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Anamnese – Primeira Entrevista

4. O TRABALHO DA CLÍNICA

4.1 Anamnese – Primeira Entrevista

Sou aquele

que gastou a sua história

na beira de um rio.

A primeira intervenção clínica é uma entrevista inicial que a psicologia denomina de anamnese, nome que herdou da medicina. Também herdou a idéia que deve servir para fazer um diagnóstico, ou ser a primeira peça a compor o que chamamos de Estudo de Caso.

Desde seus primeiros escritos, Jung diz que diagnóstico é uma ferramenta para o médico e que não diz nada da pessoa que está à sua frente. Como ferramenta, inclusive, precisa ser usada com muita cautela, pois os dados obtidos a partir dela são construções que sofreram muitas modificações ao longo da história recente.

O século XX viu surgir um sem número de critérios para se pensar o sofrimento psíquico até chegar ao “consenso de um enorme número de pesquisadores” em muitos países que compuseram a única classificação aceita: a da Organização Mundial da Saúde. Esta classificação é a que norteia todas as decisões sobre políticas e tratamentos a serem seguidos.

Como se trata de uma área tão avessa a enquadres uma vez que os pacientes, mais que em qualquer outra área, insistem em não se encaixar, os paradoxos e contradições aqui se fazem mais presentes. O próprio CID-10 admite que “uma classificação é um modo de ver o

mundo de um ponto no tempo” e o modo atual de ver o mundo passou

a ser o de pesquisar os sintomas e eles comporem o quadro.

O propósito inicial era retirar o estigma que qualificava uma pessoa por sua doença. Não há mais esquizofrênicos; há pessoas portadoras de um distúrbio chamado esquizofrenia. Mas, de tanto detalharem a sintomatologia, aboliram o portador. O critério atual é a pesquisa de evidências. Os sintomas se dão num corpo biológico. Se não há nenhum fato externo ou bioquímico desencadeador, então há alguma alteração na biologia.

Para intervir na alteração , medica-se. O fato de muitos pacientes melhorarem com determinada medicação é indicativo da existência de um transtorno, ou seja: o medicamento promove uma mudança, o que indica a existência de uma doença determinada. Por mais estranho que possa parecer a outras formas de pensar a psique, não se trata mais de pensar o pathos a partir da historia de vida ou qualquer psicodinâmica. Se os pacientes melhoram após tomarem determinada medicação, (diminui a freqüência das crises, os sintomas diminuem ou remitem, suas dores estão suportáveis ou administráveis) logo, o transtorno existia ou passa a existir. Agora, somente a bioquímica é que nos constitui.

Toda a idéia da clínica tradicional que tinha no médico seu instrumento maior, pois era ele o detentor dos saberes da arte, como era chamada a prática, foi abolida. Aboliram os pacientes para ficarem, apenas, os sintomas. Mas também aboliram os clínicos. As antigas descrições de evolução dos casos, busca de conexões causais no entorno social ou familiar, foram abandonados porque, além de pouco confiáveis, não são replicáveis em qualquer tempo ou lugar. Pensar a patologia - como diria Winswanger -, como problemáticas da existência seria devolver a psique ao início do século XX, quando os critérios eram muito subjetivos, baseados na observação dos clínicos e estes, falham. Restou a farmacologia.

No entanto, até a objetividade tem seus momentos de revolta e apresenta dados que alarmam as estatísticas. Um destes momentos surgiu diante de um quadro denominado hipomania. Até pouco tempo atrás, este transtorno era considerado uma mania branda. Ocorre que ele não responde adequadamente à medicação prescrita para a mania; responde a outro tipo de medicação.

