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4. O TRABALHO DA CLÍNICA

4.2. Famílias

Caramujos sempre chegam depois. Representa que estão chegando da eternidade.

O “acompanhamento de parente” foi outro procedimento que teve de ser reavaliado. Este foi colocado em cheque por um dos participantes que chegou sozinho, indicado por um lugar que ele não soube explicar. Estava completamente desorientado, sua fala quase ininteligível. Trazia nosso endereço num papel e precisava fazer as oficinas. Foi entrevistado naquele mesmo dia, sozinho, porque pareceu absurdo deixá-lo ir embora em meio à sua aflição. Pedimos o telefone de sua família e, por uns dois anos, não conseguimos saber o número certo. Depois conseguimos contato - e os familiares jamais apareceram. E o homem que não conseguia dizer onde morava nem o número de seu telefone, que tem vários irmãos de mais ou menos 36 anos como ele, está conosco até hoje. Continuamos a não saber nada sobre sua doença ou medicação que faz uso. Mas sabemos que a casa e o grupo tornaram-se seu lugar de referência e vínculo afetivo. É onde comemora seus aniversários, com quem quer sair nas fotos, preocupa-se com o bem estar de todos, conta de suas andanças e trabalha muito bem. Suas peças são cada vez mais elaboradas, estão cada vez mais macias e brilhantes. Ele continua com mais ou menos 36 anos.

Além deste caso paradigmático, todos os outros pacientes iam e vinham sozinhos para as oficinas em meio a delírios, ouvindo todas as suas vozes ou querendo morrer. Quando os sintomas tomam um grau além do suportável, que não dá nem para vir trabalhar, eles mesmos fazem a pausa necessária. Para que, então, era necessária a presença do familiar?

Quando falamos em família, pressupomos a família nuclear, composta de pais, mães e irmãos. Quando esta família tem um de seus componentes com uma condição de doença crônica, também pressupomos que os parentes devem cuidá-lo. Partimos da idéia de que há alguém apto para cuidar de outro que, portanto, não está apto a cuidar de si mesmo. De certa maneira, contradizemos os pressupostos muito queridos da luta antimanicomial que pretende tratamentos para a autonomia,inclusão e exercício da cidadania plena.

Como se apresentam estas famílias? Após conhecermos várias, com composições as mais diversas, ficou claro que não há FAMÍLIA, mas grupos familiares. E ficou-nos uma enorme pergunta: quem cuida de quem?

Uma criança de 8 anos, pai e mãe esquizofrênicos. Os delírios da mãe passam por um pavor absoluto porque querem envenenar sua família. Todos os alimentos podem estar contaminados. Nada se come que não seja preparado e meticulosamente lavado por ela; sequer se toma água fora de casa. Ela providencia tudo e controla qualquer possibilidade de contaminação. Ninguém sai sozinho: saem juntos para evitar o inevitável atropelamento se ela não estiver presente. Os pais – juntos – levam os filho à escola e vão juntos para o CAPs3. Freqüentam

a oficina nos mesmos dias e horários. Fazem suas terapias individuais nos mesmos dias e horários e só assim aceitaram a proposta de fazer terapia separados; a garantia de que o outro está na sala ao lado.

Foram necessários alguns anos para poder comer fora de casa e, feito supremo, deixar o filho fazer sua festa de aniversário de 14 anos em casa convidando seus amigos.

Neste triângulo, a quem atribuir a função de cuidador? Qual deles estava apto? Porque, apesar de tudo, o casal manteve sua casa funcionando o tempo todo, pagaram suas contas e, à sua maneira, estão criando este filho. Agora, a família recebeu a avó do menino, idosa e completamente dependente.

Dois irmãos adultos, mãe idosa e doente. Um dos irmãos, esquizofrênico com alto grau de severidade, seu pensamento está desagregado boa parte do tempo. Quando este chegou às oficinas passava todo o tempo em pé, fumando um cigarro atrás do outro, aparentemente alheio a qualquer coisa. Um dia, precisamos saber o endereço de um cartório e, para surpresa geral, este “alheio a qualquer coisa” diz o endereço, descreve o trajeto a ser feito e o que havia no entorno. Apesar de nossa incerteza quanto à fidelidade das informações, seguimos suas indicações, aliás, de uma precisão impressionante. Passamos a prestar mais atenção e vimos que a única coisa à qual ele era alheio era a si mesmo e que ele estava atento o tempo todo às necessidades dos outros. Levou 10 meses para concluir uma peça sua mas estava sempre disposto a ajudar o trabalho dos colegas: fazer o café, comprar lixas, preparar materiais. Quando conseguia falar de forma inteligível, nos contava de como cuidava de sua mãe: marcava suas consultas, levava ao médico, dava seus remédios. Quando ela não conseguiu mais sair de casa, providenciou-lhe visitas domiciliares. Sua vida tinha funções, propósitos, ocupações que ele desempenhava com um alerta que não dispunha para si, tanto que nem percebia quando o 3

cigarro queimava seus dedos. Quando sua mãe morreu e ele não teve mais a quem cuidar, piorou sensivelmente, não veio mais às oficinas.

