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ESTABANADOS NA DESDITA – OS TIPOS TRAPALHÕES

93 THE OXFORD ILUSTRATED HISTORY OF THEATRE, 1995.

2.8.10 O trapalhão músico

Mussum é o trapalhão músico. Foi pela música, aliás, como já vimos, que seu criador entrou para o quarteto (BARRETO, 2014). Segundo Santana (2009), Antônio Carlos Bernardes Gomes havia estudado teoria musical na Aeronáutica e tocava bateria por partitura. Além de aparecer tocando caixa ou bateria em alguns filmes, não são poucas as ocorrências do tipo trans- formando galões, barris, tonéis, pias de alumínio, frigideiras, raladores, panelas e pratos em instrumentos de percussão, como um autêntico musical clown. E por ser o samba um ritmo alegre por natureza, o gênero combina perfeitamente com a poética cômica dos Trapalhões. Ele ainda serve de pretexto para o mangueirense desenvolver suas evoluções corporais.

Segundo o músico Jorge Aragão109, Antônio Carlos inventou um jeito particular de tocar reco-reco no Originais

do Samba, jogando o ombro direito para cima e para baixo – e

marcando o compasso na baqueta metálica a partir desse

109 Sambista, tocador de banjo e compositor. Começou sua carreira na década de 1970, em bailes e casas noturnas. Como compositor, despontou em 1977. Foi integrante do grupo Fundo de Quintal (do gênero pagode) e um de seus principais compositores e letristas, tendo por isso abandonado o conjunto algum tempo depois para dedicar-se à carreira solo (ENCICLOPÉDIA DA MÚSICA BRASILEIRA: POPULAR, ERUDITA E FOLCLÓRICA, 1998). Foi amigo pessoal de Antônio Carlos Bernardes Gomes.

movimento110. Esse trejeito contribuiria para a composição das evoluções braçais de sua dança e iria se cristalizar depois num de seus lazzi. O movimento de ombro também é muito utilizado para reforçar o ímpeto de seu braço quando está irri- tado. Mussum também costuma cantarolar trechos de melodias de sambas, intercalados em meio a sua fala, sobretudo para disfarçar o temor quando está em apuros, como recurso cômico.

2.8.11 Dá-me mé: o palhaço bebum

Como zanni que se preza, Mussum é um glutão. Seu banquete, quando vem, é servido no limite da boa mesa e sacia não apenas a sua fome, mas a de um povo faminto. A ceia abundante celebra o êxito e, por ser uma conquista do corpo sobre o espírito – e da vida sobre a morte –, torna-se um triunfo universal.

Em meio à comilança dos empresários do Incrível Monstro (STUART, 1980), Mussum-Jassa exclama: “Se vai vir mais comida, vai ter mais mé”, ao que é replicado por Zacarias-Quindim: “Essa fórmula do Jegue pode não dar dinheiro, mas que dá barriga cheia, isso dá”. O banquete universal bakhtiniano também aparece no Cangaceiro Trapalhão (FILHO, 1983). No convescote oferecido ao falso Capitão, o prefeito de Água Linda enumera um a um os pratos de uma extravagante sequência em descri- ções exuberantes e hiperbólicas. Na Idade Média, o “banquete tinha o poder de libertar a palavra das cadeias da piedade e do temor divino. Tudo se tornava acessível ao jogo e à alegria” (BAKHTIN, 1987, p. 252).

110 Jorge Aragão em depoimento ao documentário RETRATOS BRASILEIROS: MUSSUM, dirigido por Sérgio Rossini e exibido pelo Canal Brasil em 31/07/2004.

Além de comilão, Mussum é o único exemplo que levantamos de palhaço alcoólatra no Brasil111. A bebida, ou o

mé, como ele a chama, é a sua grande paixão. Ele bebe, mas

nunca está bêbado112. E isso faz parte da lógica da comicidade, cuja dramaturgia pode ser plausível, mas nunca é verossímil. Talvez por isso, até o desaparecimento do tipo em 1994, nunca tenha havido problemas com o público infantil d’Os Trapalhões. O palhaço da Mangueira aparecia com frequência em busca da cachaça, cujos atributos sempre foram enaltecidos em seu discurso, assim chamado de politicamente incorreto pelos padrões atuais. No entanto, ele nunca aparecia embriagado113.

