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MÍSTICO-RELIGIOSAS DE TENDA DOS MILAGRES

OS PROPÓSITOS DO ESTUDO

Quem é ateu e viu milagres como eu/Sabe que os deuses sem Deus Não cessam de brotar, nem cansam de esperar/ E o coração que é soberano e que é senhor

Não cabe na escravidão... (“Milagres do Povo” - Caetano Veloso, tema de abertura de Tenda dos Milagres)

Este artigo, derivado de uma pesquisa2 do curso de Comunicação Social da UEPB/

Brasil, reflete sobre os arquétipos místico-religiosos que perpassam a minissérie Tenda

dos Milagres, baseada no romance homônimo de Jorge Amado, escrito em 19693. O es-

tudo que originou este texto objetivou: caracterizar o gênero ficcional como veículo de problematização da cultura e da midiatização contemporânea do campo religioso; apon-

tar diálogos entre os personagens que ilustram as situações de preconceito e os rituais

do Candomblé; Destacar os elementos imagéticos e sonoros que compõem os cenários, uma vez que estes auxiliam a compreensão dos simbolismos religiosos; Verificar se a mí- dia, a partir do segmento da teledramaturgia, informa a sociedade sobre a construção da identidade étnica e as tradições culturais que envolvem as religiões de matriz africana.

Torna-se oportuno esclarecer que não realizamos aqui qualquer discussão de caráter teológico sobre a religiosidade afro-brasileira, e a expressão “arquétipos” tam- bém não se reporta à perspectiva teórica junguiana, aludindo apenas às simbologias de matrizes africanas que contam histórias, imagens e mitos herdados que configuram a tradição oral do Candomblé. Nesta abordagem, os dispositivos de mediação comu- nicacional são considerados em suas matrizes de “identificação cultural” e circulação simbólica (HALL, 2004), e a ficção televisiva entendida enquanto ambiente de fruição para a discussão de questões sociais relevantes como o racismo e a discriminação de crenças vinculadas à luta pela cidadania dos negros.

O nome da minissérie faz referência à tipografia do personagem Lídio Corró (Mil- ton Gonçalves), talentoso artesão de madeira e melhor amigo do protagonista, Pedro Archanjo (Nelson Xavier). Um local peculiar que funciona como residência, expressão de fé e ponto de encontro da boemia baiana para comemorações. Lá, os objetos que representam os milagres dos santos, encomendados pelos beneficiados das graças alcançadas, dividem espaço com as máquinas rotativas de impressão dos primeiros folhetos de denúncia do racismo, produzidos por Archanjo. Nesse ambiente sincrético entre o sagrado e o profano, onde a alegria e a esperança se misturam à dor, emergem a força, a obstinação e a intelectualidade do protagonista.

Tenda dos Milagres expõe a fase de engajamento de Jorge Amado às questões so-

cioculturais, entrelaçadas com as causas da miscigenação e da construção da identidade

2 Investigação intitulada Os arquétipos místico-religiosos na ficção televisiva: o universo simbólico de

Tenda dos Milagres, concluída em 2012.

3 16º romance do escritor, fundamentado em fatos históricos, que foi traduzido para o alemão, espanhol, francês, húngaro, inglês, italiano e russo (GOLDSTEIN, 2003).

étnica, mediante o enfrentamento dos poderes dominantes nos anos de 1930. Aborda a religiosidade ancestral, a partir do Candomblé4, articulando seus hibridismos e sincretis-

mos, disseminando suas práticas no imaginário popular. Redimensionado na linguagem audiovisual, o enredo revela o preconceito e a perseguição da polícia aos cultos e rituais de matriz africana, através das cenas vividas no terreiro da mãe de santo Majé Bassã (Chi- ca Xavier). Personagem uno e múltiplo, Pedro Archanjo reúne uma síntese das qualidades do negro, que enfrenta, corajosamente, o seu não saber para se contrapor às teorias ra- cistas, que visam impedir não somente o exercício da liberdade social, como da liberdade de crenças. Entre rituais de fé e rituais profanos, o carisma e a sua personalidade solidária forjam a tematização místico-religiosa em torno dos poderes do orixá Xangô5, que o no-

meia “a luz do seu povo” e o empodera para o enfrentamento do racismo.

Ao focalizar essa problemática, Tenda dos Milagres parece favorecer a discussão da cultura e do trânsito dos símbolos religiosos, que nos permitem uma aproximação à tríade conceitual mídia, cultura e religiosidade, a partir da formulação de algumas questões: como as religiosidades surgem na mídia? Como são as religiosidades da mí-

dia? Como tais religiosidades instigam a percepção de uma sociedade multicultural?

