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NA FILMOGRAFIA DE MANOEL DE OLIVEIRA

REALIZADOR E OBRA: UMA APROXIMAÇÃO

Ficará para a posteridade a árdua tarefa de encontrar a devida posição do reali- zador português Manoel de Oliveira (1908-2015) dentro da história do cinema mun- dial. Embora seja matéria de reflexão de inúmeros artigos, teses e livros em diferen- tes lugares do mundo, sobretudo na Europa e no Brasil, e também apesar de estar no centro de conversas acaloradas em mesas de debates em lugares diversos, quando uma determinada parcela de especialistas trava esforços por apresentar e justificar suas características e qualidades, a filmografia oliveiriana, com mais de 80 anos de duração, continua a provocar o mesmo impasse de sua origem: a contradição.

“Contradição”, palavra cara ao realizador que produziu a esmagadora maioria de seus filmes fora de qualquer centro de influência econômica, política ou cinema- tográfica e, ainda assim, viu seu nome alçado como a maior referência do cinema de seu país, mas que tardou a acolher o reconhecimento dos méritos de seu trabalho por uma generalidade de seus compatriotas1. “Contradição”, termo caro a detratores

e admiradores que, em qualquer dos casos, espantam-se com a vida e a obra de um senhor que atravessou o século XX gozando das mais variadas atividades para, já na segunda metade de sua existência, dedicar-se total e profundamente ao seu gênio ar- tístico. “Contradição”, palavra-chave para entendermos cineasta e obra dentro de um jogo em que não raras são as vezes que a longevidade do primeiro camufla a grandio- sidade da segunda ou (tal qual, contradição) em que a longevidade do homem serve como subterfúgio para “equívocos” em seu ofício cinematográfico.

Com a direção de aproximadamente seis dezenas de filmes ao longo de sua car- reira – tendo a fascinante média de praticamente uma longa-metragem produzida por ano desde o princípio da década de 1980 até meados da segunda década do século XXI2 –, não é de estranhar o interesse de diferentes autores em propor o vi-

sionamento do cinema oliveiriano a partir da divisão de sua obra em conjuntos de filmes. E diversos são os trabalhos dedicados a encontrar uma possível matriz estética oliveiriana e/ou defender a compreensão de diferentes corpora em sua filmografia3.

1 É extensa a lista de prêmios e homenagens dedicados ao cineasta português ao longo de sua vida. Episódios celebrados em países como Brasil, França, Itália, E.U.A. e Japão. Em Portugal, embora a referida demora no reconhecimento dos méritos de seu trabalho, é importante salientar que Oliveira fora agraciado em vida por um determinado público de iniciados em sua filmografia, quando, por exemplo, a comunidade acadêmica legitimou suas contribuições para o cinema, a arte e a cultura portugueses – a Manoel de Oliveira foram concedidos três títulos de Doutor Honoris Causa em seu país: Universidade do Porto (1989), Universidade do Algarve (2008) e Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (2011).

2 Entre 1981 e 2015, Manoel de Oliveira não estreou filmes nos anos de 1982, 1984, 1987, 1989, 2011 e 2013. Neste período, ou seja, em 34 anos, foram 41 filmes realizados (sendo 28 longas-metragens). Por ordem expressa do realizador, Visita ou Memórias e confissões (1982) somente poderia ser exibido após a sua morte. Assim, o título estreou publicamente apenas em 2015, ano do falecimento do cineasta.

3 Alguns exemplos: João Bénard da Costa (2005); Fausto Cruchinho (2010); Renata Soares Junqueira (2010); Carolin Overhoff Ferreira (2012); Nelson Araújo (2014); e a tese de doutoramento que venho desenvolvendo pela Universidade do Algarve, dedicada aos filmes de viagem de Manoel de Oliveira.

Avaliado dentro dos últimos 40 anos, portanto, desde Benilde ou a virgem mãe (1975), o cinema de Manoel de Oliveira apresenta recorrências temáticas e formais que em muito provocam os ânimos de críticos e analistas. Embora a defesa de traços estilísti- cos absolutamente fechados na filmografia oliveiriana seja motivo de controvérsia entre os estudiosos, existe o consenso de que sua obra apresenta regularidades estéticas e te- máticas perceptíveis a partir do título supracitado, conforme explorarei mais adiante.

