A CLÍNICA DO TRABALHO
E O TRABALHO DA CLÍNICA
Psicoterapia do Fazer
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção de título de Doutor em Psicologia Clínica sob a orientação do Prof. Dr. Luiz Benedicto Lacerda Orlandi.
PUC/SP
AUTOR: ROSA MARIA CAROLLO BLANCO
TÍTULO: A CLÍNICA DO TRABALHO
E O TRABALHO DA CLÍNICA
Tese defendida e aprovada em __/__/2006
pela comissão julgadora
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A Maria Teresa C. Iguacel, parceira de
caminhada, cuja arte no viver nos
acompanha mesmo na ausência.
Ao Prof. Luiz Benedicto Lacerda Orlandi, mais que um orientador, um Mestre.
À equipe da Clínica-Oficina Kairós: Ájax P. Salvador, Lucineide Miranda de Farias, Margaret Buonano, Wladia Beatriz Pires Correia. Este trabalho é conjunto desde o início.
Aos pacientes da Clínica, os reais autores do projeto, que nos ensinaram a clinicar.
Ao CNPq, que viabilizou este trabalho.
RESUMO ________________________________________
ABSTRACT ________________________________________
1. Introdução __________________________________________ 01
2. Um método possível: colagem ___________________________ 07
2.1. Psicopatologia como método _________________________11
3. Clínica-Oficina Kairós __________________________________19
3.1. A Casa _________________________________________ 28
3.2. Os pacientes, anamnese e família____________________ 33
4. Oficinas ___________________________________________ 38
5. A Clínica nas ruas ___________________________________ 42
5.1 Outras Clínicas ____________________________________59
5.2 Percursos ________________________________________72
6 Kairós e a Moeda de Sal ______________________________94
7 Conclusões _______________________________________100
Pensar e construir uma clínica psicológica a partir da psicopatologia foi um ensinamento que veio de Carl G. Jung, quando compôs sua obra tomando a esquizofrenia como paradigma. Esta proposta foi levada adiante por James Hillman, ampliando-a para quaisquer tipos de sofrimento psíquico: sugeriu que vejamos cada um como um estilo de consciência, com uma proposta ética e estética que pertence ao sofrimento e não ao seu portador.
Compor uma clínica que compreenda a patologia como algo integrante na vida e da vida, ao invés de algo a ser extirpado ou sanado. Para isto foi criada a Clínica-Oficina Kairós. Como terapêutica, foi escolhido o trabalho artesanal realizado em conjunto com um grupo de portadores de distúrbios mentais. O objetivo era suscitar um espaço do fazer, criar, conviver, em contraposição à inatividade, paralisia e isolamento costumeiros na vida desta população.
Um desdobramento deste projeto resultou em um uma retomada crítica dos procedimentos clínicos consagrados e apontou caminhos para compor outras clínicas. Para isto, é necessário dar passagem e escuta aos discursos da psicopatologia, ao invés de, apenas, diagnosticá-los ou analisá-los.
To think and to construct a psychological clinic from the psycopathology were a teaching that lode of Carl G. Jung, when the schizophrenia composed its workmanship taking as paradigm. This proposal was taken ahead by James Hillman, extending it for any types of psychic suffering: he suggested that let us see each one as a conscience style, with a proposal ethical and aesthetic that belongs to the suffering and not to its carrier.
To compose a clinic that understands the integrant pathology as something in the life and of the life, instead of something to be terminated or to be cured. For this the Kairós Clinic-Workshop was created. As therapeutics, the carried through artisan work in set with a group of carriers of mental riots was chosen. The objective was built to excite a space of making, creating, to coexist, in contraposition to the usual inactivity, paralysis and isolation in the life of this population.
An unfolding of this project resulted in one critical retaken of the consecrated clinical procedures and pointed ways to compose other clinics. For this, it is necessary to give passage and listening to the speeches of the psycopathology, instead of, only, diagnosing them or analyzing them.
1. INTRODUÇÃO
A Psicologia sempre privilegiou seus estudos a partir dos achados da prática clínica. Este trabalho cobre o espaço de tempo de sete anos da Clínica-Oficina Kairós, que começou como projeto de criação de um espaço de trabalho para pessoas portadoras de transtornos mentais.
A idéia básica era a realização de um trabalho artesanal, um fazer com as mãos. Sabemos que uma das coisas que param nas pessoas assoladas pelas psicopatologias é, justamente, a atividade. Para dar um pouco de paz a si mesmos, os pacientes dormem. O sono os protege dos delírios, alucinações, tristezas, tormentos. Com isto acabam criando um isolamento cada vez maior, uma caverna onde possam se defender.
A atividade, construir ferramentas e objetos, criar e inventar, estão no mundo desde antes que a história humana começasse a ser escrita. Ao abandonar a atividade, estamos nos abandonando à mera vida vegetativa ou à repetição do já conhecido. Restaurar esta capacidade criadora, fazedora, foi o caminho escolhido para compor uma clínica. As mãos e não somente a cabeça; movimento no lugar da paralisia; criação no lugar do estilhaçamento.
A proposta desta clínica baseia-se, pois, nos achados sobre as assim denominadas psicopatologias. O deparar-se com a psicopatologia traz um impacto capaz de colocar em cheque todas as premissas ou crenças teóricas nas quais se apóiam todos os profissionais da saúde. Pelo menos, qualquer profissional que se permita ouvir e afetar pela imensa dor que assola estas pessoas.
na vida das pessoas. Também foi o primeiro psiquiatra a refutar, já nos seus primeiros escritos em 1908 “o dogma prevalecente na psiquiatria moderna - doenças mentais são doenças do cérebro” (Jung, vol 3, p. 13). O alcance desta refutação percorre todo o século XX. Só a título de ilustração, num artigo de uma revista de psiquiatria de 1984 publicou-se, em tom de triunfante descoberta, que a década de 80 é a década do cérebro. A corrente organicista ganhou forças cada vez maiores na medicina, contaminando toda a prática clínica e se, hoje, a doença mental não está mais no cérebro, “com certeza”, há de estar no DNA.
Para transmitir os conceitos “do ponto de vista psicológico” Jung escolheu a esquizofrenia como paradigma para suas pesquisas e propõe que nos debrucemos sobre os conteúdos dos delírios em busca das respostas para os sistemas que a loucura monta. Hillman diz que, para compreendermos um quadro psicopatológico, devemos transformamo-nos no próprio quadro. Isto serve tanto para a prática como para a teoria. (Hillman,). Jung partiu da esquizofrenia como paradigma, Hillman propõe que cada quadro sintomático apresenta seu próprio paradigma e que precisamos partir de cada um. Radicaliza e amplia esta questão propondo o termo patologização no lugar de psicopatologia, porque assume
“a capacidade autônoma da psique para criar doença, morbidez, desordem, anormalidade e sofrimento em qualquer aspecto do seu comportamento e de vivenciar a vida através dessa perspectiva deformada e atormentada” (Hillman, ED, pp.9,10).
