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O PASSADO E O PRESENTE (1971) E BENILDE OU A VIRGEM MÃE (1975): OS AMORES FRUSTRADOS E O TEXTO DITO

NA FILMOGRAFIA DE MANOEL DE OLIVEIRA

O PASSADO E O PRESENTE (1971) E BENILDE OU A VIRGEM MÃE (1975): OS AMORES FRUSTRADOS E O TEXTO DITO

De acordo com o debatido anteriormente, a adaptação literária e a teatralidade não são elementos absolutamente novos na filmografia oliveiriana dos anos 1970. Conforme averiguado, já desde 1942, com Aniki-Bobó, e depois com Acto da Primave-

ra, na primeira metade dos anos 1960, respectivamente suas duas primeiras longas-

-metragens, Manoel de Oliveira faz uso tanto da transposição do texto literário como da representação teatral em seu trabalho. Mas O passado e o presente e Benilde ou

a virgem mãe inauguram (ou reinauguram e reforçam) dois importantes movimentos

estilísticos na filmografia oliveiriana (que encontrarão eco em títulos futuros do reali- zador): os amores frustrados e o texto dito11.

Em O passado e o presente Manoel de Oliveira procede a adaptação cinemato- gráfica do texto homônimo de Vicente Sanches. O enredo explora os atos ridículos e a comicidade da alta burguesia portuguesa por meio da protagonista Vanda, incapaz de amar seus maridos em vida, mas que lhes dedica enorme veneração depois de mortos. Já Benilde ou a virgem mãe, transposição para o cinema da novela homônima de José Régio, acompanha o mistério de Benilde, a jovem grávida, embora virgem (?), que espera um filho de um “anjo de Deus”.

Com o título de 1971, o cineasta inaugura aquele que pode ser tido como o conjunto mais consensual por parte da crítica sobre o seu trabalho: a tetralogia dos

amores frustrados. O grupo composto também por Benilde ou a virgem mãe, Amor de perdição e Francisca versa sobre a inconcretude da consumação sexual entre ca-

sais que se amam; relação impossibilitada pela desarmonia entre a visão de mundo masculina e a conduta moral feminina nos enredos oliveirianos. O conflito elementar destes filmes será reproduzido posteriormente em títulos como O sapato de cetim,

Os canibais, Vale Abraão, Party, A carta e Singularidades de uma rapariga loura.

O internacionalmente conhecido crítico, ensaísta, escritor e ator português João Bénard da Costa12, em seu texto Pedra de toque – o dito “eterno feminino” na obra de Manoel de Oliveira (2005), numa dada altura passa a listar as principais características

que fazem de O passado e o presente um marco na filmografia oliveiriana: (I) “a alter- nância de grandes sequências sem diálogos com sequências muito faladas, ou em que o diálogo determina a mise-en-scène”; (II) “é o primeiro filme de corporalidade vin- cadamente fantasmática, em que os oito protagonistas se movem como espectros,

11 O passado e o presente também foi o primeiro filme produzido pelo Centro Português de Cinema – CPC, em 1969. O CPC, cooperativa de cineastas que contribuiu significativamente para a origem do movimento estético e político cinematográfico que ficaria para a história como Novo Cinema Português e que teve em sua órbita nomes como o do produtor António da Cunha Telles e dos realizadores António Pedro Vasconcelos, Fernando Lopes, João César Monteiro e Paulo Rocha, foi também um ato de resistência em pleno Estado Novo Português.

12 Diretor da Cinemateca Portuguesa entre 1991 e 2009, ano de seu falecimento, Costa participou como ator, sob o pseudônimo Duarte de Almeida, em mais de uma dezena de filmes de Manoel de Oliveira.

numa casa igualmente espectral ou em locais associáveis à morte (cemitério, igreja)”; (III) “é o primeiro filme de Oliveira em que há um evidente desequilíbrio entre a força das mulheres e a fraqueza dos homens”; e (IV)

(…) é o primeiro filme dominado pela teatralidade da representação, percorrendo as gamas que vão de uma teatralidade assumida e dominada (...) a uma teatralidade amadora (...). E obviamente Oliveira não escolheu os intérpretes (melhores ou piores) pelos seus dons, mas pela sua imagem, pela sua aura. Simultaneamente, o texto dito é, não só também ultrateatral, como é um texto sem qualquer correspondência com o português usual, acentuando, até a caricatura, a inverosimilhança dos diálogos e das situações (COSTA, 2005: 120-121).

Seguindo Bénard da Costa, a partir de afirmações como “o diálogo determina a

mise-en-scène”, “corporalidade vincadamente fantasmática”, “a força das mulheres e

a fraqueza dos homens” e “primeiro filme dominado pela teatralidade da representa- ção” é possível aferir que O passado e o presente, ao inaugurar o conjunto tetralogia

dos amores frustrados, unifica e intensifica padrões temáticos e formais utilizados em

filmes anteriores – o tempo narrativo a partir dos diálogos, o corpo como elemento discursivo, o masculino versus o feminino, a teatralidade – instaurando, a partir de então, novas bases referenciais em seu estilo de trabalho.

Por fim, se O passado e o presente é um marco na obra oliveiriana (e, de fato o é) por todos os motivos já relacionados, cabe a Benilde ou a virgem mãe fincar as esta- cas de uma categoria de trabalho em que o texto dito pelos atores, não classicamente interpretado, mas pronunciado, estabelece-se como modo. Modo que, alinhado às particularidades manifestas desde 1971, consagram à tetralogia dos amores frustra-

dos um lugar privilegiado para a compreensão da obra oliveiriana. Por este motivo,

permitir que o ator esteja com a personagem – e não sobre a personagem13 –, revelar

os aparatos técnicos do fazer cinematográfico14 e contar as suas histórias a partir de

um único ponto de vista – o plano-fixo – são aspectos tão caros a Manoel de Oliveira. A propósito do filme de 1975, declarou o realizador:

Benilde é uma obra a que eu dou, hoje, uma importância muito grande na minha

evolução, na minha reflexão. Conscientemente, foi quando me dei conta [...] que tinha de conservar, de fixar (a unidade de tempo e ação da peça de teatro), para que essa unidade se não perdesse. O cinema só pode fixar. Se houvesse outro ponto de vista, a unidade perdia-se [...] O cinema não pode ir além do teatro, só pode ir sobre o teatro (Oliveira apud COSTA, 2005: 119).

13 Exemplo claro desse gênero de relação entre ator e personagem pode ser observado em O dia do

desespero, quando Teresa Madruga e Mário Barroso dirigem-se à câmera no início do filme para informarem

quais serão os seus papéis no enredo.

14 Este texto já referenciou o Acto da Primavera como caso em que o aparato da artificialidade cinematográfica de Oliveira faz-se propositalmente visível ao espectador, mas podemos notar isso ainda em

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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