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KAIRÓS E A MOEDA DE SAL

Preciso de alcançar a indulgência pedral

Se o trabalho como é visto pelo mundo civilizado não serve a nossos propósitos, porque não estamos nos inserindo nas regras do mercado nem formal ou informal ou outro nome que queira assumir, talvez voltarmo-nos para o trabalho tribal nos ilumine um pouco mais. Afinal, compomos tribos estranhas à civilização vigente.

Pensar/fazer bricoleur. Isto fala de nosso trabalho que usa restos, pedaços, quer de coisas quer de histórias. Histórias de pessoas que tiveram suas vidas feitas pedaços, histórias que se fragmentaram e das quais aproveitamos qualquer situação oferecida para enriquecer ou conservar. Trabalhamos com o que encontramos, cacos de pedras ou cacos de vidas e fazemos outros. As pedras falam conosco e, à medida que as formas vão saindo, falamos através delas: de nosso empenho, cuidado, atenção, inventividade...

Aproveitamos as oportunidades. Kairós, é o nome de um dos tempos que os gregos sabiam existir. Tempo da oportunidade, quando

oportunitas significava olhar através de uma fresta; também era o

tempo certo, aquele momento exato de soltar a flecha para que atingisse seu alvo. Tempo exato, tempo sem seqüência, porque é aquele que se apresenta no momento. Um tempo para ser agarrado. Nosso nome, nosso tempo de fazer.

Fomos buscar em outros tempos e geografias um sentido para nosso fracasso econômico. Fomos buscar em outras lógicas de pensar para apoiar-nos em nossos desalentos. E, de novo a ajuda veio da

Lá pelos idos de 1958, um antropólogo francês, Godelier, foi estudar uma das remanescentes economias neolíticas do planeta, entre os Baruya, na Nova Guiné. Pensemos nele chegando imbuído de seus honestos propósitos de pesquisador, com seu acervo de ideário marxista e suas noções de economia, trabalho, mercadoria, valor, mais valia, etc. e com a convicção de que a religião era o ópio dos povos.

Imaginemos, por uns momentos o encontro entre um civilizado francês, marxista do século XX, deparando-se com povos para quem a vida se compunha com parâmetros que, não só desdiziam tudo o que ele pensava, como nem tinham nenhuma conexão com qualquer lógica conhecida. Ele nos conta esta história:

Os Baruya fabricavam sal a partir de uma planta. Tratava-se de um complexo processo de processo até a produção de sal em barras que ocorria na oficina de um proprietário. O que definia o “ser proprietário” era o fato de ele ser um especialista no ofício, sobretudo, “um mestre na magia do sal”. Ao final da produção, os proprietários redistribuíam o sal entre os aliados, parentes, tribos aliadas etc. Não ficavam com o excedente.

Outra estranheza era a maneira como eles trocavam com os estrangeiros. As rotas comerciais entre tribos que ficavam, às vezes, a quatro dias de caminhada, tinham sido abertas por indivíduos audaciosos, cujos nomes passavam à posteridade, que estabeleceram relações de amizade e selaram um pacto de comércio e proteção. Este pacto é normalmente refeito de geração em geração. Cada parceiro se compromete a abrigar e proteger seu hóspede. Assim, o comércio significa paz e traduz as relações políticas entre as tribos.

Voltando ao sal. O interessante é que o consumo de sal entre os próprios Baruya era mínimo. Não porque fosse fisicamente raro entre eles. O que o tornava raro e, portanto, valioso, é porque seu consumo

era de uso exclusivo em cerimoniais. Seu grande valor era dado pela significação religiosa e social, além da gastronômica e biológica. Era um “artigo de luxo” do qual as pessoas se privavam ordinariamente cada vez que o cotidiano cedesse ao ritual.

