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Já me dei ao desfrute de ser ao mesmo tempo

pedra e sapo

A prática clínica era o território privilegiado de discussão, de aprendizagem, de avanços. Os pacientes e os familiares nos diziam se estávamos na trilha mais acertada - ou não. O intervalo entre as crises espaçava; relatos de melhora na condução de suas vidas, menos turbulência na relação com os familiares. Os parentes falavam de como “agora está tudo melhor” ou vinham pedir apoio para interferir quando havia problemas mais sérios. Tudo ficou menos ameaçador, menos solitário. Contavam conosco, nosso trabalho se mostrava efetivo, sentiam-se amparados. O desamparo de “ter de lidar sozinhos com isto” era bastante aliviado pela existência de um lugar de cuidado solidário.

Se pensarmos na clínica apenas como um projeto gerador de renda, fracassamos. Não conseguimos criar renda nem para eles nem para nós. Continuamos pagando e eles recebendo muito pouco dinheiro. O que nos junta, então? Por que vamos para lá todas as semanas e como nosso trabalho faz diferença nas vidas dos usuários? Porque a diferença é visível no empenho em suas produções, no riso mais farto e solto, no carinho e cuidado de uns com os outros, na melhora de suas vidas em casa.

Há uma enorme discussão entre os profissionais que trabalham com oficinas de geração de renda. Alguns dizem que não leva a lugar nenhum, outros que não é um trabalho terapêutico e, portanto, não pertence ao âmbito da saúde mas deveria passar por outras políticas públicas etc..

Nós assumimos que trabalhar pode ser psicoterapia. Mas trabalhar, como? Se pensarmos o trabalho como o entendemos hoje, todos os nossos projetos estarão fadados à frustração. A socióloga Leila Blass diz que “toda forma de vida societária pressupõe atividades e tarefas de trabalho, ou seja, não existe vida coletiva sem trabalho”. Diz, também, que o trabalho como o conhecemos hoje, data do século XVIII na Europa e que, antes disso, economia, produção, trabalho, estavam fundidos com a política e a religião.

Das atividades humanas, trabalhar, é, talvez, a que mais carrega a característica de ser “para os outros”. Qualquer que seja a produção – peças de mármore, comida, espetáculo – destina-se a um outro que, muitas vezes, nem sabemos quem é. No caso das nossas oficinas era evidente a diferença na satisfação de saber que um cliente desconhecido havia comprado “minha peça”. Quando o comprador era um parente ou amigo, pairava a suspeita de ter comprado “só para ajudar”. A autenticação da qualidade do trabalho vinha de um outro desconhecido.

Ao longo do tempo fomos adquirindo um aprimoramento técnico que permitiu maior discriminação e exigência na qualidade do produto final, ao mesmo tempo em que a maneira de cada um trabalhar mostrava seu jeito de conduzir as “questões da vida”; a maneira de lidar com os processos de produção da peças traduzia os modos de produzir a vida. Um dos modos mais freqüentes fala assim:

No início, cada vez que eu pegava uma pedra, não via nada que pudesse fazer com ela. Era só um caco de pedra bom para se jogar fora, quebrado e feio. Cada vez que quebrava no meio do trabalho minha vontade era largar tudo, ir embora. Não dá nada certo, mesmo! Não sei fazer nada direito.

Jogar tudo fora, ver nas coisas quebradas o lixo como único destino, tomar como erro e incapacidade pessoal tudo o que acontece de ruim é a tônica de sua forma de viver.

Aprender com as pedras. Juntar e colar de um jeito diferente e novo pode dar em alguma outra coisa. Aprender a não jogar tudo fora porque se a gente olhar bem, pode achar alguma coisa legal para fazer. Persistir. A dureza das pedras esconde uma fragilidade que requer muito cuidado. Seus veios e poros nos dizem onde cortar, preencher. A qualquer interferência brusca, ela quebra. Às vezes, quase no final do trabalho, um pequeno golpe dado no lugar errado desmonta tudo o que foi feito. E, no entanto, o erro não foi “meu”, não sou “incompetente”; só não prestei atenção ao que a pedra dizia.

O outro-pedra ensina a olhar para além de mim: minhas dores, fragilidades, meus cacos. Ensina a atender às necessidades dela, a olhar bem quais são suas características, prestar atenção ao que ela requer. Para ressaltar suas qualidades não visíveis é necessário desbastar, colar, polir, juntar; ensina, também, que nem sempre ela se curva a meus desejos, aceita minha intervenção, mesmo que cuidadosa e carinhosa. Às vezes ela, simplesmente, me ignora e impõe outro destino.

O outro-comprador gostou do meu trabalho. Nem estava tão bom,

era uma peça igual às outras. Mas alguém escolheu esta. Aprender que

alguém gosta do meu trabalho que “nem estava tão bom” lança dúvidas sobre a noção cristalizada do não sei fazer nada direito. Insinua para outras possibilidades que não a da inutilidade e estorvo. Se alguém gosta do que faço, pode ser que haja algo apreciável em mim. O desvalor completo como marca da existência, comporta-se como a dureza da pedra que, ao contato com o outro, encontra fendas e porosidades, capazes de mudar o manejo.

