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A década de 50 foi um marco na história da neuropsicologia da memória. Em 1954, o neurocirurgião Scoville descreveu o caso do paciente HM, por ele operado em 1953. Este paciente começou a apresentar uma grave e inesperada deficiência de memória logo após a ablação bilateral do lobo temporal medial. Brenda M ln e r e t al. publicaram vários trabalhos relatando os resultados obtidos em testes f o r m a is de memória e inteligência executados neste paciente (Milner e t

a i, 1968; Scoville e M ilner, 1957). Estes resultados confirmaram amplamente os relatos informais de seus familiares, de médicos e de pesquisadores, os quais constataram que H M não conseguia recordar nenhum evento pessoal ou público ocorrido após a cirurgia (amnésia anterógrada), além de sempre subestimar a própria idade e não reconhecer amigos aos quais havia sido apresentado após o ano de 1953.

A pesar deste profundo e persistente quadro amnésico, H M apresentava uma inteligência superior, sendo capaz de estabelecer diálogos normalmente, desde que não fosse distraído, e preservava sua memória para eventos remo­ tos. Era, porém, incapaz de lem brar com acuidade eventos ocorridos até cerca de três anos antes da ciru rgia (am nésia retrógrada). Em testes de percepção, o seu desempenho era normal, indicando que o prejuízo observado não era devido à incapacidade de registrar novas informações (M ilner et a i, 1968; Sco­ ville e M ilner, 1957). A memória de curto prazo de H M achava-se preservada (M ilner e t a i, 1968), assim como a sua capacidade de adquirir novas habilida­ des motoras e cognitivas (Corkin, 1968). Além disso, ele também conseguia aprender, e reter na memória por algum tempo, o trajeto de labirintos visuais e tácteis muito simples (se o número de pontos de escolha a serem lembrados não excedesse a capacidade da memória de curto prazo), embora a aquisição dessas tarefas fosse extremamente lenta (M ilner et aL, 1968). Foi demonstrado também que H M era capaz de se beneficiar do efeito de pré-ativação (Corkin, 1984), efeito no qual a perform an ce do indivíduo pode ser facilitada ou enviesada por informações apresentadas previamente, sem que o sujeito se dê conta disso. HM, assim como outros amnésicos, tipicamente completava a palavra de acordo com a lista apresentada previamente, mas não conseguia reconhecer as palavras que constavam desta lista. Ele foi exaustivamente estudado ao longo dos anos e muito se sabe sobre as características de sua amnésia, mas o seu não é, de modo algum, o único caso descrito na literatura. Em 1958, Penfield e M ilner descreveram vários casos de cirurgia de ablação unilateral do lobo temporal medial, que incluía a am ígdala e boa parte do hipocampo. Destes pacientes, dois desenvolveram um quadro amnésico semelhante ao observado em HM. Estudos podt-m ortem mostraram que o hipocampo do hemisfério cerebral não operado se apresentava necrótico e provavelmente inoperante (Penfield e M a- thieson, 1974). Portanto, a síndrome am nésica só aparecia quando havia com­ prometimento b ilateral desta estrutura. Síndrom e am nésica semelhante pode ser observada em pacientes pós-encefalíticos, nos quais há lesões extensas do lobo tem poral m edial, incluindo hipocam po, am íg d ala e uncus (D am asio et a i, 1985a). A síndrome am nésica ou am nésia global, como também é cham ada às vezes, de m aneira não muito apropriada, caracteriza-se por um a am nésia anterógrada intensa, não restrita a nenhum a m odalidade sensonal única nem a algum tipo de m aterial específico (H irst, 1982; Lherm itte e Signoret, 1972; Rozin, 1976). A am nésia anterógrada é acom panhada por am nésia anterógra-

M E M Ó R IA E A M N É S IA

da de alcance variado em número de anos que antecederam o agente amnésico. A memória para eventos remotos se conserva intacta, todavia. Outras funções cognitivas, como linguagem, capacidade de raciocínio e de julgamento, encon- tram-se relativamente preservadas.

Estes achados mostraram um claro envolvimento do hipocampo no proces­ samento de informações mnemónicas, o que já havia sido sugerido em 1900 por Bechterew, que descreveu alterações neuropatológicas no lobo temporal medial de uma pessoa que havia apresentado problema de memória durante a sua vida (citado por Zola-M organ e t aL, 1986). O hipocampo também tem sido responsa­ bilizado pela amnésia que se manifesta após oclusão da artéria cerebral posterior (Benson e t aL, 1974) e após isquemia cerebral (Volpe e Hirst, 1983a).

