• Nenhum resultado encontrado

4. O TRABALHO DA CLÍNICA

4.3 Ambiente Estruturado

Dentro dos caramujos – há silêncios

remontados

O projeto do Trabalho Moral foi criado para servir à organização das rotinas hospitalares. Enquanto os pacientes estavam ocupados, havia mais tempo para realizar as outras rotinas institucionais. O estabelecimento de rotinas fixas e bem prescritas, encerrava outro propósito clínico que se mantém até hoje: oferecer um ambiente

estruturado.

Ambiente estruturado quer dizer lugar limpo e ordenado, rotinas seqüenciais fixas, cada coisa em sua hora e lugar. A idéia de propor

assim o ambiente de trabalho vem de um projeto clínico que parte da premissa de opor ordem externa à desordem interna. A psicopatologia está “sem dúvida” dentro dos indivíduos: houve um rompimento das funções egoicas e, não há mais possibilidade de a consciência assumir o comando e “por ordem na casa”. Jung discordava da idéia de rompimento do Ego. Para ele, a inundação dos conteúdos do

inconsciente impedia o Ego de exercer sua função. Criou-se, então, a

idéia de uma psicoterapia que fortalecesse o Ego para que este pudesse criar as comportas necessárias. Aqui não se pressupõe rompimento. Trata-se de um Ego fraco que precisa de reforços.

Não podemos esquecer, porém, que este projeto começa nos hospitais que se propuseram a um verdadeiro trabalho clínico ao invés do habitual depósito de gente que eram os hospitais psiquiátricos de então (alguns ainda o são). Faz parte das tentativas pioneiras de dar dignidade a uma população tratada como escória. Nise da Silveira chamava estes hospitais de “esses tristes lugares” e, no caso do Brasil, esta realidade mudou muito recentemente.

Apresentar uma ordem externa pode ser a maneira de oferecer algum critério de estruturação ao que se pressupõe desestruturado. A psique é pensada como uma estrutura interna que desmoronou e não reúne condições de reerguer-se sozinha. Neste sentido é que se oferece a possibilidade de a ajuda vir de fora.

Sem dúvida que nos períodos de angústia dos picos das crises, o encontro com algo ordenado, familiar, pode oferecer a corda a que se agarrar e poder imaginar que o mundo não ruiu por inteiro. O contrário, porém, também ocorre: nos picos da crise muitos estão tão longe deste

mundo que não chegam sequer a ver a limpeza e a ordem; é comum

que, nestes momentos, nem queiram ir a seus lugares de atendimento nem tomar a medicação; ou, tomá-los em excesso para ficar viajando.

Embora na nossa concepção de psique, o Ego nem sempre exerça

o papel de diretor, começamos oferecendo o que as técnicas de

tratamento nos pediam para fazer: um ambiente estruturado. Não propusemos o Trabalho Moral nem uma rotina estruturante mas, arrumamos uma casa para eles. A casa foi inteira pintada, decorada; compusemos, com a arquitetura, um lugar para trabalhar. Um lugar alegre, colorido, que nem parece lugar de tratamento, parece a casa da

gente, disseram eles.

Durante três anos nosso trabalho se deu nessa linda casinha que havíamos preparado para ser nossa casa de trabalho. De uma hora para outra, tivemos o tempo de um mês para mudar, porque o dono vendeu a casa. A época da mudança não podia ser pior: dezembro é o mês de maior volume de vendas e tivemos de fechar a loja e interromper a produção. Na seqüência viriam as férias de janeiro e nenhuma venda.

Conseguimos uma casa antiga, dessas que ainda sobraram em vários bairros desta cidade de São Paulo que insiste em acabar com a sua história. Como a cidade, a casa veio sofrendo maus tratos e seu estado era deplorável. Suas possibilidades, entretanto, encantavam. Fomos visitar a casa nova e a primeira reação dos pacientes foi de profundo desgosto e recusa à mudança. Seguiram-se longas conversas sobre a necessidade de aceitar as imposições que a vida traz e das enormes possibilidades que implicam no ato da mudança: tratava-se de criar um espaço em conjunto. Da primeira vez, os pacientes encontraram a casa pronta. Agora, a apropriação do novo espaço seria obra de todos.

