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Como descrevemos anteriormente, buscaremos algumas cenas da animação e do filme para observar indícios de espetáculo, corpo e funcionamento de discursos que perpetuam na contemporaneidade. Nesta primeira parte, veremos a introdução de cada cena fílmica e da animação e seus pontos de encontro e de distanciamento, assim como alguns indícios de discursos que emergem nessas materialidades.

Figura 2 – Micronarrativa 1- Cinderella (1950 e 2015) seus inícios.

Nestes quatro primeiros frames, que fazemos a comparação entre a animação e o filme, o início das narrativas se diferencia, pois, a animação começa como sendo um universo de contos de fadas, tal como uma história fictícia em um livro para ser contada para crianças. Assim, deste modo, aparece a voz narradora detalhando o “Era uma vez [...] onde morava em um castelo luxuoso um viúvo com sua filha Cinderella [...]”, expondo deste modo

Era uma vez, em terra distante um reino próspero, pacífico e tradicional

Num majestoso castelo vivia um viúvo e sua filha Cinderella

a importância de uma família patriarcal quase completa, pois para se completar precisaria de uma substituta para o papel materno, já que discursivamente, o papel do pai é ser o dono de Terras e cuidar da família trabalhando enquanto a mulher cuida do lar e dos filhos.

Notamos, nesses primeiros frames, o conjunto do primeiro plano discursivamente formado pela família tradicional, composta por pai, mãe e filha sentados à natureza perto de seu lar (um castelo) e seu criado como um ajudante do castelo, retomando mais uma vez, práticas sociais de um casamento e os principais papéis de cada membro familiar. Já na sequência dos últimos frames, da figura 2, tem-se o logotipo Disney e um belo castelo como pano de fundo, tido também como sendo um “um faz de conta”, no entanto se diferencia ao mostrar um outro lado da história, nunca antes contada na animação, como era a família de Ella, já que a câmera nos mostra sob o aspecto do Dolly Back6 (câmera se

afastando da imagem para dar uma percepção ampla do cenário narrado), tal qual nos é mostrado no início dos frames o lar e a família de Ella.

Figura 3- Micronarrativa 1- Cinderella (1950 e 2015) seus inícios.

6Dolly Back: Câmara se afasta do objeto. Travelling ou grua de afastamento. In: MACHADO, J. Vocabulário

do roteirista: Dicionário e Glossário sobre Roteiro e Cinema. Disponível em:

<http://www.roteirodecinema.com.br/manuais/vocabulario.htm>. Acesso em: 14 abr. 2016.

Apesar de ser um pai devoto, e dar à sua filha todo o conforto, ele sentia que faltava para a menina um carinho de mãe.

É interessante notarmos que a frase da figura 3: “[...] ele sentia que faltava para a menina um carinho de mãe” também constitui sentidos sobre o homem. Sentidos estes que o homem não deve ficar sozinho para criar seus filhos, já que isso é uma tarefa tipicamente feminina e maternal, não podendo o homem ter este laço afetuoso. Com isso, a ausência materna precisa ser reposta, sendo assim o pai de Ella precisa de outra companheira. Além de reforçar a ideia de que um homem jovem e viril deve ter/constituir uma família sempre completa: composta por pai, mãe e filhos.

Sobre o casamento e a ocupação da mulher no casamento e seus deveres, Foucault (1998) afirma que:

Por um lado, as mulheres, enquanto esposas, são de fato circunscritas por seu status jurídico e social; toda a sua atividade sexual deve se situar no interior da relação conjugal e seu marido deve ser o parceiro exclusivo. Elas se encontram sob o seu poder; é a ele que devem dar aos filhos que serão seus herdeiros e cidadãos. (FOUCAULT, 1998, p. 131).

Desta forma, encontramos em ambas Cinderella (animação e filme), a relação do casamento, a família tradicional e o filho como sendo indícios da tradição e valores familiares. Ainda podemos observar o papel da mulher, que assume discursivamente um lugar de poder de ser a esposa; a nomeação de esposa cria um efeito discursivo de status e prestígio social. É interessante notarmos que a mulher possui seus papéis principais em um casamento, tais como: ser a progenitora, que pode apenas ter relações sexuais com seu marido, sob a circunstância do matrimônio; ser dona do lar (e cumprir suas funções domésticas) e ser a principal responsável por cuidar dos herdeiros.