Este valor “de luxo” servia também para avaliar as trocas com os vizinhos. Quando iam trocar o sal pelas capas com a tribo dos Kanasé, com quem tinham um “pacto de amizade eterna”, nosso antropólogo vê com espanto, que, em termos de horas trabalhadas e esforço despendido, os Baruya recebiam 3 vezes mais do que davam. E, no entanto, as duas tribos concordavam, cientes da desigualdade. O que fazia do sal um produto “de luxo” e, portanto, caro, era o fato de este exigir um “saber técnico e mágico”. Por sua vez, os Baruya pagavam caro por umas nozes coletadas sem esforço por outra tribo porque estas nozes tinham “o poder mágico de atrair grandes quantidades de caça” e de purificar os guerreiros.

O que conta nas trocas entre grupos é a satisfação recíproca de suas necessidades e não uma balança de seus gastos de trabalho. Como diziam os Baruya “se recebemos o suficiente, o trabalho é coisa do passado, é esquecido”. O sal é objeto precioso:

porque entra (...) na categoria das coisas “boas para comer, raras e essenciais”

porque é consumido exclusivamente nos momentos de vida social, nascimento, iniciação, casamento, isto é, no conjunto de cerimônias que celebram [a tribo];

porque sua fabricação não pode ser levada a termo a não ser pelos cuidados de especialistas que possuem, ao mesmo tempo, o saber técnico e o saber mágico de sua cristalização;

porque, graças a ele, os Baruya obtém “tudo o que lhes falta”: proteger-se do frio, compensar uma morte, iniciar suas filhas e seus guerreiros. (Godelier, Moeda de Sal, pp 147, 148)

O sal é o que se produz para os outros e é um objeto que se distribui “entre os seus”. Jamais é um objeto de troca [econômica] mas sempre de dádiva e redistribuição, um objeto de troca social. Há outro motivo pelo qual o sal é precioso. Suspensa acima da lareira de algumas cabanas Baruya são vistas barras de sal velhas de quase uma geração, enegrecidas pela fuligem e secas. Por “nada neste mundo” seu proprietário as venderia ou consumiria, pois elas são o símbolo de uma amizade desaparecida ou de um pacto selado com o inimigo, linguagem muda que conta em cada instante presente o que, do passado, não deve envelhecer. Já não são, portanto, para serem comidas ou para serem trocadas, nem para serem dadas. Elas só são “próprias para pensar”.

Nosso antropólogo deu a seu estudo o nome de Moeda de Sal. Pensarmos nossos trabalhos na ótica do bricoleur e criar nossas moedas de sal. Se, nos tempos atuais, a idéia é o atendimento em rede, talvez se trate de criarmos uma rede entre as tribos vizinhas. Criar um movimento que se estabeleça com relações de amizade, que sele pactos de comércio e proteção, que crie “artigos de luxo”, cujo valor não se mede em horas de trabalho e esforço mas, que se torne raro porque não servirá para o uso cotidiano. Servirá para enriquecer a existência ou conservá-la com os resíduos de construções existentes. Servirá, também, para celebrar as tribos.

Não será um comércio de trocas iguais, equivalentes, mas as desigualdades servirão para a satisfação recíproca das necessidades de todos. Haverá, sim, proprietários, - aqueles que detém o saber mágico e técnico - mas, a função destes será sempre a redistribuição.

Os “artigos de luxo” assim produzidos serão preciosos porque se produzem “para os outros” e se distribuem “entre os seus”. Serão preciosos, porque são dádiva, troca social e traduzem as relações políticas entre as tribos. Ao lidarmos com nossos objetos produzidos

como algo precioso, raro, que serve à celebração e não ao cotidiano, poderemos, então, vê-los como a categoria de coisas “boas, raras, mas essenciais” e aí, teremos tudo o que nos falta. E nossas moedas de sal, assim guardadas, serão memórias que nos contam sobre aquilo que não pode envelhecer, passarão a ser “próprias para pensar.” Um trabalho próprio para pensar, feito para os outros, que nos celebra, que é dádiva e redistribuição, traduzirá as relações políticas que possamos estabelecer tribalmente. E apoiar-se em uma paráfrase de Hillman sobre uma forma civilizada de pensamento e que pode ser mais útil para nossos propósitos: Compartilho, logo existo.