Assim, trata-se de interessante exercício, por exemplo, proceder com uma aná- lise contrastiva sobre o trabalho de montagem de Douro, faina fluvial (1931) – com ritmo acelerado, aproveitamento de planos curtos e considerável movimentação da câmera – e O pintor e a cidade (1956) – com ritmo de edição mais lento, planos con- templativos e a forte tendência à fixidez da imagem (características que se tornariam ressoantes nos filmes de Oliveira).

Para avançar com alguns exemplos de suas reincidências, posso mencionar o tão conhecido diálogo estabelecido entre filmes e obras literárias, em que não só grandes nomes da cultura portuguesa, mas também autores clássicos da literatura mundial, são aproveitados como fontes inspiradoras ao longo da carreira do cineasta4. Devo

citar também a interseção de elementos teatrais e cinematográficos na generalidade dos filmes de Manoel de Oliveira: o uso de planos-fixos e planos-sequências, o ator com a personagem, a quebra da “quarta parede”, o diálogo dito, a artificialidade do décor, etc. É o caso de, entre outros: Acto da Primavera (1963); Benilde ou a Virgem

Mãe; O sapato de cetim (1985); O meu caso (1986); Os canibais (1988); O dia do de- sespero (1992); O Quinto Império – ontem como hoje (2004).

Sobre recorrências temáticas na obra oliveiriana, cito os conflitos originados a partir dos amores frustrados ou da relação de gêneros, quando a impossibilidade da concretiza- ção do amor carnal ou um pensamento em torno das incompatibilidades entre homens e mulheres dentro de uma chave enigmática ou existencial conduzem o enredo dos dramas narrados – O passado e o presente (1971), Benilde ou a Virgem Mãe, Amor de perdição (1978), Francisca (1981), O sapato de cetim, A carta (1999) e/ou Party (1996); a condição

humana, que aponta para os mistérios da relação do ser consigo mesmo, com as imposi-

ções sociais ou com a perspectiva de uma divindade a partir de uma ética cristã – Aniki-

-Bobó (1942), A caça (1964), O meu caso, Os canibais, A divina comédia (1991), Inquietude

(1998), Vou para casa (2001), O princípio da incerteza (2002), O espelho mágico (2005),

Singularidades de uma rapariga loura (2009) e/ou O Gebo e a sombra (2012); a condi- ção geopolítica e a história de Portugal, o mundo e os seus conflitos, Oriente e Ocidente,

passado e presente, tradição e modernidade – O sapato de cetim, Non, ou a vã glória de

mandar (1990), Viagem ao princípio do mundo (1997), Palavra e utopia (2000), Um filme falado (2003), Cristóvão Colombo – o enigma (2007).

Também não seria equivocado pensar nessas mesmas recorrências oliveirianas

4 É o caso de Agustina Bessa-Luís, Álvaro do Carvalhal, António Vieira, Camilo Castelo Branco, Helder Prista Monteiro, João Rodrigues de Freitas, José Régio, Vicente Sanches, Fiódor Dostoiévski, Friedrich Nietzsche, Madame de La Fayette, Paul Claudel e diversos textos bíblicos.

como resultado daquilo que de mais permanente (e original) existe em sua filmogra- fia: as insuperáveis dúvidas e inquietações de Manoel de Oliveira.

A partir disso, é para o jovem Oliveira e os seus inícios que quero aqui chamar a atenção. Parece-me que em títulos como Aniki-Bobó; O pintor e a cidade; Acto da

primavera; A caça; O passado e o presente; e Benilde ou a virgem mãe encontram-se

a gênese de elementos bastante oliveirianos: o tempo; o olhar para a mulher; a tea- tralidade; o mundo histórico; Portugal sociopolítico; a condição humana; os amores frustrados; o texto dito.

DOURO, FAINA FLUVIAL (1931) E O PINTOR E A CIDADE (1956): O TEMPO OLI-