As narrativas começam a se diferenciar a partir da figura 3. No filme é mostrado um lindo bebê, tipicamente conforme os discursos sociais estabelecidos historicamente ao longo dos tempos, logo em sua fase inicial: cor branca, de cabelos loiros e com a aparência saudável. Estereótipos sociais, que discursivamente remetem-nos à menina de cor branca que seria uma “princesa”, algo que não aconteceria se tivesse uma bebê de pele negra, que remeteria a ser servil, empregada, considerada inferior, não tendo (talvez) uma alta aceitação. Esta relação à aceitação da cor de pele branca decorre muito dos padrões norteamericanos e seus sonhos de consumo (principalmente depois do término da Segunda Guerra Mundial – quando Estados Unidos tornou-se potência mundial), que são construídos discursivamente em um social capitalista e que se mantém cristalizados nas culturas ocidentais.

Na animação, no quarto quadro da figura 3, já notamos também a temática do belo em Cinderella de 1950, de acordo com o discurso de uma beleza padronizada, uma linda

garota, loira, de olhos e cabelos claros vestida tal qual uma bela daminha, recatada, de personalidade meiga e ao lado do pai. É interessante notarmos o nome Ella, no filme de 2015, do qual foi retirado o prefixo “Cinder”, para dar uma identidade ao bebê, mostrando no decorrer da narrativa uma principal mudança na personalidade de Ella (sonhadora), que já possuía - de acordo com as legendas e com a imagem de um céu azul com uma nuvem em forma de cavalo - uma visão de mundo baseada em crenças e magia, diferentemente da animação, que dá um único nome à personagem principal.

Notamos também que Ella pode ser associado a um pronome da Língua Portuguesa (Ela- 3ª pessoa do singular) que promove efeitos de sentido de uma identidade neutra, de apenas uma mulher que terá sua vida e seu nome transformados, se acreditasse no poder da magia.

Figura 4- Micronarrativa 2- Cinderella 2015 e seus animais.

Nestes quadros podemos notar mais detalhes de como era a extensão do lar de Ella, uma família tradicional e que possuía riquezas - podemos notar isso pelo foco da câmera ao mostrar a vastidão do território que Ella, como herdeira, possuiria assim que crescesse. Já nos outros quadros, são apresentados alguns animais principais no decorrer da narrativa, como o ganso, as galinhas e os ratos. Neste aspecto, notamos que esses animais não são selvagens como aparecem no mundo real, mas o próprio espetáculo os faz dóceis, limpos, domesticados

e amigáveis, possuindo até sentimentos pertences à espécie humana, a fim de que o espectador se identifique positivamente com esses animais, não tendo receio ou asco ao olhá- los e aceitando-os como sendo realmente parte integrante da família.

Figura 5- Micronarrativa 3- Cinderella 2015 e sua família.

Na sequência fílmica, depois da apresentação dos animais, a câmera alterna entre a mãe de Ella e a garota já na fase infanto-juvenil (essa mudança do bebê para a fase infantil é nomeada de Elipse cinematográfica, pois há uma omissão nas partes fílmicas, indicando a parte da temporalidade que passara.). A semelhança entre mãe e filha é impressionante, podemos ver os traços físicos da mãe e sua filha pelo Zoom in7, que capta o

7ZOOM-IN - Aumento na distância focal da lente da câmara durante uma tomada, o que dá ao espectador a

impressão de aproximação do elemento que está sendo filmado. In: MACHADO, J. Vocabulário do roteirista: Dicionário e Glossário sobre Roteiro e Cinema. Disponível em:

foco dos rostos mostrando as semelhanças não apenas físicas, mas também na personalidade de ambas. A mãe da garota parece ser uma mulher bela (por ter a beleza natural - sem a necessidade da maquiagem), recatada, delicada e possivelmente excelente dona do lar, exercendo sua relação de poder no papel de mãe e estabelecendo valores morais, tais como ser: uma pessoa amável, humilde, otimista e sempre fazer o bem, além de ensinar as crenças no sobrenatural (religiosas) a sua filha, que será sua sucessora. Discursivamente, observamos, pela materialidade do enunciado sincrético, a construção dos filhos como herança da continuidade de seus pais. Deste modo, os valores morais permanecem vivos e existentes em cada hereditariedade, como é comprovado nos dizeres de Ella “Então eu também acredito”.