Segundo Bakhtin (1987), na dimensão popular, as imagens ambivalentes são, a um só tempo, bentas e humilhantes, como consta deste comentário de Rabelais na sua obra Pantagruel:

É uma maneira vulgar de falar em Paris e em toda França, entre as pessoas simples, que julgam terem

111 Em relação ao tipo, não ao intérprete. Há registros de cômicos interpre- tando papéis de bêbados nas comédias que se apresentam no segundo ato dos circos-teatros, mas são personagens desempenhados pelos intérpretes dos palhaços e não as figuras dos palhaços em si (BOLOGNESI, 2003).

112 “Se o Mussum criava piadas em que bebia cachaça era porque aquilo soava divertido e, de certa forma, fazia parte da vida dele. Em nenhum momento incentivávamos o público a consumir bebidas alcoólicas” (Renato Aragão em depoimento à Veja São Paulo, p. 102, 21 de março de 2012). 113 Mussum-Homem de Lata, ao sair de seu barril prateado no reino de Oroz (1984), só sabe dizer: “Mé, mé”. Questionado sobre a interjeição monossilábica de seu discurso, explica: “Preciso de fosfatis, fortificantis, MÉ!”. Mais tarde, informado de que o Homem de Lata precisa de um coração para ser feliz, Didi explica para o Espantalho: “Tá vendo, menino, como encher o bucho de cachaça não traz felicidade?”. É a única ressalva em relação ao alcoolismo de Mussum que detectamos nos 22 filmes analisados. Por ironia do destino, Antônio Carlos Bernardes Gomes morreu dez anos depois do filme, após ter passado por um transplante de coração.

sido especialmente abençoados todos os lugares sobre os quais Nosso Senhor fizera excreção de urina ou outro excremento natural, como da saliva está escrito em São João, 9: Lutum fecit ex sputo (RABELAIS apud BAKHTIN, 1987, p. 128, grifo do autor).

Depois de se safarem de serem estraçalhados por pira- nhas, Mussum traga de um só gole toda uma garrafa de pinga e urina no rio, embriagando todos os peixes no filme Cangaceiro

Trapalhão (FILHO, 1983). No reino da Princesa Xuxa (ALVARENGA

JR., 1989), Mussum-Mussaim, palhaço da grande boca que bebe, fugindo pelo deserto, decide fazer xixi, dizendo: “Príncipe, esconde a Princesa que eu vou fazer algo porque tô apertado e não aguentis. É urgentis!”. Depois de suspirar, percebe que de sua urina sai apenas areia: “Areia? Eu tô sequis!”. Relacionada à ideia de nascimento, fecundidade, renovação e bem-estar, a urina no imagístico popular (bem como as fezes) é a matéria alegre que transforma o medo em riso, ao rebaixar e aliviar (BAKHTIN, 1987).

Georges Minois (2003) chama a atenção para a classe do humor borracho que se desenvolveu na França entre fins do século XIX e começo do XX, cujos ecos ainda se fazem sentir. “O bêbado dobra-se ao meio, vomita, cospe, urina, peida. Seu humor malcheiroso une-se à voga muito popular do peidorreiro” (MINOIS, 2003, p. 494). O próprio Mussum aparece urinando nos filmes O Cangaceiro Trapalhão (FILHO, 1983) e A Princesa Xuxa e os

Trapalhões (ALVARENGA JR., 1989). Embora não apareça bêbado,

Mussum pode representar não o estado da forma embriagada, mas o que o álcool pode associar às situações nas quais aparece:

a escatologia, a trivialidade, a derrisão provocadora, o desejo de libertação do estado antissocial daquele que bebe114.