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Bom é

constar das paisagens como um rio, uma pedra.

O trajeto percorrido por sete anos na Kairós nos fez chegar a novas encruzilhadas. Se já caminhamos muito tempo, as pedras no meio do caminho nos fizeram parar, contornar e, às vezes, quebrá-las para poder passar. Outras vezes, tivemos de escalá-las e se mostraram

6 Hermas: <<monte de pedras>>, relacionados ao deus Hermes, eram marcos que delimitavam os caminhos e

que indicavam limites de certas terras. Destes montes de pedras surgia um pilar que estava coroado por um busto itifálico, símbolo de fecundidade e prosperidade. (DMC p. 188)

íngremes, quase intransponíveis. Mas, como hermas, também apontaram como seguir.

Uma das hermas apontavam para o escorregadio terreno legal. As leis criadas para proteger e libertar os portadores de distúrbios das tutelas, quer do Estado, quer da família, não libertaram os técnicos que trabalham com eles, uma vez que os técnicos são legalmente responsáveis por tudo o que possa acontecer às pessoas sob sua guarda. Ser responsável juridicamente pelos atos de alguém, retoma a tutela de um modo mais insidioso, porque não está declarado. Pousa como uma espada de Dâmocles sobre a cabeça dos profissionais que, ameaçados, refugiam-se nos procedimentos seguros.

O paradoxo de liberar pacientes e aprisionar os profissionais pode ser um dos responsáveis pela manutenção de práticas que nem sempre se mostram efetivas mas mantêm tudo em segurança. A título de exemplo, podemos falar de um processo trabalhista sofrido por um CAPs de São Paulo. Uma família moveu uma ação trabalhista contra um dos programas de oficinas de trabalho sob a alegação do não cumprimento do vínculo empregatício. A vida e integridade física dos pacientes é de responsabilidade dos profissionais, mesmo quando a proposta é de espaços abertos dos quais os usuários possam entrar e sair mais livremente que nas instituições fechadas. Se algo acontece de errado, mesmo se o paciente sair e algo der errado, há conseqüências legais. Era muito mais simples quando as internações eram fechadas a chave e grades, quando havia seguranças para conter os possíveis excessos. Agora, quem está inseguro e amedrontado é o profissional. A segurança, então, passa a ser a principal preocupação, dificultando as ousadias. A possibilidade de perder o emprego e a carreira cria um ambiente em que permitir o afrouxamento dos controles constitui uma temeridade.

Este vigia introjetado, como diria Foucault, pode ser o maior obstáculo à saída dos técnicos dos manicômios fechados. Mesmo com portas e janelas abertas, mesmo com a liberdade dos pacientes de ir e vir, ficaram os profissionais com o encargo de vigiar. Neste estado de vigia, é pouco provável que floresça uma clínica que favoreça o exercício da cidadania. A não ser que, novamente, caiamos na armadilha da clínica nós e eles.

Nos encontros e discussões com os outros projetos ficou claro que só pudemos existir mais livremente porque estávamos fora do âmbito da Saúde. Nosso trabalho se dava em um ambiente fora da jurisdição médico-legal e podia funcionar de outra maneira. O mesmo ocorria com outros projetos que aconteciam em Centros de Convivência (Ceccos), mesmo sob o regime estatal.

Os Centros de Convivência foram criados no início dos anos 1990 como unidades de saúde da rede pública municipal na cidade de São Paulo. Apesar de estarem ligados à área da Saúde Pública, foram pensados a partir de um parâmetro mais ligado à idéia de promoção de

qualidade de vida. Regra geral, várias secretarias ou órgãos entram em

associação para compor as atividades do Centro, como a Secretaria da Cultura, Centros Culturais e Esportivos, etc. Tem maior possibilidade de associação com organismos não governamentais e maior agilidade para propor suas ações. Os grupos montados para as atividades são heterogêneos e não se restringem a identidades patológicas, sociais ou de qualquer outro tipo e seus modos de gestão, regra geral, se dão de forma participativa com todos os membros.

O modo Cecco pode ser pensado como outra herma, esta de grande alcance, porque nestes lugares, onde a proposta é o convívio de todos em torno de algo em comum, é possível a criação de mínimos

sociais. Como Antonio Candido nos mostrou, esta forma sofisticada de

cidadã: cria territórios que permitem a existência de um sentimento de localidade, de pertinência, que não é de obrigação entre as pessoas, que atende a valores que não a estrita sobrevivência, que é festiva e cujos produtos de luxo, servem para pensar.

