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A Amante do Tenente Francês: o romance de John Fowles, o argumento de Harold Pinter e o filme de Karel Reisz

EXPERIMENTAÇÃO, INTERTEXTUALIDADE E ADAPTAÇÃO

1.3. A Amante do Tenente Francês: o romance de John Fowles, o argumento de Harold Pinter e o filme de Karel Reisz

O terceiro caso que incluímos neste roteiro é o de um filme (de Karel Reisz) feito a partir de um texto literário (de John Fowles), não como simples fonte de inspiração mas como adaptação ao cinema de um romance anterior, mantendo-lhe o mesmo título: The French Lieutenant’s Woman (em português, A Amante do Tenente Francês).

Tal adaptação terá como texto intermediário o argumento de Harold Pinter.

Primeiramente, umas breves palavras sobre o romancista e esta sua obra impõem-se. John Fowles foi um reputado romancista inglês, nascido em Leigh-on-Sea (no Essex), em 1926, e falecido em 2005, em Dorset. Licenciado em língua francesa, na Universidade de Oxford, foi um leitor e admirador de escritores franceses como Albert Camus e Jean-Paul Sartre. Exerceu a profissão de professor, tendo-se tornado, posteriormente, escritor. Em 1963, surge o seu primeiro romance, O Coleccionador. O sucesso indu-lo à escrita de outros romances (como The Aristos, 1963 e The Magus, 1965). Em 1969, publica aquele que se tornará o seu romance mais famoso e premiado,

The French Lieutenant’s Woman.

Trata-se de um romance baseado nos códigos romanescos do chamado romance romântico ou gótico, género cujos antecedentes nos fazem recuar ainda mais, nomeadamente ao romance de costumes do século XVIII. Conta-nos a história de Charles Smithson, um aristocrata naturalista / antropólogo e noivo de Ernestina Freeman (filha única de um rico comerciante), que se apaixona por uma mulher misteriosa, estranha, melancólica e proscrita pela moral e convenções da sociedade vitoriana do seu tempo, Sarah Woodruff (a amante do tenente francês). Ela representa o arquétipo da mulher demoníaca (vestida de negro, furtiva), capaz de assumir a sua inconformidade existencial aos códigos que regem a condição feminina da época – os do puritanismo vitoriano –, mostrando-se independente do poder masculino (questão do livre arbítrio) e, mais, evidenciando uma capacidade manipuladora e instrumentalizadora do sexo oposto (deixa-se seduzir por Charles como terapia para o seu antigo mal de amor – o adúltero tenente francês – e, depois, deixa-o, numa das alternativas oferecidas ao leitor). O mais interessante deste romance é, não apenas, o da rigorosa reconstituição da época inglesa de meados do século XIX, mas a manifestação clara que essa mesma época é objecto do olhar de Fowles enquanto autor do século XX, assumindo-se uma postura irónica (decorrente do próprio fosso epocal referido) através de intervenções na narrativa (comentários sobre a sociedade vitoriana; citações de Darwin, Marx e de poetas da época; notas de rodapé; diálogos com o leitor) e oferecendo ao leitor três finais em aberto (em dois deles há casamentos: um com Ernestina e o outro com Sarah; no terceiro, Charles é abandonado pela ex-governanta da casa dos Talbots). O carácter metaficcional, paródico e de feição experimental deste romance, conjugado com a abordagem crítica da condição feminina, situa-o nas fronteiras entre a modernidade e a pós-modernidade do século XX. Dominando com perfeito à-vontade os códigos do romance romântico, bem como os da comédia de costumes, Fowles abre caminho à passagem do romance moderno para o pós-moderno.

John Fowles entregará a responsabilidade da adaptação do seu romance ao cinema ao dramaturgo inglês, Harold Pinter, futuro prémio Nobel da Literatura, e a direcção do projecto ao inglês de origem checa, Karel Reisz. Será justo dizer-se que aos dois nomes referidos (o do dramaturgo e o do realizador) se deve a criação de

uma nova obra-prima: o filme A Amante do Tenente Francês (1981).

Harold Pinter, nascido em Londres, em 1930, e aí falecido, em 2008, foi um reconhecido escritor, poeta, dramaturgo e activista político em prol do pacifismo. Cultivador do chamado teatro do absurdo, conjuntamente com Samuel Beckett e Eugène Ionesco, virá a ser distinguido pela Academia Sueca, em 2005, com o Prémio Nobel da Literatura, enfrentando as críticas injustas dos seus ferozes oponentes políticos que não lhe perdoaram a sua condenação da intervenção militar britânica e norte-americana de 2003 no Iraque. A Pinter se deve muito na concepção dramatúrgica original do filme, nomeadamente a sua condição pós-moderna patente na estrutura narrativa e na natureza da linguagem.

Karel Reisz, nascido em Ostrava (Checoslováquia), em 1926, e falecido em Londres, em 2002, foi um cineasta inglês de origem checa e judaica, uma vez que ainda criança conseguiu escapar ao holocausto quando foi levado para Inglaterra, aí se naturalizando e estabelecendo para o resto da vida (os seus pais morreram em Auschwitz). Realizou vários filmes, alguns de grande sucesso, como é o caso de A

Amante do Tenente Francês, de 1981. Estudou em Cambridge e cedo manifestou o seu

interesse pela arte cinematográfica através da escrita sobre técnicas de montagem e, depois, como protagonista do movimento free cinema que postulava novos caminhos estéticos e empenhamento nas causas sociais. À direcção de Reisz também muito deve o sucesso do filme, bem como à direcção artística, à fotografia e à qualidade excepcional do elenco de actores (Meryl Streep e Jeremy Irons, nos respectivos duplos papéis de Sarah / Anna e Mike / Charles). O filme não chegou a ser premiado, mas Meryl Streep arrecadou o Globo de Ouro, o BAFTA e a sua segunda nomeação para o

Óscar.

Pinter e Reisz convertem o romance de Fowles numa original linguagem cinematográfica, reafirmando o sentido de modernidade / pós-modernidade, pois que um olhar contemporâneo está patente na estrutura metalinguística e metaficcional, permitindo, por via do tratamento do tema da relação amorosa e do adultério, a análise dos costumes e do problema de género (masculino / feminino). Num desafiante jogo especular apresentam-se, em mise en abyme (“the movie within the movie”), duas histórias protagonizadas pelos mesmos actores: uma história de amor entre os actores Mick e Anna dentro do filme, passada nos anos setenta do século XX (que acaba com o desencontro final) e a história de Charles e Sarah, um amor infractor das rígidas regras de conduta moral da época vitoriana inglesa (século XIX), que inversamente termina com um desenlace feliz. Em vez dos três finais possíveis de Fowles, no filme temos dois – o da novela sentimental da época vitoriana (narrativa de 2º grau) com final feliz e o da época actual (narrativa de 1º grau) com final infeliz: a ambígua Anna mantém-se simultaneamente casada e descomprometida em relação ao amante, Mike. De certo modo, de forma semelhante ao romance, observa-se, pois, no filme, a contraposição de pontos de vista / tempos (diálogo presente-passado) e de possibilidades alternativas, mas, na estrutura especular deste último, os códigos

existenciais, comportamentais, culturais e axiológicos num tempo (séc. XIX) e no outro (séc. XX) não permitem soluções idênticas para as duas histórias: a felicidade é possível na história de 2º grau, mas não na de 1º grau.

Fig. 2: The French Lieutenant’s Woman (1981)

2. AS LIGAÇÕES PERIGOSAS: DO ROMANCE EPISTOLAR DE CHODERLOS DE