Jung, um princípio criador sem causas. Hillman recoloca esta questão da seguinte maneira:
“... insisto em chamar a patologização de atividade criadora ... É, também, um princípio criador que entra na formação do universo. E está, necessariamente, sempre aí. não gradualmente superado através da ampliação do domínio da razão. ... o anormal mistura-se a cada ato da existência, pois a vida psíquica baseia-se no complexo e a patologia jamais termina.” (Hillman, ED p.25)
Continua propondo que, para se trabalhar com a dor, aflição, desordem, o peculiar, enfim, esses temas fundamentais à psicologia não podemos tratá-los da mesma maneira como compreendemos o comportamento normal:
“Para compreender a psicologia do comportamento anormal (...) não devemos nos voltar para o que é ‘normal’. Nossas normas devem adequar-se ao material que desejamos compreender,
devem ser normas igualmente patologizadas.” (Hillman, ED p 11)
Até porque, ’norma’ e ‘normal’ derivam da palavra norma, o esquadro utilizado pelo marceneiro. É um termo técnico afeito à geometria, portanto uma ferramenta bastante inadequada para a psicologia. Olhar a patologia de dentro do seu quadro sintomático; transformar-se no próprio quadro com suas especificidades, como maneiras de aproximar-se de cada tipo de dor, sofrimento, desordem etc. Construir um discurso de inteligibilidade para o que o olhar da norma sempre chamou de incompreensível e falso.
semanais da equipe, debruçada sobre as questões que os pacientes nos apresentavam; no mesmo começo estão os eventos e as conversas com os pacientes durante as oficinas; estes foram sempre os primeiros autores de nossa clínica. Depois, foram se juntando outras pessoas, quando vieram os grupos de estudo, cursos, estagiários. Trocar experiências e idéias com outros projetos similares foi uma interlocução fundamental para a persistência no projeto.
Debruçar-se sobre a obra de Hillman para construir uma clínica é sempre uma tarefa desafiadora e perturbadora, porque não aponta caminhos. Ele diz que prefere as encruzilhadas. E lá ficamos nós, frente às encruzilhadas. Das várias possibilidades, fomos selecionando algumas, que nos pareceram condizentes com as setas que Hillman ia colocando.
Algumas das escolhas compuseram-se como premissas:
1) Partir do pathos. Para ficar com o quadro e tornar-se parte do próprio quadro, ficamos com os relatos dos pacientes. Seus sofrimentos, dores, aflições, alegrias, da maneira como eles as relatam.
2) Ficamos com a psique pensada como uma pluralidade de pessoas – os complexos – mas vendo em cada um uma inteireza, uma subjetividade que se apresenta. Nada nelas é parcial ou inadequado. Cada história que um sofrimento nos conta é tomado, como propõe Hillman, como um estilo de consciência, presente na vida e fazendo parte dela.
3) Os acontecimentos psíquicos são algo que ocorre no mundo e na vida do mundo. Psique como alma no mundo e não, apenas, nos indivíduos humanos.
Pensar a prática clínica como aquele lugar onde deve sair a pessoa do analista e a pessoa do paciente, para que a análise possa acontecer.
Quem é essa gente que atende pelos nomes de analista, paciente, mãe, pai, chefe, delírio, alucinação e por aí vai? Às vezes, a trama que se desenrola fala de nossos dramas demasiadamente humanos. Às vezes, irrompem na sala as enormes figuras das tragédias. Ouvir as histórias contadas como narrações à maneira dos textos míticos:
O que caracteriza a narrativa mítica é que aqui, as suas pessoas dramáticas não se limitam a representar o drama mas, elas o constroem realmente. As dramatis personae são escolhidas e, simultaneamente, se impõe. Uma trás outra após si e a história – por sua própria vontade - passa a existir...(Kerény, DG p. 21)
Hillman nos apresenta outra possibilidade para além da dicotomia Ego x Inconsciente; Luz x Sombra; etc. Para além da dinâmica única dos opostos, propõe que pensemos cada quadro com sua dinâmica própria, com sua face, cheiro. Ele diz não poder pensar em opostos. Seria como opor um poema a outro. Pensar nas várias tonalidades de luz e de cores, das várias perspectivas que nos dão as sombras. Para podermos ver, como ele diz, Cosmos em cada grão de areia. Isto implica abandonar qualquer idéia de uma psicodinâmica ou de uma psique estruturada hierarquicamente, com uma direção para um centro, seja ele a consciência freudiana ou o self junguiano. Poder imaginar-se várias dinâmicas como
visão subjetiva para que vejamos o mundo de acordo com suas idéias. [A realidade substancial da psicodinâmica pode ser imaginada como uma] <<microfísica>> e transparecer como se tratasse de uma série de saltos quânticos de minipercepções. [Transparecer como faz o vidro]: como não é visível, confunde-se com seus conteúdos e os dados da psique, ao ser alocados dentro ou atrás do vidro, se transportam da realidade palpável à realidade metafórica, abandonam a vida para entrar na imagem. (Hillman, RP, pp 292, 298)
Abandonar a idéia de processos que levem, quer ao caminho da cura, quer ao autoconhecimento; abandonar o centro do qual tudo emana ou para onde tudo converge. Em seu lugar, várias psicodinâmicas e movimentos de centração.
A intervenção bioquímica tem por função estancar a “inundação de imagens do inconsciente”, como Jung descreveu estes quadros. Enquanto não houver um mínimo de contenção desta enxurrada, as águas estarão devastando tudo o que encontram com sua fúria. A medicação serve para criar algumas comportas e, minimamente, dar alguma direção e limite ao jorro.
Quando as águas voltam ao seu leito e a velocidade ou a violência da torrente diminui, é possível começar uma clínica “do ponto de vista psicológico” (Jung). Enquanto as águas estão à solta, inundando tudo, a imensa tarefa que os doentes podem fazer é tentar não sucumbir e esperar a medicação fazer algum efeito.
Como se sobrenada na enchente? Quando se ouve as narrativas dos pacientes surgem as perguntas: como se agüenta o terror? Que estratégias se podem criar para enfrentar esta guerra? Em meio ao bombardeio, encontram-se caminhos ou refúgios para sobreviver. Acontece uma estranha lucidez (instinto de vida?!), nos momentos mais cruciais.
As vozes imperativas insistem em dizer-lhe que ele tem de matar a namorada. Resiste, se atormenta. Ele é apaixonado pela namorada. Mas as vozes insistem e elas são muitas. Compra um revólver e o leva para o motel. No momento em que está com a arma apontada para a cabeça da moça, algo acontece. Telefona, pede socorro. Pede para que amigos venham e o impeçam. Consegue esperar.
As vozes mandam que saia para a rua e mate as pessoas. Mas nem as conhece, não lhe fizeram mal algum. E matar é pecado. Três da manhã. Ligar em desespero para a prima e conversar com ela até amanhecer o dia e poder ir ao hospital.
dias e dias e não falar com ninguém. É gente demais falando, a cabeça não agüenta tanto barulho.
Colocar fogo na casa mas somente nas coisas que pertencem ao irmão mais velho, brutamontes que só sabe xingar de vagabunda, folgada, que não quer trabalhar. E quando fica com muita raiva, bate. Nem o pai consegue segurá-lo.
Que lugar é esse, de onde provém essa estranha lucidez? O lugar é desconhecido, mas aponta claramente para a existência de uma múltipla possibilidade de ações para compor uma clínica que não fique na, ou viva apenas, a doença. Uma clínica que se componha com ela ou apesar dela. Trabalhar com as diversas ferramentas de que se dispõe, mesmo sendo díspares ou contraditórias. “Situações patologizadas requerem medidas igualmente patologizadas” (Hillman)
A primeira solicitação que se faz quando um paciente chega ao consultório é que ele relate sua queixa. Sair da clínica onde a única atenção ou cuidado é para com a queixa; a clínica queixosa, lamurienta, que aprisiona no lamento tanto técnicos quanto pacientes. Sair ou mudar o espaço destinado ao queixume para criar nele outras narrativas, outros personagens.
Vender os objetos criados era outro dos propósitos da clínica e, para tanto, a produção deveria atender a critérios de qualidade, como em qualquer lugar de trabalho. Coisas mal feitas não são compradas por ninguém e a Kairós não queria repetir a prática de permitir que “qualquer coisa é linda; afinal, eles são doentes”. Trabalhar com a premissa que, apesar da doença, as pessoas estão plenamente capazes de realizar, criar.
lidar com elas. Há um certo abrigo na doença; ela justifica e avaliza a reclusão.