“Seu João” morou na rua por oito anos. A irmã dele que morava

no Rio de Janeiro ficou viúva, filhos criados. Veio para S. Paulo e conseguiu encontrá-lo e tirá-lo das ruas. Levou-o ao CAPs4 e lá ficou

por uns dois anos parado, sem falar com ninguém. Chegaram a pensar que era surdo e diziam que “as cadeiras tinham mais movimento que ele”. Aos poucos, começou a mexer-se e, quando chegou às oficinas, trabalhava como poucos, embora quase não conversasse. Sorria diante de algumas coisas e nos ensinava técnicas de trabalho que havia aprendido nos tempos em que era pintor de casas, antes de sua ida para as ruas. Não tinha nenhum contato com seus filhos, não sabia onde viviam. Em algum lugar do caminho, havia perdido tudo. Ficou conosco uns 4 anos. Começamos a perceber que “Seu João” tinha de ir embora, já não cabia mais ficar ali. Foi na última conversa que ele relatou ouvir vozes enquanto morava nas ruas. O psiquiatra que o acompanhava nunca soubera disso. Ele nunca contara isso a ninguém antes. “Seu João” nos visita. Não toma mais qualquer tipo de medicação, vai todo sábado ao forró, namora bastante. Quem cuidou de “Seu João” durante os 8 anos em que viveu na rua?

Haveria mais famílias para apresentar, cada uma de um tipo e, para cada caso, a pergunta poderia repetir-se: quem cuida de quem?

Estes casos talvez possam nos ajudar a repensar o que chamamos de família e as atribuições que damos a seus componentes.

O coração da cegueira é a crença. Ver é crer. Aquilo que claramente vemos nos convence de que vemos claramente. A CAPs - Centro de Atendimento Psicosocial

crença central da análise afirma que a desordem pessoal desenvolve-se no âmbito da família. O mito da família funde-se com o método da análise como reconstrução do desenvolvimento pessoal. Quando invoco a “memória e revejo os meus vividos” ( W.Shakespeare, soneto XXX) , minha análise é secular e burguesa porque essas coisas, o passado, estão presas ao mito da família e uma família de uma variedade européia específica. Esta família pode ainda existir em bairros ou regiões de classe média branca que provêm a população para o culto de Édipo da terapia, mas essa família dificilmente existe na grande cidade como um todo. Essa cidade de pretos, marrons, beges, olivas, amarelos – e todos tingidos na alma de azul, o blues - procura sua cura menos em sessões de autobusca, na atmosfera de um doce silêncio pensativo, do que nas ruas. (Hillman, E R , p 109)

Pesquisas recentes da OMS5 se depararam com um dado que intrigou os pesquisadores. Em países do “Terceiro Mundo”, com seus equipamentos de saúde precários, falta de medicação, populações sem acesso a educação etc.., embora apresentassem o mesmo percentual de transtornos esquizofrênicos que os países do “Primeiro Mundo”, sua evolução e prognóstico era bastante diferente.

...a maioria dos pacientes psicóticos que tivera a oportunidade de tratar-se em determinadas sociedades não ocidentais, em especial, na África e na Ásia apresentavam, freqüentemente, um processo de desenvolvimento da doença por início agudo, curso clínico bastante curto, apesar de fulminante e, muitas vezes, a remissão completa dos sintomas. (D E, p 221)

Os pesquisadores observaram que este fenômeno também ocorria em grupos como os porto-riquenhos e mexicanos que vivem em

5 OMS - Organização Mundial da Saúde: dados e bibliografia relativos a estas pesquisas encontram-se em O

Nova York; o mesmo se verifica em alguns pontos do Brasil. Em países como EUA ou Inglaterra, por exemplo, o processo da doença se dá com início menos agudo mas com curso clínico muito mais longo e com maior índice de reincidências.

Várias questões foram levantadas mas o que todas as pesquisas apontam é para a maneira de sociabilidade familiar destes grupos. O “Terceiro Mundo” funciona ainda à maneira da família extensa, relações de vizinhança como fontes de ajuda mútua, redes de amparo e sustentação.