Pelo critério adotado, portanto, deveria ser considerado um transtorno específico. O alarme soou alto porque a declaração de existência deste novo quadro, elevaria para uns trinta por cento o índice de portadores de distúrbios mentais na população mundial, em vez dos estimados dez a quinze por cento. Para não correr o risco de ter de cercar a cidade como alguém comentou no conto do Alienista de Machado de Assis, decidiu-se, até agora, deixar a hipomania como uma mania branda. A pretendida objetividade estatística não esconde, nem de si mesma, que as decisões passam por critérios políticos e afetivos. Admitir tamanha existência de loucura no planeta seria demasiado penoso e assustador.

Embora pareça completamente contraditória a toda idéia de objetividade, esta resolução compõe bem com o final do texto de

apresentação do CID-IX2 (que foi retirado das edições seguintes):

diagnóstico é para quem acredita em diagnósticos .

A clínica psicológica, em especial no que se refere às psicopatologias, tem sido refém destas categorizações e tem lidado com elas de maneiras diversas. As mais comuns são a completa adesão ou o completo rechaço. No entanto, deparar-se com as pessoas com quem trabalha esta clínica implica o exercício de conviver com os pensamentos mais conflitantes para que ela se efetive.

Apesar de todas as críticas, estranhezas, quanto aos pressupostos que norteiam a diagnose médica, a medicação é fundamental para os sofrimentos da alma in extremis. A recusa completa à medicação, vista como suspeita de mascarar os verdadeiros problemas, não seria uma outra maneira de abolir o que os pacientes relatam? Se a medicação serve para o alívio da dor, então a maneira como pensam os farmacêuticos pouco deveria ser levada em conta. A clínica heróica que quer tratar estes pacientes apenas com psicoterapia talvez esteja cuidando mais dela mesma e de suas preciosas premissas, apesar de travestida de justa indignação com a psiquiatria oficial, com suas objetividades ou interesses econômicos.

Se o diagnóstico é uma ferramenta para guiar o médico e o ajuda a prescrever medicamentos melhores e mais eficazes, então, trata-se de compor uma clínica que, no cruzamento com outras formas de lidar, sirva ao propósito final. Aqui, podemos lançar mão da fala de Hillman, quando diz que é preciso que saia a pessoa do analista e a pessoa do

paciente, para que a análise aconteça. É preciso que saiam a leis da

medicina, as indústrias farmacêuticas, as teorias psicoterápicas, as ideologias, para que a dor possa ser minorada e o resto da vida possa acontecer.

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E, quando esta acontece, é possível conhecer melhor até a doença e quem vive com ela. Neste sentido é que a anamnese deixou de existir na Kairós, para dar lugar a uma conversa onde nos apresentávamos mutuamente: nós e os pacientes. O que fazíamos, como pensávamos e o que queríamos fazer juntos. Os dados sobre a doença ficaram restritos ao necessário para o conhecimento dos técnicos. Todo o resto seria construído no convívio.

Criar um laço de amizade demanda tempo; também demanda um espaço aberto às confidências e à crença de seu acolhimento. À medida que isto foi se construindo, foi possível estabelecer uma associação entre nosso trabalho e os outros equipamentos de atendimento e familiares. Como tínhamos ficado amigos, eles podiam contar coisas a nós, que omitiam em outros lugares.

Nossos grupos são pequenos, então o acompanhamento é mais próximo; o momento das oficinas é inteiramente dedicado ao trabalho e às conversas. Enquanto as mãos trabalham, o papo rola mais solto, a gente se distrai, não fica só pensando coisa ruim. Assim, foi possível ver crises que se avizinhavam, saber de acontecimentos em suas vidas e, por exemplo, avisar que a volta do delírio de sempre se devia a uma morte em família e não a uma piora do quadro, servir de mediadores para conversas difíceis entre parentes.

Partilhar com todas as formas de saber que estejam a serviço de minorar a dor e promover outros espaços de vida para esta população em especial é mais que desejável; é, talvez, a maneira possível de se dar conta de tamanho transbordamento. Para lidarmos com as problemáticas da existência neste grau, é necessário lançar mão de toda a ferramentaria que pudermos dispor, inclusive dos diagnósticos. Mesmo não acreditando em diagnósticos.

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