Levar a terapia para as ruas, como propôs Hillman. Compor-se com tudo o que isto significa. Esta saída para as ruas acabou colocando em cheque a própria idéia de uma clínica fechada entre quatro paredes, sejam elas hospitais ou consultórios individuais. A clínica confinada também se mostrou protegida por suas práticas. O que começou como um projeto para nos ajudar a trabalhar melhor com as psicopatologias, se afirmou mais como um laboratório para se compreender melhor alguns dos procedimentos clínicos mais bem estabelecidos.
Nosso laboratório tinha uma reunião semanal para discutir as questões que esta clínica nos trazia. O nos, neste caso, não se trata de um plural majestático. A marca do coletivo começa com uma pequena equipe que tinha as mesmas inquietações:
Ájax Perez Salvador, psiquiatra, psicoterapeuta, muito tempo de experiência em Saúde Pública. Trouxe seu arsenal de conhecimento específico e sua enorme visão para derrubar paredes de solidez opaca e construir outras que permitam a visão.
Lucineide Miranda de Farias, psicóloga, psicoterapeuta. Seus silêncios interrogantes irrompiam na sala, fazendo mais perguntas que muitos discursos.
Margareth Buonano, pedagoga, psicóloga, psicoterapeuta, cujo saber com as mãos, construiu a maior parte das tecnologias necessárias às oficinas.
A PEDRA1
Manoel de Barros
Pedra sendo
Eu tenho gosto de jazer no chão Só privo com lagarto e borboletas. Certas conchas se abrigam em mim. De meus interstícios crescem musgos. Passarinhos me usam para afiar seus bicos. Às vezes uma garça me ocupa de dia. Fico louvoso.
Há outros privilégios de ser pedra: a – Eu irrito o silêncio dos insetos. b – Sou batido de luar nas solitudes. c – Tomo banho de orvalho toda manhã. d – E o sol me cumprimenta por primeiro.
1 Este poema e todas as epígrafes apresentadas neste trabalho pertencem ao livro Tratado Geral Das
2. CLÍNICA-OFICINA KAIRÓS
Esta clínica é o resultado de uma busca que seus participantes vinham perseguindo em suas práticas habituais nem sempre satisfatórias. A busca sobre novas maneiras de se pensar a clínica vem sendo feita em muitos lugares, uma vez que está cada vez mais premente um olhar que atenda às exigências que o mundo está nos apresentando. A afirmação que Hillman faz é esclarecedora desta situação:
“Minha prática clínica diz que não posso mais distinguir claramente entre a neurose do ‘eu’ e a neurose do mundo, psicopatologia do eu e psicopatologia do mundo ... [até porque] mundo externo é onde todas as subjetividades são estabelecidas”. (C&A pp 10, 12)
Nossa escolha recaiu sobre o trabalho artesanal como prática privilegiada para uma proposta clínica. A associação trabalho/tratamento não é nova e passou por uma funda discussão ao longo do século XX. As primeiras idéias sobre atividade associada a tratamento vêm do projeto teórico que ficou conhecido como Tratamento Moral que vê o trabalho e a ocupação terapêutica como instrumento de aprendizagem da ordem, regularidade e disciplina. (Benetton, in Silva 1997, pp. 20,21). Largamente difundido na Europa, preconizava que a raiz de todos os males reside na inatividade. A ociosidade não é só o começo de todos os vícios (...) mas também da demência. (Simon, in Silva, 1997, p. 32).
parte do doente. (...) o trabalho constituía um instrumento de educação e treinamento, prescrito por um profissional médico, (...) relacionado de forma orgânica com a instituição manicomial. (Silva, 1997, p. 32).
Nas últimas décadas do século XX, a questão da atividade passou a alocar-se melhor numa idéia de atendimento ampliado, onde opera o conceito de reabilitação psicossocial entendido como proposto por Saraceno et al:
“conjunto de todas as atividades que tendem à maximização das oportunidades do indivíduo para sua recuperação e para a maximização dos efeitos incapacitantes da cronicidade. Estes objetivos contemplam o manejo a nível individual, familiar e comunitário.” (Silva, 1997. p. 35)
Optando pelo trabalho artesanal, pretendemos encaminhá-lo de uma maneira que leve em conta a psique, como Hillman a descreve:
“que o corpo é psique, aquilo que o corpo faz, o modo como se move, aquilo que percebe, é psique. ... onde o corpo vive e se move e onde a teia de reações é tecida, também é psique; (...) A psique existe inteiramente em um sistema de relações.” (Hillman, 100 anos... p.84)
Esta maneira de olhar a psique vem dos ensinamentos de Jung quando dizia que os conteúdos psíquicos têm sempre de ser considerados numa rede de relações porque, dizia ele, não há processos psíquicos isolados, como não há processos vitais isolados.
sobre os fazeres. Sua função era a transmissão de sua experiência: passar para os aprendizes - “seus labores enlaçados com os de artistas e artesãos de séculos passados; transmitir seu lugar, seu entusiasmo, seus instrumentos de trabalho e sua entrega”, como descreve Gala. Estabelecer, através do trabalho feito artesanalmente, o jogo de trocas com o mundo (Fares), a conexão com a tradição pois, como diz Benjamin: “A experiência pertence à ordem da tradição, tanto na vida coletiva como na vida privada.”
A maneira de funcionar nas oficinas será construída a partir de uma noção criada por Walter Benjamin - CONSELHO. A análise que se segue foi feita por Claudia Fares, de quem a tomamos emprestada, porque descreve com muita precisão como trabalhar.
“O ouvinte torna-se narrador justamente durante os atos simultâneos de dar forma à matéria, pelo exercício das mãos e de escutar a história que está sendo contada. É assim que o ouvinte se torna capaz de narrar. É assim que se coloca a importante noção formulada por Walter Benjamin: a do
relata fazendo, ao mesmo tempo, a experiência daqueles que escutam sua história.” (Fares, AC. P 49).
“Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido. Quando o ritmo de trabalho se apodera dele, ele escuta as histórias de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narrá-las. Assim se teceu a rede em que está guardado o dom narrativo” (Benjamin apud Fares, AC. P 49)
Aprendemos com Hillman que a psicoterapia é um modo de ouvir e reagir e que todas as explicações sobre a vida humana são ficções. E que podemos tirar alguma coisa delas, construir algo, realizar uma outra ficção, uma imaginação e poderemos, no papel de artesãosnarradores -sugerir possibilidades de continuidade dos enredos que eles descrevem.
“Na oficina do artesão, o exercício se desdobra infinitamente, ganhando novas nuances. Aquele que tece percorre uma experiência que, inevitavelmente, se conta, se relata, no ato de fazer. Enquanto suas mãos trabalham contando silenciosamente seu percurso que os olhos acompanham, o ouvido dispõe-se a escutar o que a palavra, por sua vez, tece.” (Fares, AC p 49)
como para quem escuta. E assim, poder tecer a rede que está guardando o dom narrativo.
3. TEMPO DA TESOURA TEMPO DA COLA Uma Metodologia.
e de aves.
Debruçar-se sobre obras já existentes e lançar mão delas para fazer algum trabalho assemelha-se muito ao processo de fazer uma colagem. Cada um recolhe uma quantidade qualquer de pedacinhos e os reagrupa à sua maneira. Em especial, quando a obra escolhida é de C. G. Jung, que nos deixou uma enorme quantidade de idéias e conceitos. Ao longo de seus escritos vamos encontrando a mesma noção dita de várias maneiras, algumas contradizendo-se. Ele não nos apontou qual era a “correta” e isto contribuiu para que muitos de seus seguidores criassem os mais diversos pontos de vista.