O modo família extensa pode nem referir-se a um grupo de pessoas determinado. Um programa de deshospitalização no Canadá incluiu buscar moradias para os pacientes. Um rapaz escolheu um lugar, não uma casa ou sua família. Quis morar perto da banca de jornal, onde costumava ficar antes da internação e gostava do movimento. Outros, escolheram morar com ex-companheiros de hospital: haviam ficado amigos e não se sentiam à vontade perto dos “normais”. Outros voltaram para seus familiares e antiga vizinhança. O modo família extensa busca redes de referência e estas não podem ser prescritas por qualquer critério técnico.

Parece ser que as famílias não estão precisando de mais equipamentos de saúde e mais técnicos dizendo a elas o que ou como fazer com seu parente. Confinadas no espaço privativo, “cada um com seus problemas”, as famílias ficaram tão desamparadas e des-cuidadas quanto seus “parentes doentes”

“Tudo o que eu queria e pedia desesperadamente era que alguém ficasse com ele enquanto eu procurava uma ambulância. Meu desespero era que eu estava sozinha para fazer tudo e eu sabia que não dava conta”.

O apoio em rede que se preconiza necessário para o tratamento dos transtornos mentais precisa ser repensado para este

modo de viver individualizado que condena “doentes” e “não doentes.” O desespero de estar sozinho numa situação de dar conta de um surto, pode se tornar, a longo prazo, tão devastador quanto a vivência do próprio surto.

“ ... a loucura afeta não só o indivíduo doente como toda a família, assim como a rede de relações sociais. (...) após lidar com a psicose por vários anos, tanto o indivíduo como as pessoas que são mais próximas, se modificam radicalmente. A experiência da doença impõe-se e (...) os padrões culturais ordinários (...) se modificam por um dos ataques mais devastadores sobre a pessoa: a psicose”. (D E p 230)

De um lado, temos o paciente isolado do “mundo real” por sua doença e, do outro, seu familiar, isolado pelo “mundo real da doença”. O mais esclarecedor destes achados talvez soe a ironia histórica. As populações mais pobres, mais ignorantes e necessitadas, estas que são chamadas de excluídas, são as detentoras das tecnologias afetivas mais sofisticadas. Resistiram ao que Jurandir Freire chamou de higienização da família, proposta pela medicina do século XIX e que, segundo ele, veio a redundar na

“ instituição conjugal e nuclear de nossos tempos ...higienicamente tratada e regulada ... [que] parece ter renunciado ao direito de resolver, por conta própria, suas dificuldades familiares. Cada dia apelam mais para os especialistas, em busca de soluções para seus problemas domésticos. (...) Que a família sofre e precisa ser ajudada, não há dúvida! Não se trata de negar a desorientação e o sofrimento emocional ... A dúvida consiste em saber se os remédios propostos, ao invés de sanarem o mal, não irão perpetuar a doença. ( Freire, OFNM, pp 11, 13,17)

Uma das máximas do atendimento das psicopatologias dita que é necessária a cooperação da família para a eficácia do tratamento. Esta máxima, embora desejável, encobre um subtexto: o da necessidade de tutela. Ao olharmos este procedimento com algum distanciamento, pudemos verificar um pouco do surrealismo de sua existência. Pessoas em condições completamente adversas: delirando, alucinando, em plena mania ou depressão que, fora do nosso “abrigo” (o nome oficial é “oficinas abrigadas”), tem filhos, maridos, namorados, administram suas casas, vão e vem sozinhos. Mas quando abrigados, necessitam de acompanhamento. Passam pouco tempo no abrigo, depois são lançados à vida comum. E sair andando sem rumo pela cidade, mesmo de madrugada, é a estratégia que alguns deles usam para acalmar as

vozes. Perguntamo-nos que abrigo era esse. Continuávamos praticando

a clínica no seu sentido mais estrito. Continuávamos debruçando-nos sobre a Klinós – a cama do doente.

Outra questão levantada a partir do paciente que veio sozinho foi que não se confirmou a premissa de que, sem a cooperação da família, o tratamento fica prejudicado. Ele e outros pacientes que moram sozinhos ou com familiares mais doentes, têm mostrado no seu espaço de trabalhar a mesma melhora que os outros.

Tomar a família como referência única ou de apoio obrigatório, mostrou-se uma falácia. Do que estamos falando quando dizemos família?

Além de haver famílias de vários tipos e, portanto, com comportamentos que podem ir da total colaboração à franca hostilidade ou com idéias contrárias a qualquer forma de tratamento, há outras questões a analisar quando se requisita a presença dos familiares. Chamamos os familiares para que componham conosco uma rede de apoio e suporte para lidar e conviver com as conseqüências que as psicopatologias acarretam.