O outro-vozes ensina o silêncio. Calar é necessário quando há muitas vozes falando ao mesmo tempo, atormentando, fazendo muito barulho. Não é o momento de acrescentar mais uma voz dizendo o que se tem que fazer.

Aprender a negociar com um venusiano travestido de terráqueo e mostrar-lhe que as pedras da Terra não são como as de Vênus e não dá para fazer as mesmas esculturas que lá.

O outro-paciente ensina a não se espantar ou querer resolver as dores do colega, porque as reconhece e sabe que, nesse momento agudo, é preciso tempo e paciência; ensina outra noção de tempo, de intervenção. Às vezes, ficar quieto, outras ficar ao lado. Em todas, entretanto, fazer saber que este é um lugar onde a acolhida e o suporte estão presentes. Que, aqui, se pode descansar um pouco.

Com os outros, também é a marca do nosso trabalho. O encontro

freqüente, sistemático e compromissado com a produção de algo, inaugura um corpo, uma corporação. Este corpo em ação que vai se compondo ao longo do tempo em que este encontro compromissado se processa, cria um mínimo social onde seus componentes se reconhecem como parceiros. Pedir emprestada esta noção de Antonio Cândido, que a

destinava a sugerir as condições de vida no tipo disperso de povoamento.

Este mínimo social, composto por pessoas dispersas por toda a cidade de São Paulo, se comporta como os Parceiros do Rio Bonito:

cria uma base territorial, um sentimento de localidade, cuja formação depende do intercâmbio entre as pessoas; (...) é uma

naçaõzinha, que requer a necessidade de cooperação. Um dos

elementos de sua caracterização [é] o trabalho coletivo. (...) Poderia (...) definir-se como o agrupamento territorial (...) cujos limites são traçados pela participação dos [usuários] em trabalhos de ajuda mútua. É membro do [território] quem convoca e é convocado para tais atividades. (...) Nesta maneira de trabalhar não há obrigação com as pessoas e, sim, com Deus, por amor de quem serve o próximo, contou um velho caipira.

Durante o trabalho, levam-se em conta os de menor capacidade devendo [o mestre] moderar o ritmo a fim de não forçá-los... (Candido, PRB pp 65 a 70)

Este povoado disperso requeria um mínimo social para poder constituir-se como naçaõzinha; para poder criar o sentimento de localidade, necessitava de um lugar a que os participantes têm consciência de pertencer. Estas parecem ser as condições necessárias para que uma clínica do trabalho possa se configurar em psicoterapia.

Um dos aspectos importantes da vida do mínimo social é seu aspecto festivo. Neste pequeno sócio criou-se um agrupamento de vizinhança que promove encontros, acompanha o colega de trabalho até a condução “para ficar batendo papo”, comemora aniversários, chama amigos de fora para ver nossas peças; permite dizer às pessoas que vou

ao meu emprego, encontrar com meus amigos.

Se pensarmos a clínica como um lugar onde se dá voz às conexões, então criar o mínimo social permite a conexão com esses outros-pedras, pessoas, temas, conflitos; permite esquecer-se de si mesmo e poder criar o dom narrativo, acompanhado de todos os outros que não, apenas, da minha doença.

Enquanto nosso mínimo social criava um território onde a rede de relações se ampliava, nós continuávamos “no mesmo lugar”. Nosso trabalho para “dentro da casa” estava na contramão do projeto de levar a psicoterapia para as ruas.

Uma dos propósitos das oficinas passava por sair do confinamento, do isolamento. Os portadores de distúrbios passam a vida (na maioria dos casos) relegados ao confinamento, quer nas internações fechadas ou abertas, nas casas onde vivem. Dificilmente conseguem sair, ter uma rede de amizades. Marcados por serem diferentes, estranhos, ou se restringem “a ficar em casa sem fazer nada, vendo

televisão” ou a esconder sua condição “para ninguém olhar pra gente como se a gente fosse louco”. Regra geral, a vida destas pessoas acontece em lugares fechados, com os familiares “é difícil conhecer gente nova, a gente fica sem graça”.

Colocar a possibilidade de circulação dos produtos implicava ações de saída, ampliação. Tentaram-se várias maneiras de ir para o mundo. Participar de feiras, fazer parcerias com lojas, montar uma loja gerenciada pelos usuários. O mundo do comércio tornou-se nosso cavalo de batalha. Amigos tentaram ajudar, orientações de empresários, tentar lidar com as intrincadas regras dos negócios. Várias reuniões de todos os participantes para compor um empreendimento que fosse adiante.

A constatação de nossa incompetência nos fez saber várias coisas: nenhum de nós tinha a menor vocação para o comércio, não tínhamos nem vontade de aprender esse ofício; sozinhos não chegaríamos a lugar nenhum. Além disso, verificamos que nós também estávamos confinados.