A possibilidade de usar inúmeras formas de utilizar uma colagem, além de infinitos materiais, pode dar a impressão que é um processo completamente arbitrário mas é mostrada de outra maneira por Frederico Morais, quando fez a apresentação da obra do colagista Tide Hellmeister. Diz ele que a colagem
“(...) é uma linguagem, uma poética, enfim. [As imagens] são também criações mentais, existem virtualmente na imaginação do artista e, quando viabilizadas (...) de forma encadeada passam a constituir a expressão de um universo particular do
artista.” (Morais, apud Hellmeister, Collage, p 5)
Segundo Morais, fazer colagem é uma obra em dois tempos - o da tesoura e o da cola:
“Do lado da tesoura, temos a realidade, que é descontínua, fragmentária, dispersa. Quando se toma um material que vem inteiro, contínuo e ordenado, a tesoura corta, recorta, divide, separa, isola, fragmenta, embaralha e cria a dispersão. Depois vem a cola, que busca uma nova continuidade, outra síntese, outra ordem ou, o que para Morais é igualmente válido, a exacerbação das características iniciais.
A cola multiplica, junta, reaproxima, reúne, totaliza. A tesoura des-monta, des-constrói o construído, desarticula o articulado; a cola re-monta, re-constrói, re-articula. E assim, ao recriar, reativar, o artista da colagem acrescenta à imagem recortada o seu inteligível e o seu imaginário ... [ as imagens] arrancadas do seu contexto original, postas em confronto ou colisão com outras imagens provocam ...o desabrochar de novos processos imaginativos, revelando [outros] sentidos da imagem ...” (Morais, apud Hellmeister, Collage, pp 10 e 11)
Tentar fazer uma colagem a partir de obras já existentes, recortar algumas das certitudes que irão compor uma outra figura, tentar colar as pequenas familiaridades que se adquirem ao longo do tempo que se passou estudando e tentando aprender. Jung dizia que tudo que acontece em um determinado tempo, adquire as características desse tempo. A isto ele chamou de sincronicidade. Ou, nos dizeres de Marques, do Instituto Bricoleur,
Após meio século dos últimos escritos de Jung, fez-se necessário confrontar seus pensamentos com outros, colocá-lo em outro tempo e concretizar outra figura. Recolher da sua obra as petites sensations (como propunha Cézanne) em vez dos ismos teóricos, seria tão ao gosto do próprio Jung, que nos ensinou a nunca negligenciar qualquer manifestação psíquica, mesmo que se chamasse delírio e não devesse ser levado em conta, por ser obra da cabeça de um louco. Pois foi exatamente daí, das chamadas loucuras que ele tirou todo o material necessário à sua concepção da mente humana.
Erigir a esquizofrenia como paradigma para se compreender a psique levou-o a propor uma forma de pensar o psíquico de uma maneira nova na psiquiatria de sua época, dominada por um tipo de medicina completamente materialista, isto é, centrada na anatomia e fisiologia. Seus primeiros escritos são de 1901 e já ali, apoiado nos escritos de Freud, rompia com o mando máximo da medicina para a qual as doenças mentais são doenças do cérebro, propondo um acontecer psíquico autônomo e autogerador.
Hillman nos lembra que coube aos psiquiatras debruçar-se sobre as inquietações críticas de uma cultura apresentadas “in extremis”, sintomaticamente. Os sintomas dos sofrimentos psíquicos se apresentavam em todos os lugares com sua virulência e criações.
“O termo <<esquizofrenia>> cunhou-se oficialmente no período imediatamente anterior à Primeira Guerra Mundial, um período que assistiu à correspondente fragmentação na pintura, música, literatura e à correspondente relativização do ego nas ciências naturais. Os casos de personalidade múltipla eram importantes porque confirmavam a multiplicidade do indivíduo num momento em que o mesmo fenômeno fazia sua aparição na cultura em geral. Graças a essa perspectiva esquizóide múltipla contemplamos um mundo que já não estava unido pela razão,
que já não estava unido em absoluto. Em seu lugar víamos espontaneidade caótica, relatividade, descontinuidades, desarmonias, superpovoação de espíritos e de imagens anímicas viventes (...)” (Hillman, R P. p 96)
Propor-se a uma clínica nessa perspectiva esquizóide, implica escolher e acolher cada fragmento. Tomar cada um como uma petite sensation e saber que é um vivente com sensações, opiniões e necessidades, como um complexo, à maneira como Jung imaginou. Uma psique composta de personalidades parciais que se comportam como corpos estranhos, animados de vida, características e memórias próprias, os muitos eu que somos cada um de nós.
fácil de explicá-lo ou defini-lo. E, no entanto, ver cada pedacinho, como uma certeza.
A vida psíquica pensada a partir da prática clínica exige, também, ficar com a tensão. Pensada a partir dos eventos ocorridos, estes mesmos eventos contrapõe-se às teorias criadas, um sem número de vezes. Qualquer trabalho em Psicologia acontece no encontro ou entrechoque dos acontecimentos e os pensamentos gerados a partir deles. Hillman propõe Encruzilhadas, em vez de estradas - hodos , ficar no encontro, onde acontecem as conexões. Encruzilhadas, no lugar do metha hodos. Nas encruzilhadas das leituras e da prática é que foram recortadas as certitudes teóricas deste trabalho, que serão apresentadas. Assumir o caminho do erro:
O raciocínio psicológico prospera com a compulsão repetitiva e os ciclos de retorno aos mesmos temas insolúveis (...) sua aprendizagem é através do erro (...) O caminho errante nos conduz àquilo de que estamos menos seguros, reduz nossos conhecimentos e dissolve o conhecimento na dúvida, na liberdade da incerteza. (...)
As reflexões psicológicas sempre tomam a luz desde um ângulo peculiar. (...) O espelho psicológico (...) O Cavaleiro Errante em sua aventura é, também, um factótum, (...) um bricoleur (...) que psicologiza tudo o que têm à mão; não se trata de um arquiteto de sistemas nem de um planejador. E deixa, antes de completar sua tarefa, uma sugestão flutuando no ar, uma pista falsa, uma frase aberta... (Hillman, R P , p 329)
acrescenta um material que se “descola” do resto e fica ali, no quadro, como uma pergunta. Quando nos deparamos com os textos da prática, eles sempre nos trazem o novo, o inusitado, o incompreensível. São o elemento estranho ao quadro teórico, que fica ali; é o enigma que não pede para ser decifrado: pede conexão. Fica ali para lembrar-nos o tempo todo que, sem ele, voltaríamos à cegueira de Édipo, que tudo quis ver e compreender. “Prefiro complicar o enigma a explicá-lo; agravá-lo a defini-lo; confirmá-lo a resolvê-lo”. (Hillman)
Para fazer as reflexões psicológicas , Hillman propõe um modo de trabalhar que Levi Strauss, denominou como ciência do concreto, um pensar/fazer que atende pelo nome de bricolagem. Diz ele que:
“O bricoleur é aquele que opera sem plano prévio, com meios e procedimentos afastados dos usos tecnológicos normais ...opera com fragmentos de obras, pedaços... a regra de seu jogo é arrumar-se “com o que houver”, isto é, um conjunto de instrumentos e materiais que não estão em relação com qualquer projeto mas, que é resultado de todas as ocasiões oferecidas para renovar ou enriquecer suas existências ou de conservá-las com os resíduos de construções existentes. A poesia da bricolagem advém sobretudo daquilo que não se limita a realizar ou executar; “fala” não somente com as coisas mas, por meio das coisas.” (Strauss, pp 35 a 37)
Desde o advento da psicanálise, uma das preocupações de Freud foi afastá-la do modelo e da ciência médica. O primeiro nome que ele deu à Psicanálise foi a Arte da Cura pela Fala. E o grupo das 4as feiras em Viena vinha das mais diversas formações profissionais. Jung seguiu as mesmas preocupações e propôs que, para compreendermos a psique, era muito mais necessário o conhecimento de filosofia, antropologia, literatura, etc. Em especial, dava os maiores créditos aos poetas, que, para ele, sabiam falar mais e melhor sobre as paixões humanas que qualquer diagnóstico. A idéia de Arte está associada à psicanálise desde o seu nascimento.