A figura desolada da casa instalou uma crise. A Clínica - o espaço físico – estava muito doente, necessitando remédios e cuidados. Decidimos restaurá-la, devolver-lhe sua face original. À medida que íamos arrancando as camadas dos maus tratos, encontrávamos mais desolação: ao arrancarmos um carpete imundo e extremante mal

cheiroso, deparamo-nos com uma parte do piso com a madeira apodrecida e minando umidade e cheiro de esgoto. Um velho companheiro de todos os pacientes fez sua aparição: o famoso “não

adianta, a gente não sabe fazer, nós não vamos conseguir, ao mesmo

tempo que alguns vinham até em fins de semana “para ajudar”. Mas, “a

outra casa era melhor” estava em todas as bocas.

Este fazer conjunto fez de nós um estranho exército de Brancaleone. Terapeutas em roupas velhas e sujas, fazendo trabalho de “peão” e alguns pacientes insistindo no tratamento de doutor, doutora. O estranhamento dos pacientes, no entanto, serviu para que pudéssemos conversar sobre a maneira de colocar-se na vida. A doença da casa é a mesma que nos aflige e exige os mesmos cuidados. Se a abandonamos ou desistimos dela, estamos desistindo de nós. Para recuperar nossas vidas maltratadas, descuidadas, precisamos trabalhar arduamente. E o trabalho é sujo, empoeirado, cansativo.

Aos poucos, começaram a aparecer os sinais de recuperação da nossa doente. As madeiras originais, os materiais começaram a mostrar a nobreza de sua origem: escadas e portas de antiga madeira maciça, paredes sólidas que abrigam, pisos que readquiriam brilho. O “ambiente estruturado” que oferecemos foi o mergulharmos juntos na tarefa de refazer, na história da casa, na nossa própria história, um novo lugar de viver. Não se trata, apenas, de restaurar a beleza do velho edifício. Trata-se de dar-lhe um modo novo de mostrar-se e devolver ao mundo uma alma com cores brilhantes, que o mundo havia insistido em apagar.

O “ambiente estruturado” foi outro dos procedimentos clássicos que fomos obrigados a abandonar. Embora premidos pelas circunstâncias, esta experiência de mudança nos obrigou a pensar em todas as mudanças que deveríamos empreender. Rever modos consagrados de trabalhar, na medida em que eles se mostram ou ineficazes ou impossíveis de realizar.

Não éramos donos da casa, tivemos que deixá-la a toque de caixa. E, no entanto, foi a casa nova, restaurada por todos, que se tornou verdadeiramente “a nossa casa”. A apropriação do novo espaço se deu com o trabalho de todos e isto a tornou nossa.

A história da casa nos fez perceber o quanto estávamos trilhando um caminho difícil de desfazer: nossa formação clínica. Quando fomos obrigados a desestruturar juntos, fomos confrontados por um insidioso temor que percorre aqueles que trabalham com o sofrimento psíquico: o medo de provocar mais dor, caso nossa intervenção seja inconseqüente.

Para preservar-nos da inconseqüência, nos valemos do aprendido ao longo dos anos, na tentativa de assegurar-nos, minimamente, num terreno tão cheio de perigos como é o da loucura. Como nada nos protege do que não sabemos até onde isso vai chegar, paramos antes. Nossa função é aliviar a dor, não aumentá-la e, para isso, lançamos mão de toda a ferramentaria disponível.

Mas, nesta tentativa, talvez, caiamos na armadilha para a qual Freire nos alerta e proponhamos remédios que, ao invés de sanarem o

mal, [ajudam] a perpetuar a doença. Perpetuamos, também, a doença

dos nossos procedimentos.

A população atendida em nossas oficinas é denominada por “pessoas em situação social de risco”. Estão ao desabrigo dos acessos comuns à plena cidadania, estão entre os excluídos. Embora estas denominações venham do grupo que mais se identifica com o ideário da Luta Antimanicomial, estas mesmas denominações encobrem um sub- texto que, se não se refere mais à tutela, aponta para um responsabilizar-se por eles. Traçamos uma linha divisória que, aliada a nosso temor, pode redundar em mais doença para todos.

Criamos, então as Oficinas Abrigadas de Trabalho.

No fio de navalha que é trabalhar com esta população não se trata de lidar, apenas, com o risco do erro técnico; paira, também, a responsabilidade jurídica. Se “algo de ruim” acontece com os pacientes dentro de qualquer equipamento, haverá punições trabalhistas ou penais para os responsáveis pela condução do trabalho. Neste caso, como ousar?! Então, abrigamos a nós todos.