Se buscarmos na literatura sobre o que deve ser uma psicoterapia, talvez encontremos na criação destes mínimos sociais uma forma de sair do confinamento e da queixa, porque neste outro formato, todos seremos parceiros dos rios bonitos. A possibilidade desta parceria requer uma saída do modo médico-legal para outro que possa transitar para fora de qualquer idéia de tutela. Todos seremos responsáveis pela execução de nossos ofícios, pelas relações estabelecidas entre os participantes, pelos caminhos que iremos construir.

Outra herma importante indica a possibilidade de relação com as pessoas delírios, alucinações, ideações persecutórias, etc., não apenas como crenças falsas que só existem na sua cabeça. Classificá-las como crenças falsas e localizá-las dentro da cabeça de alguém não as faz desaparecer nem diminuir o tormento que causam.

Psicoterapia significa cuidar da alma, não tratá-la.

Servir a alma significa deixá-la mandar, ela guia, nós seguimos. (...) Ao tomar a atividade desordenada e peculiar como um de nossos guias, a terapia poderá albergar o estranho, o decadente, o fantástico. (...) Posto que nos ocupamos dos aspectos falidos da vida, teríamos que descartar qualquer êxito terapêutico. Como patologizar é aterrador, vemo-nos obrigados a seguir o medo, não com coragem mas, como via que nos adentra ao terror das profundidades da alma (...) [implica] estar em meio à desordem ao mesmo tempo que se está desde uma perspectiva mítica. Tentamos seguir a alma [e], ao seguir a patologização em seu avançar tentamos descobrir precisamente os métodos e as leis do imaginal enquanto diferente do racional e do físico. A loucura nos ensina o seu método. (Hillman, R P pp 177 e 178)

Se nos voltarmos para os sistemas que a loucura monta, veremos as estratégias que os portadores usam para sobrenadar a enchente e, então talvez possamos encarar os sintomas não como algo a ser sanado mas como informantes sobre o que pode dar certa continência à vazão. Aqui, os mínimos sociais precisam ser criados com os quems habitam esta seara chamada psique. Hillman se refere a ela como uma paisagem cheia de gente, como uma cidade, como Nova York, onde vivem todos e acontece de tudo.

Ao longo deste trabalho fomos apresentados a muitos dos personagens desta cidade e nos propusemos a ser seus vizinhos solidários. Como participar desta reunião?

Quando as Vozes estão imperativas, às vezes, é possível encontrar uma delas que se amedronte quando a gente, tão imperativamente quanto ela, manda que se cale. Outras vezes, é preciso deixá-las falar e tentar ignorá-las. Outras pessoas mais fortes que elas podem intervir: Deus, por exemplo. Quando a fé faz parte desta paisagem específica, Ele entra para contrapor-se às forças do mal, porque as Vozes que mandam matar são vozes do demônio. Rezar junto ou ler um trecho da bíblia é um remédio bastante eficiente nestes casos. Às vezes, basta alguém muito próximo estar junto, para impedir de obedecer ao que elas mandam.

A estranha lucidez apontada no início do texto parece vir de estratégias de defesa que se montam no interior da cidade com parceiros solidários tão improváveis quanto os próprios personagens sintomáticos. Alguém telefona para uma prima específica no meio da madrugada para pedir ajuda; outro sai andando, literalmente, quilômetros, dia ou noite, para acalmar as vozes; um outro, ainda, se retira do convívio das pessoas, recolhe-se a seu quarto e não quer ouvir ninguém – já tem gente demais falando. Quando o exército usa seu

corpo para tirar energia, fica dormindo muito tempo para refazer as forças e poder salvar sua família.

O modo habitual de se lidar com estas questões é no sentido de demover o paciente de suas idéias, aflições, propondo que saia do quarto, que se levante porque não faz bem ficar tanto tempo dormindo, que se movimente; que pare de pensar nisso, porque só faz piorar; que pare de andar por aí, porque é muito perigoso, especialmente, de madrugada. Estas sugestões de saneamento só provocam maior aflição porque contrariam o que o sintoma manda.