James Hillman começa com a literatura. Americano de nascimento, cidadão suíço, seus estudos se dão em Paris, onde trabalha como radio jornalista no pos guerra e em Dublin, onde participa de uma revista literária. Antes disso, entretanto, entre 1944 e 1946, a Marinha o envia para cuidar de feridos de Guerra na Alemanha destroçada.
O trabalho que eles me deram era com os cegos, os aleijados e os surdos. (...) que voltavam da guerra do Pacífico. Fiquei extremamente identificado com essa gente e com o horror da reabilitação americana. Nós os levávamos a festas, bailes, encontros (...) Tudo voltado para a adaptação mas nada significava coisa alguma e ninguém nos oferecia treinamento, ferramentas com as quais trabalhar. Então me mudei da caserna direto para o hospital e vivi com os pacientes, o que não era permitido, mas alguma coisa queria ir mais fundo naquilo e o único modo de fazê-lo era chegar mais perto. (...) De qualquer maneira eu já estava envolvido com psicoterapia, aos 19 anos, sem nunca ter escutado a palavra. (Hillman, E V p 103)
Junguiano, onde ficou por 20 anos, onze dos quais, na direção. Em 1974 volta para os EUA, porque eu precisava do novo, começa a escrever sua obra mais autoral.
Talvez, por ter começado com a Arte da Palavra, Hillman pôde desenvolver uma Psicologia mais afastada da Medicina como quiseram Freud e Jung. Uma de suas grandes críticas é quanto à linguagem que a Psicologia herdou da Medicina e a transformou em palavras tão grandes, que as esvaziou. Ficou, apenas, o relato de sentimentos introspectivos como depressão ou ansiedade, completamente conceitualizados.
Será por isso que Flaubert disse a um jovem escritor para sair e observar uma árvore por horas e horas? Pare de escrever sobre você mesmo. Resgate as qualidades da árvore na sua linguagem.
A própria emoção inventa movimentos incríveis, insultos e maldições complicadíssimos (..) A diferenciação, o matizar de emoções, tudo isso é trabalho da cultura. A poesia moderna veio com Williams, Pound, o imagismo, o próprio Elliot, insistiram em fragmentar grandes emoções em imagens precisas. Este movimento apareceu ao mesmo tempo que a psicanálise, um pouco antes da Primeira Grande Guerra e a psicanálise é um tipo de imagismo – um modo de fazer com que as imagens tornem as emoções mais precisas. A psicanálise é um movimento poético. (Hillman, E V pp 52, 53)
individuação (Jung) A idéia de Civilização sugere a existência de uma seqüência que leva a algum lugar, um mundo que tem uma História, que se conta desde o começo.
Precisamos fazer uma distinção entre o sentido grego de kosmos e o universo latino, unus verto, revertendo a um ponto: a unificação monoteísta do sentido grego específico e plural das coisas, o mundo como mundos. (Hillman, C&A p 19)
Abandonar qualquer idéia de processo, progresso, crescimento psicológico, auto conhecimento e reconhecer o pensamento selvagem da desordem que insiste em não se desenvolver de acordo com nenhum critério pré estabelecido quer da prescrição médica, quer da psicodinâmica. Pensar nos diversos mundos que as paixões criam, os muitos centros que se produzem a partir de um determinado evento, pensar a vida a partir da desordem, que insiste em ser crônica e não se dispõe a evoluir no tempo, quer buscando suas origens no passado, quer buscando sua finalidade.
Quando Hillman propõe a psicologia como um trabalho da cultura, refere-se a esta, não com uma definição mas, querendo
dar à palavra uma penumbra, uma atmosfera conotativa. Ela evoca o culto - e evoca o oculto (difícil de ver, deliberadamente secreto, misterioso) – e cultura também evoca formas orgânicas em fermentação que crescem em vasos mornos, intensos, ricamente alimentados e não naturais.
3.1 Tempo da Cola
Águas que sabem a pedras
sabem a rãs.
Ao pensarmos nos sintomas como linguagens ficcionais que nos contam (como personificações) e que falam a todos nós, talvez possamos fazer outras histórias ou lidar com eles de outra maneira.
[Os sintomas] são uma forma de tradução, uma forma de converter algo literalmente conhecido, habitual e trivial, como as psicopatologias da vida cotidiana, em algo desconhecido e profundo. (Hillman, RP p178)
A psicopatologia torna-se doença quando os sintomas adquirem o comando total da vida de pessoas que, quando assoladas por eles, passam a viver toda a existência em função de seu comando. Quando as falas sintomáticas passam a ser entendidas e vividas em sua concretude literal, sem nenhuma possibilidade de filtro ou manejo. Quando os sintomas se impõe de tal forma que toda a vida passa a ser remetida a eles, nada mais acontece sem sua presença ou seu comando. Acontece uma escravidão sem escapatória do senhor. Os sintomas se tornam os donos da vida.
Uma clínica do sofrimento psíquico necessita, portanto, conhecer esses senhores. Debruçar-se sobre o discurso dos delírios, alucinações e tentar extrair deles outra ficção possível, além da mera escravidão. Pensar nos sintomas como personificações que nos habitam e tem uma vida e fala próprios. Para ouvir o relato que os portadores fazem de suas experiências, nada mais vazio que qualquer linguagem médica ou mesmo interpretação psicológica. Nos dois casos esvazia-se a escuta do que é dito para voltar-se para a história do narrador: pessoal, étnica, social. Outra conseqüência que decorre de pensar-se a patologia dentro do corpo do narrador é o sigilo. Um grande segredo deve pairar sobre o assunto, uma vez que vai desvendar-se a mais profunda intimidade de uma pessoa. Este enorme segredo, assunto sempre a portas fechadas, acarreta para o portador mais um elemento a carregar: sua doença é seu segredo. A tal ponto isto é incorporado que muitos pacientes não contam suas fantasias ao médico porque ficam com vergonha.
O que é narrado, os personagens apresentados pelas falas dos pacientes, são instrumentos diagnósticos ou para a compreensão técnica. O que fica de fora é sempre a narrativa doente. Assumida como doente, é algo para ser sanado, curado, superado ou integrado. O que Hillman nos propõe como primeira coisa a fazer com a patologia é afirmá-la, deixar que a depressão sente na cadeira com sua imensa tristeza, que o delírio e sua grandeza ocupem todo o espaço da sala.
Pensar nos sintomas como personificações faz pensar em dar-lhes outros nomes. Jung disse que a medicina apropriou-se dos antigos deuses e os transformou em doenças. Pobreza de linguagem, para descrever a imensidão das histórias que a patologia nos conta.
deixar que ela se apresente. E, a partir daí, entrar em relação com as pessoas psíquicas que aparecem, enquanto o resto da vida anda.
Ao trabalhar com uma clínica que leve em conta a existência real, verdadeira e encarnada desses personagens, acolhe o desafio de ver todo o tempo, as suas irrupções nos momentos mais inesperados. Acolhe um trabalho em que as espontaneidades caóticas se tornam o cotidiano. Hillman insiste em dizer que devemos reportar-nos a essas personificações como estilos de consciência. Esses estilos de consciência se fazem presentes na prática da clínica e na hora de escrever sobre ela, pois personificar é uma forma de conhecer, especialmente aquilo que é invisível...
Falar dos sintomas como personificações nos remete a outros modos de consciência. E, consciências, são modos de experimentar. Hillman fala de consciência mítica, que fala através de personificações, para diferenciá-la de literal, isto é, aquela que traduz as experiências através de conceitos fechados, leis ou “fatos comprováveis”, contados “como realmente aconteceram”. A consciência mítica, remete a uma psique imaginal.