A síndrome amnésica não se restringe a uma modalidade sensorial especí­ fica, nem é qualidade do material apresentado (verbal, seja escrito ou falado, e não-verbal), sendo, por isso, também chamada de amnésia global (Cohen, 1984; Rozin, 1976; Squire, 1982). No entanto, lesões focais do lobo temporal direito (não-dominante) e do esquerdo revelaram, respectivamente, que o lado direito desempenha papel crítico na memorização de material difícil de verbalizar (como rostos e sons não-familiares, padrões visuais abstratos) e de material disposto espacialmente, e que o lado esquerdo está mais relacionado com a memória de material verbal (Jones-Gotman, 1986; Jones-Gotman e M ilner, 1978; Jones- Gotman e t aL, 1997; Smith e M ilner, 1981). Quadros mais restritos de amnésia podem resultar de lesões menos extensas ou lesões unilaterais da formação hipocampal. M as tanto a síndrome como a amnésia restrita podem advir de vá­ rias condições que insultam o sistema nervoso central, como ablação cirúrgica, ruptura de aneurisma, anoxia, tumores cerebrais, infecções, lesões cerebrais por penetração, traumatismo craniano, etc.

Pacientes com amnésia do lobo temporal medial apresentam capacidade preservada de aprender tarefas que envolvam apenas habilidades motoras, per- ceptuais ou cognitivas (como as tarefas de perseguição de um ponto giratório, de traçado bimanual, e de escrever ou ler palavras invertidas por um espelho, ou como solucionar o jogo da Torre de Hanói e congêneres), ou seja, tarefas que não exijam a lembrança de eventos específicos. Um bom exemplo para ilustrar esta dissociação apresentada por pacientes amnésicos encontra-se no experi­ mento realizado por Cohen e Squire (1980), no qual os sujeitos liam tríades de palavras invertidas como num espelho, durante três dias. Com o treino, o tempo de leitura, tanto de sujeitos normais como de amnésicos, caía igualmente, reve­ lando que a habilidade de ler palavras invertidas estava sendo bem aprendida. Esta habilidade permanece por longo tempo, três meses, pelo menos, o limite de tempo do experimento. Porém testes de reconhecimento revelaram que os amnésicos se esqueciam muito mais rapidamente das palavras específicas que foram apresentadas durante o treino. A esta dissociação os autores chamaram sugestivamente de “saber como” e “saber o que”.

O condicionamento clássico da resposta de piscar o olho é outro exemplo de aprendizagem e retenção de longo prazo preservados em pacientes amnésicos (W eiskrantz e W arrington, 1979).

A pré-ativação (“prim ing”) não envolve recuperação consciente ou explíci­ ta de experiências prévias (Schacter e Tulving, 1990). O protótipo experimental de pré-ativação consiste de dois estágios. No primeiro, estímulos-alvo são apre­ sentados ao sujeito. No segundo estágio, pistas reduzidas ou degradadas são apresentadas e o sujeito deve refazer os estímulos-alvos. O que torna os testes de pré-ativação diferentes de testes de memória explícita é que o sujeito não neces­ sita de recuperação consciente dos estímulos-alvo anteriormente apresentados: basta que seu desempenho seja influenciado por eles. O exemplo mais comum de pré-ativação consiste na demonstração de que o preenchimento de fragmentos de palavras ou a complementação de letras iniciais de palavras com as primeiras palavras que vêm à mente são influenciados pela exposição prévia a estas mes­ mas palavras. A pré-ativação de pacientes amnésicos é normal (Cave e Squire, 1992; Cermak e t aL, 1986; M ayes et aL., 1991; Priestley e M ayes, 1992; Schacter e Graf, 1986a; Squire e t aL, 1987; Verfaellie et aL, 1990), quando se trata de ativar representações pré-existentes, sejam elas perceptuais ou semânticas (G raf e t aL, 1985; Shimamura e Squire, 1984). Novas representações, porém, não fornecem base para o estabelecimento de pré-ativação em amnésicos (Cerm ak et aL, 1988; Paller e M ayes, 1994; Schacter e Graf, 1986 a,b; Shimamura e Squire, 1989). Assim, ao contrário da pré-ativação de repetição e da pré-ativação semântica, preservadas em amnésicos, a pré-ativação de novas associações parece estar comprometida.