No caso do paciente que cuidava da mãe a preocupação de todos era no sentido de ele se preocupar mais com ele mesmo, fazer coisas mais produtivas para si em vez de só cuidar dos outros. Mas, e se pudéssemos ver este cuidar dos outros como a sua maneira possível de conexão com o mundo? Se a psicoterapia deve ser a busca das conexões, o que nos impede de ver que esta pode ser a maneira de ele manter algum ponto de contato e que, sem ele, pode romper-se o tênue fio de ligação e tudo poder esvair-se? Talvez se trate de dar mais outros para ele cuidar.

O rapaz de mais ou menos 36 anos anda quilômetros; vai correr na São Silvestre. Sobre ele era dito que não estabelece vínculos, não se fixa em nenhum lugar, precisa de maior concentração, é muito disperso. Mas ele precisa da dispersão, da amplidão de caminhos a percorrer para acalmar as aflições que tomam conta do seu corpo. Ajudá-lo a andar e a correr; colocar-lhe desafios cada vez mais complicados na execução de suas peças. Isto o ajudava a concentrar-se. Talvez porque nada lhe tenhamos perguntado ou tentado extrair de seu discurso ininteligível no início; porque entrou para trabalhar conosco e assim foi aceito; porque não tentamos demovê-lo das estranhas idades de sua família é que, aos poucos, pode falar sem ansiedade, sem medo de ser mal entendido. E

poder estabelecer todos os vínculos que desejou, que torçam para que chegue ao final da São Silvestre.

Se pudermos conectar com o quem, vizinho solidário, de cada paciente e estabelecer com ele uma relação de ajuda mútua, então, poderemos ser parceiros nestes outros rios. As hermas, aqui, apontam para criar conosco o mínimo social de cada um. Não se trata de eliminá- los como crenças falsas mas, poder compor com elas outras estruturas dramáticas. Não se trata de buscar pessoas ou situações reais, para contrapor; para alguns,estes vizinhos não são nem mesmo pessoas. Trata-se de ajudar a delimitar, discriminar e reconhecer quem são esses vizinhos e localizar suas necessidades, desejos, forças. Como fazemos com as pedras.

Algo existe ali, corpo estranho na colagem, mas que, sem ele, não seria esta colagem. Deixar o corpo estranho ali caminha em outro sentido que não o de deixar que ocupe todo o quadro. Por isso é necessário que ele possa ser melhor dimensionado. Mas sabendo que este elemento não poderá ser abolido, mesmo quando continua indecifrável.

Compor mínimos sociais com as pessoas psíquicas nos faz retomar as premissas com as quais quisemos trabalhar: ficar com os relatos dos pacientes; pensar a psique como um lugar cheio de gente e ver histórias de vida, no lugar de históricos de caso. Pensar a realidade psicológica como a vida que se compõe com os enigmas ao invés de tentar solucioná-los.

Seguir a alma nos levou a lugares inusuais, embora propostos, desde o início pelos inventores da Psicologia. Freud já não quis a Psicanálise associada à Medicina. Jung já propunha que, para se entender melhor a psique, era preciso aliar-se à filosofia, antropologia, literatura e dizia que os poetas sabiam falar mais e melhor sobre as paixões humanas do que qualquer cientista. Hillman diz que precisamos

pensar o homem em seu background artista e a imaginação como a atividade da alma, por excelência.

Retirar os sofrimentos da alma dos estabelecimentos ligados à Medicina parece ser, então, uma medida que retoma aquilo que os grandes construtores da Psicologia atual nos propuseram desde o início. Devolver a Psique para as ruas, cidades, famílias; encontrar fora dos muros protetores e protegidos dos saberes legalizados, normatizados, parece ser o caminho que a psique está pedindo para encontrar outros modos de se lidar com ela. Aliar-se aos sintomas, ficar seu amigo, também é algo que a psique está pedindo para ser feito. Se são eles que nos orientam, nos mostram seus métodos e leis, então, trata-se de dar a eles um lugar legítimo de existir, mesmo quando é feito de materiais que destoam do quadro.

Sair dos quadros emoldurados da medicina, sair da psicodinâmica única, da psique pensada como uma estrutura que, ao mover-se fora de sua ordem prevista, passa a ser chamada de doente. Mover-se na direção apontada pelo convívio pode fazer com que, finalmente, possamos seguir a proposta de Hillman de parar de ver pacientes, para podermos ver cidadãos.

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