O termo imaginal adquire importância capital na obra do islamólogo Henri Corbin, que se valeu do termo com o propósito de evitar qualquer confusão com o meramente imaginário e poder devolver à imaginação seu legítimo lugar de valor noético, isto é, restituir-lhe <<sua função de verdadeiro órgão de conhecimento, capaz de criar>>. Corbin reconhecia à imaginação uma função
produtiva e não, somente, reprodutiva... Hillman, RP p 59)
pensamento, sensação, emoção, só pode ser levada em conta enquanto experimentada, enquanto acontecimento. Qualquer idéia, sob o ponto de vista psicológico, não pode ser vista sob a ótica do verdadeiro ou falso mas, no que esta idéia instala na vida de um indivíduo ou grupo. Se é experimentado, se produz algum efeito, é real e verdadeiro.
Não há, portanto, confronto possível entre fantasia e realidade; fantasia é realidade e a psique está criando realidade o tempo todo.
“Nada sabemos do Real mas, experimentamos, vivemos diferentes afetos, desde <<fora>>, pelos sentidos e, desde <<dentro>>, pela fantasia. (...) não deveríamos acreditar que a fantasia é uma coisa que existe independentemente e, por fim, que se possa tomar ao pé da letra. É uma expressão, uma aparência que figura no lugar de uma incógnita que, entretanto, é uma coisa real.” (Jung, OHSA, p 198)
Contar as histórias que os sintomas nos contam e não saber em que lugar exatamente devemos colocá-las. Não se encaixam em nenhuma moldura; não se adequam a qualquer idéia de desenho. Aqui, a cola será mais fluida e, talvez, nem consiga colar. E, no entanto, estas pessoas estarão presentes em todo o trabalho. Não somente presentes, mas fazendo parte dele como as dissonâncias e ruídos que fizeram a clínica olhar para si mesma. Foram elas que introduziram uma informação, foi também com elas que aprendemos a recortar e a colar.
Levar em conta que personificar é a atividade psicológica básica, que é
coisas de maneira pessoal, para que possamos aceder a elas com o coração” (Hillman, R P, p74 a 78)
Trabalhar, escrever, clinicar, com a presença desta multidão de pessoas ao mesmo tempo... Aceder às configurações da existência com o coração. Eis a tentativa desta colagem: escrever sobre uma clínica que se debruçou sobre os sintomas de sua prática, em meio a todos, às vezes sabendo que certitude pegar, outras deixando-a de lado, para poder compor figuras de uma clínica possível. Certitudes - sintomas, relatos, delírios, textos, pedras, inquietações – todos os personagens que compõe um lidar que, necessariamente, propõe enigmas. Algumas destas pessoas nos foram apresentadas da maneira que segue:
AS VOZES
Quem são elas? São homens e mulheres, pode ser um ou vários falando ao mesmo tempo. Em geral são apenas ouvidas e sempre falam mal de quem as escuta. Comentam, xingam, depreciam. Às vezes, vêm do rádio ou da TV. Sempre falam coisas pessoais e inventam coisas que o ouvinte nem fez; acusam. E não param; são muitas, falando o tempo todo, não dão sossego, estão em todo lugar. Às vezes, e é aí que elas são piores, mandam fazer coisas ruins. Ficam tão mandonas que são chamadas de imperativas. Mandam, obrigam a sair à rua e matar gente – pessoas conhecidas ou não – brigar, quebrar coisas, destruir. E não param. Só calam quando se dorme.
Roubam os pensamentos ou idéias, que usam para ficar ricos ou ter poderes. Roubam e esvaziam a cabeça, que fica sem nada, oca. Depois do roubo, não se consegue fazer nada porque não sai nenhuma idéia e aí dá muito medo, porque os ladrões vão voltar. Eles sempre voltam. Então, talvez seja melhor esconder todos os pensamentos mas não dá ... “eles” descobrem e roubam de novo. Há outra coisa diferente do roubo, mais sutil; a irradiação de pensamentos. As pessoas estão ouvindo os pensamentos; todos sabem o que se está pensando, tudo. Até os pensamentos mais íntimos, os mais vergonhosos. Não dá pra parar de pensar e todos ficam sabendo. Nem sempre todos ficam sabendo, só alguns, que têm mais poder. Então, só resta dormir (não se pensa no sono) ou trancar-se no quarto, na tentativa de não ser descoberto. Ficar no quarto por oito anos. Quando obrigado a sair, medo, pânico ... ou então, fúria. A única defesa contra esse enorme medo é a fúria.
PRESENÇAS
Milhares de formigas andando pelo corpo, picando, picando. Coça muito, o corpo todo. Aranhas enormes subindo pelas pernas, subindo. Cheiro de pneus queimados, ruim. Pessoas que aparecem e ficam na frente, não se sabe de onde vieram; algumas vezes ficam só ali, algumas vezes falam. Macacos que se sentam na poltrona do consultório e ficam olhando. Os bichos não param de picar, as pessoas não desaparecem, o mau cheiro persiste. Não se sabe como fazê-los parar ou mandar embora. Como dizem que não existem? Estão bem aí, picando, olhando. E não desaparecem. Talvez dormindo...
O mundo todo está conspirando contra para destruir a família, os entes queridos, o quarteirão, o bairro, o planeta. Não há fuga possível porque a conspiração é internacional, interplanetária. O que fazer além de desesperar-se, tentar, tentar, tentar... o que? Não há força possível contra tal poder, que é inexorável. E “eles” não param de conspirar. Quem são eles? A vizinha, que todos os dias põe o lixo na calçada mas seu lixo tem a peste ou uma bomba. O médico que diz querer dar remédio mas quer mesmo é envenenar, assim como não se pode comer fora porque a comida está envenenada; até a merenda da escola do filho tem veneno. O transeunte que olhou com “aquele olhar”. A mãe, o pai, o irmão,... que não são mãe, pai ou irmão, porque algum maligno lhes tomou o corpo e quer matar, machucar. Fazer o que? Desesperar-se, esconder-se e às pessoas que se ama ou armar-se de uma fúria do tamanho da ameaça e quebrar tudo e todos, já que dormir neste caso, não é possível. Exige alerta máximo.
TODA LUZ
TODA ESCURIDÃO
Tudo está parado. Só este bolo que sobe para a garganta, apertando, dando enjôo. Sem fome, vários quilos se perderam num mês. Só sono, quase o dia todo. Sem sono, horas deitado no quarto, olhos abertos, exausto. Não se dorme e tudo está escuro. Dia, noite? Não se sabe mas, a luz faz mal. O corpo está exausto e se arrasta, ou nem isso: só quer ficar parado. Mexer-se pra que? Não há nada a ser visto. Só este negro, negro, negro. Só chorar dias e dias, sem fome sem sono ou só sono. Banho, escovar dentes? Pra que? Dói, dói muito. Dói na alma. Só querer ficar quieto, só querer que esta dor acabe. De onde vem esta dor? Não se sabe, só dói. Só se quer que acabe. Então, talvez, acabando com tudo, a dor passe: tomar formicida, cortar os pulsos, a faca da cozinha, a arma que o parente guarda no sítio, a janela do andar alto do prédio. Fracasso: não consegue nem acabar com tudo.
TAREFAS HERCÚLEAS E TRANSMUTAÇÕES
2) Ser um venusiano, com aparência de marciano, travestido de terráqueo. Ver os pensamentos dentro da própria cabeça antes de eles acontecerem. Ninguém consegue entender, conviver. 3) Pacto com deus e com o demônio para manter a guerra no
hemisfério norte. Esse pacto tem de ser renovado de sete em sete anos. Está quase na hora da renovação. Até agora, o pacto teve sucesso e já faz mais de vinte anos que foi feito. É preciso continuar, para proteger a família e o Brasil. Ser eu, ser a esposa. A esposa são duas. Difícil saber com qual falar. Ela orienta, ajuda. Como saber qual delas é? Fica difícil. O que ajuda é o pacto.