A memória de curto prazo, avaliada pelo desempenho em testes de capaci­ dade (àpan) de memória ou através do efeito de recência em testes de recordação livre de palavras, também não é afetada nestes pacientes (Baddeley & Warrington,

1970; Brooks & Baddeley, 1976).

O caso do paciente RB foi o primeiro relatado no qual um a lesão restri­ ta ao hipocampo produziu am nésia anterógrada, sem sinais de outros déficits cognitivos ou de am nésia retrógada significativa. Este paciente ficou amnésico devido a um episódio isquêmico, e após sua morte o exame histológico do cé­ rebro mostrou que havia lesão bilateral restrita ao campo CAI do hipocampo (Zòla-M organ, Squire e Am aral, 1986). E importante notar, entretanto, que o déficit observado no paciente RB não era tão severo quanto o observado no paciente HM , constituindo um caso de am nésia restrita e não de síndrome amnésica.

Esses achados indicam que a formação hipocampal (entendida como o conjunto que inclui o giro denteado, o corno de Amon, o subículo e o córtex entorrinal) e mais o córtex perirrinal e para-hipocampal desempenham papel de fundamental importância na memória, presumivelmente devido às conexões recíprocas entre estas estruturas e o neocórtex associativo posterior.

MEMORIA E

N e u r o im a g e m e estruturas d o lo b o te m p o r a l m e d ia l O recente advento de técnicas de neuroimagem cerebral como a tomo- grafia por emissão de pósitrons (PET) e a ressonância m agnética funcional (IM R f) possibilita o estudo das estruturas cerebrais envolvidas com a memória em pessoas sadias, complementando e aumentando o alcance de estudos com pessoas portadoras de lesão.

De m aneira decepcionante, porém, os primeiros estudos com IM R f não conseguiram detectar ativação do hipocampo e de áreas relacionadas do lobo temporal medial durante a realização de tarefas de memória (Fletcher e t a i, 1995; Schacter e W agner, 1999). Ao contrário destes dados iniciais, no en­ tanto, estudos posteriores têm revelado o envolvimento dessas estruturas na memória, confirmando os achados neuropsicológicos. M ais interessante ainda, as técnicas de neuroimagem têm permitido captar separadam ente a ativação de diversas estruturas temporais mediais na fase de codificação e na fase de recuperação da memória).

Num dos prim eiros estudos de IR M f bem-sucedidos, Stern e t aL, (1996) observaram aumento de sinal de fM R I n a hipocampo e no giro para-hipo- campal bilateralm ente durante a codificação de figuras novas. Vários outros trabalhos também detectaram mudanças no hipocampo e áreas relacionadas durante a fase de codificação da memória (H axby e t aL, 1996; Rombouts e t aL, 1997; Schacter e W agner, 1999).

A recuperação na memória episódica envolve o acesso a eventos asso­ ciados a um determ inado local e num tem po determ inado ( veja adiante o tó­ pico sobre memória episódica neste capítulo), como, por exemplo, lem brar-se do que lhe aconteceu no dia de ontem ou do que comeu no café da manhã. Evocações como essas envolvem tipicam ente um processo de recordação livre ou de recordação au x iliad a por algum as pistas do am biente, mas em outras situações a pessoa pode ter de apenas reconhecer se um a determ inada infor­ mação ou estímulo estava presente ou não durante um episódio específico. Em estudos experim entais essas situações são conhecidas como testes de reconhecimento.

Muitos estudos com neuroimagem mostraram ativação do hipocampo e regiões adjacentes em testes de reconhecimento tanto de material verbal como pictórico e de cenas vísuo-espaciais (Brew er e t aL, 1998; Cabeza et aL, 2002; Otten e t aL, 2001; Rombouts e t aL, 2001; Tulving et aL, 1999; W agner et aL, 1998). Resultados obtidos por alguns grupos de pesquisa (Cabeza e t aL, 2002; Curtis eía/v2000) sugerem que não apenas a recuperação episódica, mas também a memória operacional envolvem o hipocampo e regiões pára-hipocampais, ou seja, que estas estruturas estão envolvidas não só com a memória de longo pra­ zo, mas também com a de curto prazo, particularmente em tarefas que utilizam estímulos complexos (Postle et aL., 2000).

NEUROPSICOLOGIA HOJE