, pouca-sombra, cardeal são algumas das

16 Essa característica pode ser encontrada na malícia do xote, do baião, do cururu, do repente, do chamamé e do arrasta-pé.

17 Reco-Reco, Bolão e Azeitona, apelidos dados por Didi a Mussum, Dedé e Zacarias, respectivamente, também eram os nomes de personagens de quadrinhos famosos da revista O Tico-Tico (1905-1977), criados por Luiz Sá

alcunhas usadas entre eles, principalmente por Didi. O próprio nome mussum designa um peixe de cor preta.

A poética trapalhona enraíza seus princípios cênicos na tradição ambivalente de um instinto dialógico/dialético: o de negar para confirmar, de amortalhar para ressuscitar, de insultar para elevar. É o camponês, o zanni que ri do patrão que o subjuga. No retrato que pinta da aristocracia, o trabalhador rural articula um jogo para que possa, por meio do escárnio, redimir-se do jugo, da fome, da violência, das condições severas de trabalho a que é submetido. Os Trapalhões, quase sempre, aparecem como quatro trapaceiros estabanados que enganam seus algozes para irem à desforra pela sua desdita18. Os quatro tipos são apresentados como os sem dinheiro, os despossuídos prontos a armarem trambiques que os façam subir na vida sem fazer esforço. Afinal, querem sair da miséria. Em muitas das situações dos esquetes televisivos do grupo, a ação principia quando eles acabaram de ser demitidos. No período de maior sucesso do programa de TV, a recessão tomava conta do Brasil, e as situações vivenciadas pelos quatro retratavam, portanto, experiências comuns à maior parte das classes subalternas nativas.

Contudo, a zombaria trapalhona não é contestação. Antes, constitui-se um jogo que reforça e aceita as hierarquias sociais e suas convenções ritualmente e temporariamente invertidas. As fábulas dos filmes trapalhões e de seus esquetes televisivos escarnecem e criticam personagens sociais, mas não

(1907-1979). A revista O Tico-Tico foi pioneira na publicação de histórias em quadrinhos no Brasil (http://pt.wikipedia.org/wiki/O_Tico_Tico, acesso em 04/07/2012).

18 Em Cinderelo Trapalhão (STUART, 1979), antes de apedrejar o carrão do Coronel, Didi pergunta: “Coronel, é bom destruir a casa dos pobres, é?”.

diretamente os mecanismos que engendram o sistema de que são vítimas. Longe de ser engajada, a sátira dos Trapalhões, ao mesmo tempo que critica, reafirma. Ao embaralhar a vida ordinária, cotidiana, assegura sua posição diante das forças instintivas. Se a comédia trapalhona é cáustica, ela não chega a ferir a ordem; ao contrário, reforça valores e normas19.