Nessa direção, o enfoque deste texto pode contribuir para esse debate, uma vez que remonta aos elementos polissêmicos que permeiam o universo do Candomblé (re)in- ventado na literatura amadiana com seu viés cultural e socialista. Em outras palavras, propõe despertar o interesse para a discriminação social que ainda perpassa as ex- pressões e subjetividades das religiões de matriz africana, suscitando a compreensão dessas práticas de fé e informando sobre suas simbologias, seus fazeres e saberes, a partir das estratégias discursivas e estéticas de fabulação tele ficcionais.

Com tal propósito, demarcamos características do gênero ficção televisiva e apresentamos alguns fragmentos da minissérie com a finalidade de ilustrar a discus- são pretendida.

O ESPAÇO DA FICÇÃO: PANORAMA CONCEITUAL

Na sociedade contemporânea, a ficção televisiva é marcada pelo hibridismo e a preocupação com a identidade nacional, tornando-se, deste modo, um importante veículo de interculturalidade, podendo ativar a competência cultural, a socialização das experiências criativas e o reconhecimento das diferenças e alteridades (LOPES, 2004). Permite o conhecimento dos que os outros fazem, como pensam, como mani- festam sua fé, quais seus pertencimentos étnicos, quais as expectativas e conflitos de diferentes gerações em diversos tempos históricos. Essa gama de tematizações nota-

4 Em sua etimologia, o vocábulo, que optamos pela grafia com inicial maiúscula, apresenta uma junção do termo quimbundo candombe (dança com atabaques) com iorubá ilé ou ilê (casa), significando “casa de dança com atabaques”. É uma religião derivada do animismo africano, que cultua os Orixás, divindades da natureza, a partir de danças, oferendas e sacrifícios.

biliza, influencia e recria diferentes expressões culturais, podendo propiciar reflexões não apenas sobre as várias religiosidades como problematizar dilemas sociais que se mesclam à discriminação e ao preconceito social-étnico-religioso.

Nesse sentido, o gênero adquire valor estratégico na criação e consolidação de novas identidades culturais compartilhadas, consistindo numa narrativa popular sobre a nação. Configura, na verdade, um lugar privilegiado na TV de onde se anuncia uma nação “representada” e não só “imaginada”: “Histórias narradas pela televisão são, antes de tudo, importantes por seu significado cultural, oferecendo material precioso para se entender a cultura e a sociedade de que é expressão” (LOPES, 2004, p. 125). Na mesma linha argumentativa, Silverstone (2002) reitera que as tramas ficcionais são nossa cultura, “gostemos disso ou não, expressando as consistências e contradições da fantasia (...) oferecendo textos para que nós, suas audiências, nos posicionemos, nos identifiquemos” (SILVERSTONE, 2002: 82).

O pensamento de Jost (2007), por sua vez, considera que o gênero ficcional não representa “uma mentira”, mas traduz um olhar específico sobre a realidade. “Por isso, em toda ficção sempre há uma história verdadeira. E em toda história verdadeira há elementos de ficção, que se unem para garantir verossimilhança ao que é narrado” (JOST, 2007: 114). Nessa perspectiva, a verossimilhança das tramas é tecida no inte- rior das narrativas, o que permite o fortalecimento das raízes do gênero em meio à cultura particular que o produz.

Em Tenda dos Milagres, é possível vislumbrar a identificação cultural com o Nordeste Brasileiro. O personagem Pedro Archanjo foi inspirado na junção de dois ativistas políticos do mundo real, que tinham a meta de preservar a cultura negra: o escritor baiano Manuel Querino (abolicionista) e o Obá Miguel Santana (Babalorixá), ambos defensores importantes da liberdade religiosa na Bahia. O médico e antropólogo Nina Rodrigues, por sua vez, deu origem a Nilo Argolo (Oswaldo Loureiro), opositor das ideias vanguardistas do protagonista. Na narrativa em questão, o caráter não fictício se dilui entre as criações do imaginário, possibilitando maior fruição do contexto. A ances- tralidade sutilmente discutida pela minissérie, através da voz de Pedro Archanjo, na ver- dade evoca não apenas elementos da memória afetiva do personagem, como se mostra um instrumento discursivo para disseminar experiências factuais do período histórico retratado. O acréscimo do imaginário parece sinalizar a fluidez narrativa, misturando- -se, portanto, a enunciações da realidade, constituindo uma estratégia que lhe confere verossimilhança. Assim, Tenda dos Milagres notabiliza elementos biográficos da espa- cialidade baiana, à medida que se entrelaça com a historicidade brasileira da década de 1930, reproduzindo uma correlação perceptível no texto, nos cenários, nos figurinos, nas ambientações dos capítulos com suas representações de matrizes culturais.

Corroborando essa assertiva, Bulhões (2009) postula: “A ficção não é um invólucro impenetrável, uma cápsula suspensa na imaterialidade: só pode transfigurar o real por tê-lo conhecido, por isso o subverte” (BULHÕES, 2009: 22). Ao salientar que o artifício