Continuando na sequência dos quadros, temos a representação discursiva do marido, pai de Ella, um comerciante rico e homem caseiro, necessita ter ao seu lado uma mulher para exercer o papel patriarca, que trabalha fora trazendo alimentos e cuidando de sua família, portanto, é o principal responsável por ser a base familiar. O papel de um homem em seu casamento é amar sua família acima de tudo, principalmente seus herdeiros, exercendo sua autoridade como patriarca, ser bem-sucedido financeiramente, e exercer o poder dentro do seu próprio lar e seu lugar dentro do convívio familiar, mantendo, desta forma, o papel social e suas responsabilidades, fazendo sua família feliz, e prezar por sua segurança e conduta. Foucault (1998, p. 135) afirma que: “[...] ser casado significa aqui, antes de mais nada, ser chefe de família, ter uma autoridade, exercer um poder que tem na “casa” seu lugar de aplicação e, dentro desse quadro, manter as obrigações que têm efeitos sobre a reputação do cidadão.”.

Figura 6- Micronarrativa 4- Cinderella 2015 e seu pai.

No decorrer da narrativa, temos o adoecimento e a morte da mãe de Ella. Antes de falecer, sua mãe a fez prometer que, independente do que acontecesse, teria sempre coragem e seria bondosa, o que nos fornece indícios discursivos sobre a principal característica do “bom sujeito”, o “sujeito de bem”. E então vemos Ella agora uma mulher, uma dama, que se tornou uma jovem sonhadora e uma linda mulher, com seu vestido azul claro, que representa efeito de uma personalidade de ingenuidade e lealdade/confiança. Segundo Ana M. Rambauske (2001), o azul claro simboliza a sagacidade e pode ser interpretado como símbolo de ingenuidade.

Assim que seu pai decidiu se casar novamente (já que ficara viúvo), para reaver a alegria de um lar completo, Ella o apoia, mesmo se sentindo temerosa, e então é feita a apresentação da madrasta e de suas filhas, que se tornarão as irmãs postiças de Ella.

Figura 7- Micronarrativa 5- Cinderella 2015 e a nova família.

Nestas cenas, temos a apresentação das irmãs de Ella e de sua madrasta. É possível observar indícios de refinamento a partir da aparência corporal e das vestimentas, o que constrói efeitos de prestígio social e de poder, um poder que se verá hierárquico e desumano. Apesar de não possuírem tanta beleza exterior quanto a de Ella, suas irmãs estão construídas de acordo com o discurso de beleza estabelecido: brancas, rostos e corpos consideráveis jovens e belos. Assim também se apresenta a madrasta, que é mostrada com uma jovem senhora refinada, inteligente, bonita esteticamente e com personalidade forte. Notamos isso pela elegância do andar e de seus gestos corpóreos, além, claro, de seu traje predominantemente preto com amarelo, que nos remete à personalidade sombria e falsa da futura madrasta de Ella. Assim como o traje da madrasta pode fazer alusão à personalidade, os trajes de suas filhas também dizem muito a respeito de suas personalidades.

A vestimenta de Driselda (amarela - no primeiro frame da figura 7) promove efeitos de sentido em seu próprio corpo, pois de acordo com Portílio (2014), a coloração amarela pode representar sentidos de falsidade e covardia. Assim como a coloração do vestido de Anastácia nos remete à coloração pink, que ainda segundo Portílio, tem sua ligação a ser imaturo, abandonando as responsabilidades adultas, sendo por sua vez, de personalidade infantil. São essas pequenas particularidades, inclusive das duas irmãs e a madrasta sempre andarem de cabelos presos, que dão o sentido de exercerem poder para com Ella. Sendo

assim, Ella, ainda no começo do filme, é uma moça obediente e boa para com suas irmãs e sua madrasta.

Figura 8- Micronarrativa 6- Cinderella (1950 e 2015) cuidando do lar.