De inicio, seguindo o ritual, eram realizadas reuniões periódicas com as famílias. Feitas aos sábados, dia em que juntar todos era mais possível, as reuniões eram para conversar sobre a evolução dos pacientes, se as oficinas estavam ou não ajudando, se houve mudanças em casa, etc. A adesão a estas reuniões era pouca, errática e provocou- nos sentimentos ambíguos, entre a raiva pela ausência (diante de nosso empenho) e a sensação de que “algo estava errado”. Havia uma certa perplexidade diante de “nosso erro” por não conseguir fazer nosso trabalho bem feito: tanto era assim que os parentes não vinham.

Conversamos com colegas de outras instituições e a queixa era a mesma. Aqui, a queixa começa a contaminar toda a clínica, ou melhor, uma clínica centrada na queixa contamina a todos. O mesmo sentimento de frustração; a mesma irritabilidade diante da incompreensão das famílias. A contaminação atingiu seu maior grau de perigo ao flagrar- nos (como bons pais diante dos filhos) a reclamar da falta de reconhecimento de nosso esforço, de nossa dedicação. Onde teria ido parar o propósito do não paternalismo? Ficou na queixa, preso ao mais primário: abrir mão do nosso “legítimo” lugar do saber é um processo doloroso. Abrir mão de procedimentos consagrados que nos abrigam (também para nós, a oficina era abrigada) nos destitui do lugar da segurança. Como ousavam eles fazer isto conosco?

Reiteradamente, nas nossas reuniões semanais, estes assuntos vinham à baila, com resultados tão iguais que o desânimo se instalava até o momento em que retomávamos aquilo que nos mantinha no projeto: nosso lugar de aprender, nosso lugar de trabalhar.

Um dia, fizemos um exercício básico no psicodrama: colocar-se no

lugar do outro. Agora, éramos familiares de um parente doente há 5, 20

anos. Convivíamos com incêndios na casa provocados por ele. Com um filho que se trancava no quarto e não saía por nada e, quando não suportávamos o mau cheiro pela falta de banho e forçávamos sua saída,

apanhávamos. E assim ficamos por oito anos, indo de médico em médico, até acertar. Com uma filha adolescente e linda que, de repente, fica tão agressiva que chega a nos quebrar duas costelas. Um filho que desaparece e, após três meses de angústia, o reencontramos vivendo como um mendigo na rua. Uma filha esquizofrênica que desaparece e volta tempos depois com AIDS e grávida.

Aí, veio a pergunta. Como receberíamos o convite de sair de casa, num dia de descanso, para conversar sobre o parente doente? Que adesão esperar quando o convite é para conversar sobre o que, pelo menos por algum tempo (dia de descanso?!), gostaríamos de esquecer? Já não é suficiente conviver todos os dias com isso?

A existência de uma doença crônica (como ocorre na maioria dos casos) instaura uma outra vida, em geral em torno da doença. Passear, fazer amigos, viajar... depende do estado do familiar; planejar finanças, depende do quanto se vai gastar com remédios (não é sempre que tem no posto). Os relatos passam, necessariamente, pela frase – depois que ele ficou doente...

Depois de ter ficado no lugar do outro, mudamos o modo de lidar com as famílias, uma vez que ficamos convencidos de que, se era para cooperar, trata-se de não sobrecarregar com mais doença quem já a carrega todos os dias. Então, os convites passaram a ser para compor conosco o trabalho: mutirão para arrumar a casa quando fizemos a mudança, tomar um lanche juntos para conversar de tudo, até da doença se quisermos, e colocar-nos à disposição para qualquer pedido de ajuda em que se faça necessário nosso conhecimento. Os convites para participar deixaram de ser tarefa obrigatória para ser o lugar de encontro para o que se quiser ou fizer necessário.

Aliamo-nos ao que um médico do século XIX chamou de

resistência dos ignorantes e que, pelo fato de serem ignorantes, são mais ousados em exercitar a arte [da medicina] e mais prontos a

desconfiar dos médicos. Esta resistência não criou para si uma família

tratada e higienizada e, como não confia completamente nos médicos e técnicos afins, não renunciou a buscar, em seu meio, as maneiras de solucionar seus problemas domésticos.

Se é nestes grupos que se encontram as melhores tecnologias para se lidar com os sofrimentos da alma, então é lá que devemos buscar as respostas, mais do que nos equipamentos de saúde, junto aos técnicos. Como estas populações se amparam e acolhem seus parentes? Talvez possamos, a partir deles, criar novas maneiras de lidar que não passem por algo chamado Saúde ou Doença, mas por encontrar outras formas de conviver. Assim, a pergunta quem cuida de quem, talvez possa ser respondida.

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