Alegria de compartilhar, fazer conjunto, trocar com outras tribos. Novamente, o mundo lá fora irrompeu e obrigou a repensar. Novamente o dono da casa quer vendê-la e teremos de sair. Já havia ficado claro que precisávamos trocar com outras tribos. Se, no início, nosso projeto devia caber no nosso bolso, talvez se tratasse de abolir o bolso. No momento atual, estamos em discussão para formalizar parcerias com outros projetos para que possamos trabalhar ou ensinar o que aprendemos em outros lugares. Nossos agora amigos irão conosco. Não sabemos em que porto iremos atracar. Só sabemos que faremos isso todos juntos, mesmo que alguns dos tripulantes não possam acompanhar na viagem. O caminho já traçado deu a cada um de nós algumas moedas de sal próprias para pensar e estarão em nossas lareiras como memórias sobre o que não pode envelhecer.

Concluir que não compete à clínica “gerar renda” compreendida como prover a subsistência. Os detratores das oficinas, afinal, tinham razão. O âmbito da estrita sobrevivência não pertence ao campo da psicologia, sequer da Saúde. O fracasso nesta área não se deve a qualquer erro de projeto mas, a erro de lugar. Entretanto, o trabalho como proposto pela moeda de sal e a poesia da bricolagem pode compor uma clínica, uma psicoterapia. Não mais ligada à saúde ou doença, não

mais confinada; uma clínica na qual possamos parar de ver pacientes, para poder ver cidadãos, como propõe Hillman. Uma psicoterapia, como

um modo de ver e reagir, uma habilidade de fazer alma, uma poesis.

Repensar o que possa ser o analista:

“Sou um analista. Falo às questões que residem dentro do fórum público, na alma da cidade. Sou mais um garimpeiro que um urbanista; persigo os vazamentos de gás que embaçam e envenenam nossas relações pessoais, o escoamento de energia na insônia, na impotência, no vício; vou atrás dos ratos, impulsos que roem os cantos de nosso espaço interior; a queda de força no desespero. Essa cidade é indizível no fórum. Ainda assim, podemos conectar sua interioridade, com a interioridade de nossa vida pública.” (Hillman, C&A p 43)

Ao começar este trabalho, a idéia era partir dos casos dos pacientes para aprender mais sobre a prática clínica, o que, de fato, ocorreu. A grande diferença é que sempre se parte do princípio de que devemos partir da experiência clínica, isto é, dos casos dos pacientes, para aprender sobre como trabalhar com eles, para atendê-los melhor e o que aconteceu é que foram os pacientes, agora, parceiros de trabalho que nos mostraram o quanto o caso clínico deveria ser a própria prática. E começou, exatamente, com a história de caso, desde o início, desde o

nascimento, o que serviu ao propósito. Mas, enquanto mantivermos o

foco em como lidar com os problemas deles, continuaremos a falar de tratamento. Mesmo atendendo por outro nome, mesmo que não mais prescrevamos as atividades, como no Trabalho Moral, mesmo que passemos a pesquisar e perguntar quais são as suas necessidades, ainda assim, será uma clínica que trata, e não um cuidar.

A luta antimanicomial retirou os pacientes das internações fechadas; impediu a criação de Bichos de Sete Cabeças e, por isso, foi

vitoriosa e mais do que bem vinda. Agora, trata-se de uma luta, talvez, a mais longa difícil: tirar os técnicos dos manicômios. A proposta da

rede tribalista implica sair para além dos muros de proteção, implica

aceitar a contaminação, o ruído, o risco. Implica que cada urbanista se torne um garimpeiro e o trabalho do garimpo não garante que se vá encontrar alguma pepita salvadora no final. Nem ao menos assegura que o veio que se buscava seja aquele que vá conter o tesouro de todas as respostas. E, no entanto, contém a maior de todas as promessas.

Uma clínica feita por amigos, parceiros de caminhada, que constroem uma narrativa que se faz enquanto se narra, implicada e imbricada, sem saber nunca qual será o seu fim, requer um desnudar-se da armadura protetora dos saberes estabelecidos, lidar com os medos de arriscar e poder causar mais dor, lidar com a angústia do lugar do não saber; fazer a aposta mais ousada de acreditar no valor dos

invisíveis e no valor das invisibilidades.

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