Rapaz de uns 20 anos, mora num albergue da prefeitura. Vai todos os dias ao CAPs, onde toma as refeições. Diariamente, no final do horário de atendimento (17:00), um técnico o acompanha até o ponto de ônibus. Nos fins de semana, ninguém sabe se ou como ele come.

Um dia por semana, se faz uma atividade fora do equipamento. Vão todos juntos, acompanhados de técnicos. Quando a atividade termina, todos voltam para suas casas, sozinhos. E, na maioria dos casos, levam duas horas de viagem.

Reunião marcada entre instituições para discutir projetos comuns. Os visitantes chegam e ficam esperando um tempão o colega da casa aparecer. Tempos depois, chega e explica que estava bem atrasado porque ficou muito ocupado preparando a festa de aniversário de um paciente.

Três episódios ocorridos em lugares diferentes e marcados pela mesma perplexidade: qual é, afinal, o trabalho da clínica que se propõe à promoção da cidadania? As horas vividas fora das instituições são em número muito maior.O trajeto para chegar a elas ou de volta para casa é muito longo e perigoso. Regra geral, esta população vive nas periferias das cidades, em bairros de risco, em meio a tiroteios e misérias. Levar os pacientes ao ponto de ônibus parece, no mínimo,

absurdo, porque no resto das horas do dia estão expostos a todas as intempéries, inclusive às da fome.

Dentro de nosso “abrigo” será mesmo necessário que um técnico prepare uma festa de aniversário? Se as pessoas dão conta de viver nas condições adversas em que vivem, se são capazes de atender ao chamado da cidadania e ser, por exemplo, presidente de mesa em dia de eleição, o que nos leva a fazer por eles algo que são capazes de fazer por si mesmos?

É necessário que se processe um “deslocamento de lugar”, para que possamos realocar a clínica. Nosso deslocamento se processou desde o começo, quando não sabíamos nada sobre como trabalhar com pedras e tivemos de aprender todos juntos, inclusive com pacientes que sabiam algumas coisas. A história da casa deu-nos outro norte e, a partir dela é que as mudanças nos procedimentos puderam existir. Também foi a partir da nova casa que começamos a trocar experiências com outros projetos similares.

Nestas trocas pudemos constatar que aqueles que não se deixaram contaminar pela clínica da queixa foram os que se produziam fora da área da Saúde. O mais significativo é que o grupo de técnicos que coordena os projetos vem da mesma formação profissional mas, o fato de ocorrer em lugares onde havia uma mistura maior de grupos sociais, promoveu o deslocamento, diluindo as tintas umas nas outras.

Um dos grupos que funciona num equipamento público criou uma oficina de comida e conseguiu uma licença para montar uma barraca de vendas na porta. O que começou como uma oficina de geração de renda para portadores de distúrbios mentais (como a nossa), trouxe o bairro. Apareceram os blocos de Napoleões retintos, os pigmeus do boulevard. Os excluídos, em situação social de risco, eram todos. Não dava mais para separá-los em categorias específicas.

Outro projeto já começou no meio . Foi chamado a compor uma escola de samba e a arcar com a responsabilidade de dar conta da confecção, venda e administração de toda uma ala. Não tinham, sequer, um lugar para trabalhar, quanto mais um ambiente estruturado. Alugaram uma parte da casa de uma família do entorno e tudo acontecia em meio a tudo e todos.

Outro projeto, ainda, tinha um contrato com empresas para a fabricação de materiais de papelaria e, como qualquer contrato, com quantidade, qualidade e data de entrega. As empresas não tinham qualquer condescendência quanto à condição de doentes dos usuários.

Estes exemplos nos contam da necessidade de mudarmos os clínicos. Diluir e misturar as tintas que se mostram em cores e contornos nítidos implica abrir mão de nosso saber consagrado, que nos separa de nossos pacientes. Implica, também, perder o controle da

situação, talvez nosso maior pesadelo. Quem perdeu o controle foram eles; nossa tarefa é ajudar a restaurá-lo.

Em meio ao bairro, aos escombros da casa, do samba ou das exigências do mercado, nossa tarefa fica tão sem contorno que, tanto pode assustar – e aí, levamos ao ponto de ônibus – como pode apontar outras direções.

Levar a psicoterapia para as ruas implica que os técnicos saiam do

confinamento de seus consultórios, clínicas, recintos fechados, assim como dos recintos fechados dos conceitos e preceitos. Nosso maior desafio é produzir o deslocamento do saber que nos constitui para podermos criar um trabalho de fazer alma.

Documentos relacionados