4) “Eu e minha pessoa chegamos.” Endereço, telefone, datas?! E fazer tudo sozinho. Pilhas enormes de documentos para cuidar. Não entendem. Explicar, explicar, várias vezes... não entendem. Ficar nervoso. Pânico: algo de muito ruim aconteceu àquelas pessoas; ir lá todas as vezes e encontrar a casa fechada. Angústia. Porque algo de muito ruim aconteceu a elas. Alívio: viajaram em férias.
NINGUÉM
esses pensamentos, sempre iguais, sempre os mesmos, sempre ruins. Quando ficam ruins demais, enjôo e diarréia.
Estas pessoas psíquicas vividas, assim, em sua literalidade concreta, são a matéria sobre a qual se debruça esta clínica. Partir delas como fonte para aproximar-nos e compor uma ficção no lugar da literalidade e concretude que paralisa. Afinal, são elas que vão nos ensinar seus métodos, mostrar suas necessidades e contar suas histórias. È com elas que queremos trabalhar e, seguindo suas instruções, podermos “diferenciar nossa fragmentação, procurar a diferenciação precisa de suas qualidades”. É a isto que se propõe o “método psicológico” : Lidar com estas metaphorica, imagens agentes, impulsionadoras, que comovem. Este é o sentido que Hillman dá quando diz que a fala da alma é sempre metafórica e carregada de importância. Ele pede emprestado do poeta Whitehead, o significado de importância como transições de emoção e <<minha importância é meu valor emocional, neste momento>>.
Registros de lagartixas nas ruínas:
elas tem sabimentos de pedras
Em 1999, nasce a Clínica-Oficina Kairós. A primeira tentativa de implantação de oficinas de trabalho havia ocorrido dentro de um equipamento público. Por entraves burocráticos e políticos, o projeto foi abortado. Um grupo de amigos, que se juntava para estudar e discutir sobre a clínica e como dar conta das demandas que o novo século estava apresentando, resolveu fazer deste aborto a gestação de suas inquietações. O grupo começou contabilizando o grande número de tentativas similares que sofriam interrupções bruscas por diversos motivos, incluindo a experiência inicial.
No domínio do Serviço Público, estas iniciativas sofriam diretamente do mal das eleições a cada quatro anos. Se houvesse sorte e o prefeito/governador fosse do mesmo partido, poderia continuar. O hábito reiterado dos novos gestores não arcarem com políticas públicas que tiveram sucesso ou, o que é pior, deram visibilidade ao antecessor-adversário, é histórico. O exemplo mais gritante e famoso ocorreu em Santos com o projeto do Hospital Anchieta.
Não pode haver continuidade quando as políticas são, assim, tão descontínuas. No caso da Saúde Mental, estas interrupções são mais agravantes dado que interrupções bruscas são a tônica nesta população que tem suas vidas freqüentemente interrompidas pelas crises. Aqui, a violência desta prática se faz mais agudamente presente.
Têm sido privilegiados projetos ligados a crianças, adolescentes, meio ambiente e que, além disso promovam espetáculos ou que permitam a confecção de edificantes documentários. Já se comprovou um acréscimo nas vendas das empresas que se associam a temas como futuro, limpeza, verde, pacificação etc. Nada que possa ser associado a doença mental contém qualquer desses atributos.
Ainda assim, alguns projetos ligados à Saúde Mental conseguiram patrocínio. Na maioria dos casos ocorreu a mesma coisa que no serviço público. Quando mudam as políticas nas empresas, quando o mercado se retrai, quando o projeto já não desperta mais tanto interesse ou novidade, cessa o patrocínio. Regra geral, também, isto é anunciado sem prazo algum para qualquer ação remediadora mais imediata. A interrupção brusca também é a norma.
Perder lugares de trabalho, perder a possibilidade de algum fazer produtivo, de uma hora para outra. Nada muito diferente de qualquer outro cidadão brasileiro para quem o desemprego ou a demissão sumária é rotina. A diferença é que a maioria dos portadores de distúrbios não tem qualquer possibilidade de emprego formal, nem lei de amparo que o acolha.
Nestas circunstâncias é que surgiram as várias propostas de “oficinas de geração de renda”, com a idéia de que esta impossibilidade total de acesso a um mínimo de autonomia financeira tolhe o exercício da cidadania. Agora, juridicamente, os portadores de distúrbios mentais são cidadãos plenos, mas o exercício deste direito não tem canais de existência.
Perseguir a estabilidade no serviço público ou a decantada parceria com o setor privado. Como escapar das armadilhas que as duas opções ofereciam?
A primeira grande questão foi a necessidade de autonomia, para que o projeto pudesse caminhar ao largo das ameaças das interrupções bruscas; escapar das possíveis ingerências quer do mercado, quer do mal das eleições. Para isto, tinha de ser pequeno, teria de caber no nosso bolso. A idéia é que, a longo prazo, poderia tornar-se auto-sustentável. Mas deveria ter fôlego para continuar.
Outra resolução foi a que o espaço físico não deveria parecer-se com um equipamento de saúde. Como os usuários das oficinas são atendidos em outros lugares para obter medicação e acompanhamento, as oficinas seriam seu lugar de trabalho. Eles mesmos diziam que a casa “parece a casa da gente”. O começo, então, foi em uma casinha onde cabiam a sala de oficinas e as outras salas serviam de consultórios privados. Dar tempo de trabalho era algo que todo o grupo podia fazer.
Todo o resto do projeto não passou por qualquer resolução ou planejamento. Foi surgindo à medida em que as questões se apresentavam, foi se construindo com todos os participantes aprendendo juntos.
Trabalhar com pedras. Ninguém tinha a menor idéia de como se trabalhava com mármore. Este material surgiu da doação de amigos, donos de uma marmoraria. Forneciam cinzeiros e saboneteiras já cortados para dar o acabamento. Com o tempo, isto ficou monótono e pouco atraente. Começou a etapa de inventar. Ir às marmorarias e pedir restos, sobras que vão para o lixo.
Conseguido o material, começava a discussão sobre o que daria para fazer. As pedras, na grande maioria das vezes, nos diziam o que fazer com elas: seu tamanho, dureza, porosidade... Surpreender-nos juntos ao ver que as pedras de mármore são muito frágeis, delicadas, que qualquer coisa as estilhaça, que requerem muito cuidado.
Descobrir ferramentas que se adaptassem às nossas necessidades porque não tínhamos à disposição ninguém com quem aprender: ou há ferramentas industriais ou o cinzel do artista. Nenhuma delas servia para os cacos com que trabalhamos. Inventar modos de lidar com um material que oferece um infinito de possibilidades. Ao longo de seis anos foi se criando um saber com as pedras que permite retirar de sua aparência bruta o brilho e a maciez que encanta o olhar e o tato. Descobrir a capacidade de dar forma ao informe, consertar o deformado, dar leveza ao que parece pesado; criar luxo do lixo.
profissional. E, por mais estranho que possa parecer, foi esta parte do trabalho que mais nos esclareceu sobre a clínica.
A clínica começou querendo ser um lugar de trabalho que não tivesse cunho caridoso, assistencialista; que o trabalho terapêutico fosse pensado no sentido de os terapeutas não fossem os donos de todo o saber; que fosse um lugar de promover a ampliação de possibilidades de vida, etc. e pensar no trabalho artesão como uma forma de terapia.
Enquanto o “saber com as pedras” foi a construção conjunta de um repertório de vida, aconselhado pela experiência comum, estávamos no caminho de nossos propósitos iniciais. No momento em que se instalou a “clínica”, o projeto começou a fracassar. Aliás, fracassa em duas pontas que se juntam: na geração de renda e na concepção em que se baseava a idéia da clínica.