Começamos por trocar experiências com outros projetos similares. A tônica das inquietações, dúvidas, sucessos e fracassos, assemelhava- se bastante. Em meio às semelhanças, apareceram as diferenças que apontavam as saídas. Foi nesses encontros que conhecemos o bairro dos excluídos, o samba em meio a tudo, as exigências do mercado.

Sair do isolamento implica deixar que a clínica se contamine pela rua. A clínica asséptica dos lugares abrigados, cuidada por técnicos especializados, está exigindo outras misturas; ousar em terrenos não palmilhados, ao invés do consagrado que nos autoriza. Nosso saber, nosso esteio, colocado em suspenso, no lugar do chão que pisamos. E aí, repensar o que será e poderá esta clínica.

Estávamos neste pé, quando fomos invadidos pelo mundo dos

farmacêutico que, se fosse aprovada, teríamos de produzir de 200 a 300 peças. Até aqui, cada um trabalhava no seu ritmo, respeitadas as condições e estilos de cada pessoais, como mandava o figurino técnico.

Discussão coletiva. Fazer, dar conta, aceitar prazos, colocar preços justos, redefinir horários, disponibilidades. E, de novo, constatar que o

ritmo e o estilo pessoais são mutantes (mesmo com doenças no meio)

quando as situações o exigem. Falas do tipo: agora a gente não vai

poder ficar parando a toda hora; não dá pra ficar dormindo, agora é a maior responsa. Temos de ter mais compromisso com as peças. E quem não fizer? Aí tem de dar pro outro e ficar sem a grana. Não dá pra todos perderem porque uns não fazem. Se ficar mal, paciência, quando melhorar, volta. E aí também não dá pra reclamar. Resolvido que

também os técnicos iam ganhar igual a eles pelas peças que fizessem. E que seria necessário mais gente. Quem? Quem quisesse trabalhar. De outros lugares, de outras instituições, parentes, vizinhos... E que, daqui pra frente, cada um será responsável sozinho pelo controle e andamento de seu trabalho sem a supervisão de nenhum técnico. Não haverá ‘clínicos’, apenas, mestres do saber com as pedras. Aí, qualquer um dos mais antigos poderá ensinar os mais inexperientes.

No entanto, de algum modo, ainda nos atribuíamos o encargo de ser os mestres, aqueles que deveriam impor o ritmo do trabalho. Impor, neste caso, era fazê-los aceitar nossas propostas. Ao longo do tempo em que trabalhamos juntos, alguns se esforçavam mais que outros para dar conta de fazer suas peças. Quando havia prazos de entrega era preciso ajudar a terminar as peças dos retardatários. Mas, depois, eles recebiam por peça produzida. Isto não pareceu justo aos mestres, que propuseram o que lhes parecia mais justo: dividir o dinheiro com quem trabalhou. Os outros-pacientes discordaram; nossa justiça foi confrontada com outra justeza. Não importava se alguém fez mais que outro: estava ali, fazia parte da naçãozinha, seu ritmo precisava ser

levado em conta. O valor de sua produção era equivalente, não se media por concretudes acabadas.

Saímos desta reunião cientes de que nosso modo anterior de conduzir as oficinas carregava um pesado viés da prática oficial, encoberto pelo cuidado clínico. Chegarão pessoas novas, o encargo do trabalho não recairá, apenas, sobre os técnicos, poderemos ser mais integralmente NÓS.

E, talvez, finalmente, começar a clínica que queríamos no início. Instalar esse NÓS significa repensar o ofício de clinicar. O cuidado solidário, no lugar do trabalho solitário. Se as famílias e pacientes não se sentiam mais sozinhos para lidar com as questões que a doença trazia, agora seria a vez de criar um território onde os técnicos não se sintam desamparados. Um lugar onde não caiba ao técnico a função de tudo saber, ter a solução para todos os problemas dos pacientes. Esta maneira de ver não inclui um olhar em que o paciente, por definição, é

excluído, frágil e requer proteção. Se nos propusemos a criticar o

Trabalho Moral, será necessário, agora, repensarmos o quanto há de moral nos termos em que pautamos nosso trabalho. Pensar na clínica como um projeto solidário, como um modo de lidar que

Não é propriamente um socorro, um ato de salvação ou um movimento piedoso; é antes um gesto de amizade, um motivo de folgança, uma forma (...) de cooperação para executar um trabalho. (Candido, PRB, p69)

E criar nela experiência partilhada, embora jamais possamos adivinhar seu fim. Uma clínica que se realize no entre, este tempo que fala e aponta para a análise que não se dá de pessoa a pessoa - de ego para ego - mas entre. Uma clínica que se faz enquanto se narra, que se faz no gerúndio. Um tempo de fazer alma. Até porque, assume

radicalmente a máxima dita por um grande louco, sonhador da humanidade, chamado Cervantes: Tudo é o que tudo pode vir a ser.

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