Nesta sequência de frames, podemos observar um gestual que reforça discursivamente o papel da mulher na sociedade como dona de casa, cuidadora do lar e de seus arredores (como alimentar os animais de estimação), preparada para bem servir e que tem habilidades culinárias. Nesta representação, é também observada a diferença entre a patroa e as criadas, sendo que a primeira manda na casa, possui belas vestimentas, é elegante e muitas vezes, não cabe a ela executar essa tarefa. Já a criada, sempre estará disposta para o trabalho árduo e exaustivo, com vestimentas mais sutis e sem um cuidado tão rígido com a aparência física. Essa representação é construída nas relações de poder que definem discursivamente proibições, modos de ser designados como certo/errado: critérios de inclusão e normas para a construção de um corpo dócil socialmente.

É interessante notarmos as cores de vestimentas de Ella, de ambos os frames: há, mesmo que em menor proporção, a coloração azul clara, que, segundo Portílio (2014), pode representar efeitos de autoconfiança, lealdade, tranquilidade e sinceridade. Neste caso, podemos observar que é bastante notória a percepção de tranquilidade/sinceridade em Cinderella e ao mesmo tempo a relação de lealdade/obediência para com a memória de sua

falecida mãe, cuidando de seu lar e sendo bondosa com todos. O fato de Ella aceitar pacificamente a responsabilidade sobre o cuidado do lar é um modo de conservação/cristalização do discurso da mulher submissa, sendo ela a representação do discurso sobre a mulher que lhe institui um lugar social, como sendo “dona do lar” e “submissa” somente ao marido.

Em relação às características visuais, vemos, na animação, (Cinder)Ella com vestimentas que produzem uma associação direta com a aparência típica de criada, com roupas simples, cabelo meio amarrado e avental. No filme, podemos observar, ainda, a construção de uma imagem de superioridade da madrasta ao ver com grande satisfação sua “criada” que está sempre à disposição para que ela não faça o trabalho doméstico. Podemos notar isso em relação ao gesto corpóreo da madrasta refinada, e com postura de dama, com roupas finas e sempre maquiada, muito diferentemente do traje de Ella, vestido simples com avental e com as mangas curtas para facilitar o trabalho de cuidar de um lar, com prazer, sem reclamar. Nas cenas fílmicas, podemos notar o aspecto corpóreo das personagens femininas, elas independentemente de suas personalidades, são colocadas dentro da narrativa como deve ser e representar o feminino, em suas posturas eretas ao sentar-se, o andar delicado, refinado, a postura como deve se servir algo, gestos que representam como deve ser o feminino e como estas devem sempre se comportar. De acordo com Nobert Elias (1995, p.220): “[...]A preocupação principal é a necessidade de inculcar “recato” (isto é, sentimento de vergonha, medo, embaraço e culpa) ou, mais exatamente, comportamento que se conforme ao padrão social”. Dito de outro modo, a necessidade de que o corpo feminino precisa seguir determinadas regras para que seja assim reconhecida como “apta para casar” – a mulher para arranjar um parceiro precisa ter, no mínimo, pudor entre outros fatores incluídos socialmente – se faz tão presente na sociedade moderna quanto nas sociedades de outrora.

Um outro ponto analítico a observar é que, em determinadas cenas, esses frames dialogam entre si, elas parecem um espelho que reflete uma mesma imagem. Notamos estes detalhes por meio da primeira e segunda imagem desta sequência de frames (figura 8), em que a personagem principal alimenta os animais. Nesta sequência, as imagens são bastante semelhantes, pois há cavalos e um galinheiro no fundo, além do céu enfeitando a paisagem; e a imagem das vestimentas e traços corpóreos quase idênticos entre si. Assim como as imagens dialogam, são produzidos efeitos de memória que atualizam o discurso sobre a “boa mulher” que precisa desempenhar seu papel como a dona de casa e ao mesmo tempo manter a aparência corpórea saudável. De acordo com Aumont (2002, p. 201): “[...] se a imagem

(fotográfica) é crível, é porque é perfeitamente objetiva, mas só podemos julgá-la como tal em virtude de uma ideologia da arte que atribui a esta a função de representar o real”.