A idéia inicial era de uma clínica que não ficasse ou vivesse apenas a doença mas que se compusesse com ela. Sair da clínica onde o único cuidado é com a queixa; sair da clínica queixosa e lamurienta que aprisiona tanto técnicos quanto pacientes. E, querendo produzir uma experiência que sirva tanto para quem narra como para quem escuta, começou a abrir-se a fenda que levou ao fracasso. Cometemos o maior erro da psicologia como foi apontado por James Hillman quando disse que ela “deixou o ‘mundo’ lá fora”.
Inconscientes da dicotomia, nossa prática clínica se processou exatamente no caminho que não queríamos trilhar. E começamos pela anamnese, historiar a doença, o primeiro procedimento de qualquer manual de atendimento. Para o paciente ser admitido, era necessário fazer uma entrevista e vir acompanhado de um parente. A entrevista servia para coletar todos os dados da doença, seu início, evolução, tratamentos, medicação etc. Ficamos com a queixa.
Esta prática requeria muito tempo de todos para, depois de lida uma vez, arquivá-la. Não era retomada nenhuma outra vez porque, à medida em que o paciente começava a freqüentar a casa, os dados da doença eram todos comentados em meio às conversas que surgiam durante o trabalho. E constatamos que muitas informações eram diferentes da entrevista inicial, havia muitas omissões etc. Quando questionados sobre isso, os pacientes explicavam que tinham vergonha, medo de não serem aceitos, estavam “mal” aquele dia, não quiseram comentar na frente do parente e, principalmente, ainda não éramos amigos, não nos conhecíamos.
Após muito tempo, diante desta trabalheira ineficaz, nos pusemos a pensar para que servia este procedimento. E nos demos conta que estávamos centrados na queixa e esta não nos dizia nada da pessoa que vinha trabalhar conosco ou, nos dizeres de Hillman, não nos dizia
“como o paciente se move, respira, gesticula, que característica fisionômica há em seu rosto, que raça étnica, que animal, quais são suas qualidades planetárias, que olhos estão dentro de seus olhos” (Hillman, E V, 93 ).
trabalho, sobre o interesse e motivos de querer participar dele, quais os desejos e expectativas. Passou a ser uma breve ficha com os dados médicos e de outros tratamentos realizados fora da casa para acompanhamento e troca de informações, ou seja, dados necessários para o cuidado (não é isto que quer dizer a palavra terapia?).
Ao ficarmos com a queixa, quer do ponto de vista médico, quer do ponto de vista psicológico – que busca nas histórias de caso a seqüência dos eventos psíquicos – nos esquecemos de olhar para além do paciente como caso e continuamos a colocar a patologia dentro de sua pele. Esquecemos de olhar a patologia dos nossos procedimentos.
Cumpríamos todo o ritual:
1) Admissão do paciente, acompanhado de um parente, através de uma entrevista inicial.
2) Reuniões com as famílias para discussão e acompanhamento dos casos.
3) Reuniões clínicas semanais para discussão dos casos.
4) Entrevistas com pacientes e familiares em separado do grupo, quando necessário.
4.1 Anamnese – Primeira Entrevista
Sou aquele
que gastou a sua história
na beira de um rio.
A primeira intervenção clínica é uma entrevista inicial que a psicologia denomina de anamnese, nome que herdou da medicina. Também herdou a idéia que deve servir para fazer um diagnóstico, ou ser a primeira peça a compor o que chamamos de Estudo de Caso.
O século XX viu surgir um sem número de critérios para se pensar o sofrimento psíquico até chegar ao “consenso de um enorme número de pesquisadores” em muitos países que compuseram a única classificação aceita: a da Organização Mundial da Saúde. Esta classificação é a que norteia todas as decisões sobre políticas e tratamentos a serem seguidos.
Como se trata de uma área tão avessa a enquadres uma vez que os pacientes, mais que em qualquer outra área, insistem em não se encaixar, os paradoxos e contradições aqui se fazem mais presentes. O próprio CID-10 admite que “uma classificação é um modo de ver o mundo de um ponto no tempo” e o modo atual de ver o mundo passou a ser o de pesquisar os sintomas e eles comporem o quadro.
O propósito inicial era retirar o estigma que qualificava uma pessoa por sua doença. Não há mais esquizofrênicos; há pessoas portadoras de um distúrbio chamado esquizofrenia. Mas, de tanto detalharem a sintomatologia, aboliram o portador. O critério atual é a pesquisa de evidências. Os sintomas se dão num corpo biológico. Se não há nenhum fato externo ou bioquímico desencadeador, então há alguma alteração na biologia.
Toda a idéia da clínica tradicional que tinha no médico seu instrumento maior, pois era ele o detentor dos saberes da arte, como era chamada a prática, foi abolida. Aboliram os pacientes para ficarem, apenas, os sintomas. Mas também aboliram os clínicos. As antigas descrições de evolução dos casos, busca de conexões causais no entorno social ou familiar, foram abandonados porque, além de pouco confiáveis, não são replicáveis em qualquer tempo ou lugar. Pensar a patologia - como diria Winswanger -, como problemáticas da existência seria devolver a psique ao início do século XX, quando os critérios eram muito subjetivos, baseados na observação dos clínicos e estes, falham. Restou a farmacologia.
No entanto, até a objetividade tem seus momentos de revolta e apresenta dados que alarmam as estatísticas. Um destes momentos surgiu diante de um quadro denominado hipomania. Até pouco tempo atrás, este transtorno era considerado uma mania branda. Ocorre que ele não responde adequadamente à medicação prescrita para a mania; responde a outro tipo de medicação.
Pelo critério adotado, portanto, deveria ser considerado um transtorno específico. O alarme soou alto porque a declaração de existência deste novo quadro, elevaria para uns trinta por cento o índice de portadores de distúrbios mentais na população mundial, em vez dos estimados dez a quinze por cento. Para não correr o risco de ter de cercar a cidade como alguém comentou no conto do Alienista de Machado de Assis, decidiu-se, até agora, deixar a hipomania como uma mania branda. A pretendida objetividade estatística não esconde, nem de si mesma, que as decisões passam por critérios políticos e afetivos. Admitir tamanha existência de loucura no planeta seria demasiado penoso e assustador.
apresentação do CID-IX2 (que foi retirado das edições seguintes):
diagnóstico é para quem acredita em diagnósticos .
A clínica psicológica, em especial no que se refere às psicopatologias, tem sido refém destas categorizações e tem lidado com elas de maneiras diversas. As mais comuns são a completa adesão ou o completo rechaço. No entanto, deparar-se com as pessoas com quem trabalha esta clínica implica o exercício de conviver com os pensamentos mais conflitantes para que ela se efetive.
Apesar de todas as críticas, estranhezas, quanto aos pressupostos que norteiam a diagnose médica, a medicação é fundamental para os sofrimentos da alma in extremis. A recusa completa à medicação, vista como suspeita de mascarar os verdadeiros problemas, não seria uma outra maneira de abolir o que os pacientes relatam? Se a medicação serve para o alívio da dor, então a maneira como pensam os farmacêuticos pouco deveria ser levada em conta. A clínica heróica que quer tratar estes pacientes apenas com psicoterapia talvez esteja cuidando mais dela mesma e de suas preciosas premissas, apesar de travestida de justa indignação com a psiquiatria oficial, com suas objetividades ou interesses econômicos.
Se o diagnóstico é uma ferramenta para guiar o médico e o ajuda a prescrever medicamentos melhores e mais eficazes, então, trata-se de compor uma clínica que, no cruzamento com outras formas de lidar, sirva ao propósito final. Aqui, podemos lançar mão da fala de Hillman, quando diz que é preciso que saia a pessoa do analista e a pessoa do paciente, para que a análise aconteça. É preciso que saiam a leis da medicina, as indústrias farmacêuticas, as teorias psicoterápicas, as ideologias, para que a dor possa ser minorada e o resto da vida possa acontecer.
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