Nos frames fílmicos a seguir, veremos uma sequência de cenas que permitem a visualização de uma nova identidade, do nome Ella para Cinderella, quando Ella serve o café da manhã à madrasta e suas filhas, e quando Ella coloca seu prato na mesa, é ofendida como uma serviçal, considerada indigna de se juntar à mesa com a família que acolhera devido a seu aspecto visual:

Vemos, mais uma vez, marcadamente, as relações de poder de que nos fala Foucault, quando na “família” de Ella, um sujeito exerce seu poder perante outro. Já que Ella não é pertencente à família da madrasta, a madrasta toma-lhe o lugar como herdeira dos bens de seu pai, destituindo assim, seus direitos. É interessante notarmos, também, o embate do bem X mal, poder X resistência.

Em relação ao embate bem X mal, podemos ver a madrasta e suas irmãs postiças sendo más para com Ella, e diante disso, (Cinder)ELLA continua fazendo o bem, sempre humilde e fiel ao juramento da mãe. Esse gesto nos permite observar novamente o imaginário do “bom sujeito”, e da ideologia em que o bem sempre terá que vencer o mal, passando por várias provações, nunca desistindo de ser/fazer o bem em suas ações, para ser recompensado no final.

Já a opressão se dá pela destituição de um lugar de pertencimento (como herdeira do lar de seu pai) e da exclusão do núcleo familiar (família da madrasta), pois, no decorrer da trama ela continuará linda e “pronta para casar”. Deste modo, podemos observar que a representação de uma mulher resistente se dá, pontualmente, sobre a dominação da madrasta. No enunciado que destaca em close a madrasta proferindo os dizeres “É querer demais que você prepare tudo, sirva e se sente conosco”, observamos o funcionamento de um discurso que oprime e desqualifica o sujeito (Cinderella não tem direito a sentar-se à mesa com a madrasta, assim como não tem direito a tomar decisões ou a manifestar desejo/vontade, porque não ocupa o lugar de membro da família).

Nas imagens, quando a personagem principal tem seu reflexo produzido em uma panela, esta imagem está desfocada e fosca, não permitindo ver de forma nítida o rosto de Cinderella. Isso nos remete à associação discursiva do processo psicológico de auto identificação, do autoconhecimento como sujeito no mundo, que, para ela, não está nítido ainda. Conforme a legenda: “Nomes tem poder, como encantamento”, veremos que a nova identidade de Ella será construída no decorrer da narrativa: transformada de fraca (vestida de doméstica e com cinzas em seu rosto) a detentora de um poder de realeza (quando possuirá o vestido do baile e se casará com o príncipe). O complemento da fala do narrador: “a haviam transformado numa criatura de cinzas” nos remete discursivamente ao mito da ave Fênix, que mesmo depois do falecimento ressurge ainda mais forte, das cinzas, que sempre renascerá, se transformará em um ser mais forte. Assim será feito com Cinderella, irá renascer para se (re)descobrir como sujeito que merece a felicidade, reforçando o imaginário social da busca pela felicidade, pelo final feliz.

É interessante notarmos a manifestação de resistência que se dá na cena em que Cinderella foge de sua casa a cavalo, sem cela, o que pode relacionar-se ao lado selvagem da moça recatada, de insubmissão aos poderes perante sua madrasta. Nesse sentido, é possível destacar uma atualização do efeito de memória sobre a constituição de Cinderella de 2015 em comparação à animação de 1950: um indício de independência, selvageria, insubmissão, que se ajusta a um discurso de liberação feminina que circula na contemporaneidade, que não existe na animação. No ano de 2015, observa-se a possibilidade de emergência deste tipo de discurso, pois há condições favoráveis ao seu enunciado: a(s) voz(es) de mulheres independentes, os movimentos feministas; algo oposto ao observado na animação de 1950, tendo em vista um momento histórico no qual a mulher precisava ser submissa e dependente.

Nas cenas recortadas a seguir, há o primeiro contato entre o príncipe e Cinderella, o que possibilita o jogo de sedução entre os dois é o desconhecimento de identidades, o que lhes desobriga de seguir o ritual real (da realeza) de aproximação dos corpos:

Figura 11- Micronarrativa 9- Cinderella 2015- e o príncipe se encontram.

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